Como prever efeitos de decisões
sobre concentrações horizontais?
9 de outubro de 2016, 8h01
De forma resumida, preenchidos os requisitos objetivos que demandam a análise do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (valores de faturamento dos grupos envolvidos), a abordagem clássica do Conselho[3] é definir os mercados relevantes envolvidos na operação (produto/serviço e abrangência geográfica) e a participação dos agentes em cada um dos mercados relevantes.
Se a operação não puder ser aprovada após essa análise preliminar, ou seja, se ela oferecer risco à concorrência, o estudo segue com outras etapas:
- “avaliação da probabilidade do uso de poder de mercado adquirido por meio de maior concentração na operação, considerando variáveis como:
- a possibilidade de uma entrada tempestiva, provável e suficiente;
- o nível de rivalidade restante no mercado;
- avaliação do poder de compra existente no mercado ou criado pela operação, quando for o caso de se tratar do mercado de insumo;
- ponderação das eficiências econômicas inerentes ao Ato de Concentração”[4].
O que mais nos interessa, aqui, é discorrer sobre os atos que impliquem risco de dano à concorrência livre.
Neste sentido, o § 5º do artigo 88 prescreve:
“Serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no § 6o deste artigo” (grifo ausente nos originais)”.
O controle das concentrações tem por fim reprimir e evitar a eliminação do estado de concorrência (em parte substancial de mercado relevante). A concorrência é defendida normativamente, no que não deixa de ser, diretamente, uma defesa do artigo 219 da Constituição Federal, além de todas as outras normas constitucionais relacionadas, como a livre iniciativa, a valorização do trabalho, a concorrência livre e a proteção do consumidor, e o §4º do artigo 173.
A análise da eficiência econômica, tanto na literatura econômica quanto nas legislações ou jurisprudência, demonstra as distintas fases e a evolução de sua definição e técnicas.
A eficiência econômica ganhou relevo nos construtos teóricos da Escola de Chicago, com participação decisiva de Robert Bork. Essa noção de eficiência está fundada na ideia de maximização de riqueza global, na qual a figura do consumidor aparece em destaque na sua formulação linguística (bem-estar do consumidor), mas distante na destinação do produto da riqueza gerada (vínculo tênue, indireto e não comprovado de que ganhos de escala dos produtores gerariam recompensas aos consumidores).
A concorrência, tutelada constitucionalmente, é uma garantia em si (gramaticalmente) e, ao mesmo tempo, uma das normas objetivo da Constituição (e não simplesmente um meio, mas um meio/instrumento e, também, um fim – ainda que não isolado), mas nunca algo a ser sopesado ou posto em segundo lugar frente à eficiência econômica da maximização de riqueza ou à eficiência produtiva (produzir e distribuir bens econômicos incorrendo no menor volume possível de custos). Qualquer desvio desse pressuposto será literatura lege ferenda ou contra legem.
O debate sobre eficiência econômica no Brasil, portanto, deverá estar em linha com a ordem econômica positivada em nossa Constituição Federal, conforme defendido acima. A eficiência não é um fim em si mesmo e não está positivada na constituição.
A eficiência econômica é um elemento muito relevante na análise das concentrações econômicas (e também na apreciação das condutas dos concorrentes) na legislação brasileira. Por meio de sua apreciação, será possível justificar novas estruturas econômicas que, em tese, teriam impacto anticoncorrencial.
Uma das grandes dificuldades acerca do tema é o de que não é possível ter certeza sobre quais serão os resultados decorrentes da operação de concentração, ou seja, de quais serão as condutas dos agentes econômicos (quanto à quantidade e ao preço, para ficar no mais importante). Está-se, aqui, no campo da prognose.
Nesses termos, quanto mais ampla, sobretudo mais transparente e mais intensa for a utilização de modelos econômicos pelas partes (ampla defesa e contraditório, além da verdade formal e material), melhores as chances de segurança jurídica na formação das decisões.
O artigo 88, em seu parágrafo 6º, trata das situações excepcionais que permitiriam, conjugadamente (incisos I e II), autorizar uma aprovação de operação problemática para a concorrência:
“§ 6o Os atos a que se refere o § 5o deste artigo[5] poderão ser autorizados, desde que sejam observados os limites estritamente necessários para atingir os seguintes objetivos:
I – cumulada ou alternativamente:
a) aumentar a produtividade ou a competitividade;
b) melhorar a qualidade de bens ou serviços; ou
c) propiciar a eficiência e o desenvolvimento tecnológico ou econômico; e
II – sejam repassados aos consumidores parte relevante dos benefícios decorrentes” (grifou-se).
Apesar dos dispositivos da lei atual serem próximos ao da lei anterior (8.884/1994), na lei anterior, a operação não poderia implicar na “eliminação da concorrência de parte substancial de mercado relevante de bens e serviços”; ou seja, junto com o teste das eficiências, havia a obrigatoriedade de se evitar a eliminação da concorrência (artigo 54, §1º, III da lei anterior).
Na atual, a eliminação de parte da concorrência (previsto no parágrafo 5º como vedada), pode ser excepcionada de acordo com os requisitos de eficiência do inciso I do parágrafo 6º e de sua distribuição de parte considerável com o consumidor (inciso II).
Um caso que se pode classificar como divisor de águas foi o Ato de Concentração Processo 08012.001697/2002-89 (Nestlé Brasil Ltda. e Chocolates Garoto S/A)[6], em virtude de sua importância na adoção de ampla discussão sobre dados e modelos econômicos. Em geral, operações com forte chance de serem negadas tendem a demandar muita discussão sobre provas.
Muitas foram as alegações de natureza econômica apresentadas pelas Requerentes:
- “As reduções de custo (eficiência produtiva) são suficientes para compensar prejuízos sociais de aumento de preços com base no bem-estar agregado”;
- “Dados empíricos demonstram que o mercado não comportaria elevação de preços sem redução de participação”;
- “Dados empíricos demonstram que há racionalidade para o comportamento de reduzir preços (estimativas de elasticidade-preço próprias e cruzadas).”[7]
A impugnante da operação, por seu turno, as refutou[8]:
- As Requerentes aumentarão seus preços entre 10,5% e 12%, utilizando-se as elasticidades da demanda computadas pela Requerente e os market share apontados pela pesquisa da Nielsen
- As Requerentes causarão perdas de bem-estar social (excedente do consumidor e não agregado[9]), já que os dados apresentados demonstram que a redução de custos marginais, que evitaria o aumento de preços, seria da ordem de 10,8 ou 12% e o CADE apurou que as reduções seriam somente de 1,47 ou 2,16%.
O voto do Conselheiro Relator, Thompson Andrade, foi no sentido da reprovação solução estrutural):
- As Requerentes causarão perdas de bem-estar social (excedente do consumidor e não agregado), o que era vedado pelo artigo 54 e incisos, sobretudo o II da Lei 8.884/1994 (atualmente seria o citado inciso II do §6º do artigo 88 da Lei 12.529/2011);
- Os dados apresentados demonstram que a redução de custos marginais, que evitaria o aumento de preços, seria da ordem de 10,8 ou 12% e o CADE apurou que as reduções seriam somente de 1,47 ou 2,16%[10].
À despeito da análise do mérito da decisão, que não importa em nosso texto, do ponto de vista da teoria da argumentação e do direito têm-se as seguintes conclusões sobre as análises de casos que envolvem produção complexa de provas econômicas:
- Há muitas formas de se argumentar economicamente (não existe uma única solução correta e não há parâmetros objetivos para dizer qual abordagem é, aprioristicamente, a correta – há, contudo, limites legais, como o apontado inciso II do §6º do artigo 88);
- A teoria da decisão não deve ser entendida como uma teoria que permite estudar como tomar as decisões corretas; o melhor é reconhecer que o uso de modelos e simulações econômicos no direito concorrencial ficará mais bem situado na teoria das provas do que na teoria da decisão (como doador do sentido a ser acessado pelo julgador).
- O uso de modelos permitirá a crítica das decisões; com o tempo, e também com os guias de análise de operações, criam-se certas padronizações e usos consagrados de modelos, gerando maior previsibilidade e redução de insegurança.
- Isso não significa congelamento ou padronização das decisões, pois os pressupostos e modelos poderão ser questionados pelos conselheiros e pelas partes e, ainda, porque a evolução do direito concorrencial mostra como há saltos e evoluções nessas decisões (Escola de Harvard, de Chicago nos EUA[11] e more economic approach na Europa[12]).
O tema merece ser revisitado justamente porque as empresas, que tiveram a sua operação rejeitada há 12 anos, propuseram uma série de medidas para encerrar o processo judicial e ter a aprovação a operação[13].
Além da já comentada complexidade da decisão anterior, que enfrentou forte discussão durante o teste das eficiências econômicas, fato é que argumentar economicamente sobre comportamentos futuros está longe de ser algo trivial. A economia e a matemática desenvolvem modelos de construção de cenários (de curto prazo), mas o mercado sofre a influência de outras tantas variáveis.
Até mesmo em análises estatísticas retrospectivas, ou seja, em posse de dados oficiais, torna-se árduo (e, por vezes, arbitrário) decidir o que foi efeito de um determinado fator (objeto de estudo) e o que foi resultado de outras variáveis externa ao estudo.
A nova análise tem a oportunidade de analisar não só os argumentos e provas produzidos anteriormente, como reavaliar a evolução dos dois mercados relevantes definidos no julgamento. A última decisão do novo conselheiro relator, Alexandre C. Macedo, dá conta que para um dos mercados relevantes, todos os receios anteriores da aprovação da operação deixaram de existir.
Nesse sentido, sem compromisso com o teor das soluções propostas, que desconhecemos, pode-se dizer que o CADE está tendo a oportunidade de analisar duas vezes uma operação complexa, envolvendo forte argumentação econômica e, ao mesmo tempo, de fazer um balanço interessante de mais de doze anos sobre as preocupações da época e de como o mercado se desenvolveu. Esta avaliação pós-decisão raramente é feita, ainda que se leve em conta que se trata do mesmo processo sendo retomado[14].
[1] As concentrações econômicas podem ser horizontais, verticais ou na forma de conglomerados. A concentração horizontal se dá com a união (independente da forma) entre concorrentes e, por razões óbvias, a depender do poder de mercado, poderá ser um risco para o mercado. A vertical, quando envolve diferentes níveis ou estágios da mesma indústria, que mantêm relações comerciais. Já o conglomerado inclui as demais situações, sem relação entre si.
[2] Como amplamente divulgado, o Brasil alterou a sua sistemática de controle para a forma de submissão prévia. “Artigo 88. Serão submetidos ao CADE pelas partes envolvidas na operação os atos de concentração econômica em que, cumulativamente:
I – pelo menos um dos grupos envolvidos na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 400.000.000,00 (quatrocentos milhões de reais); e
II – pelo menos um outro grupo envolvido na operação tenha registrado, no último balanço, faturamento bruto anual ou volume de negócios total no País, no ano anterior à operação, equivalente ou superior a R$ 30.000.000,00 (trinta milhões de reais).
[…] § 2o O controle dos atos de concentração de que trata o caput deste artigo será prévio e realizado em, no máximo, 240 (duzentos e quarenta) dias, a contar do protocolo de petição ou de sua emenda”.
Os valores já foram atualizados: 750 milhões e 75 milhões, respectivamente, de acordo com a Portaria Interministerial 994, de 30 de maio de 2012.
[3] Assim definida no recente Guia para Análise de Atos de Concentração Horizontal (Guia H), disponível em http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf.
[4] http://www.cade.gov.br/acesso-a-informacao/publicacoes-institucionais/guias_do_Cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf, pp 9-10. Veja, ainda, no mesmo guia, a sequência de análises necessárias e o seu fluxograma, incluindo métodos alternativos.
[5] “§ 5o Serão proibidos os atos de concentração que impliquem eliminação da concorrência em parte substancial de mercado relevante, que possam criar ou reforçar uma posição dominante ou que possam resultar na dominação de mercado relevante de bens ou serviços, ressalvado o disposto no § 6º deste artigo”
[6] “O caso Nestlé-Garoto pode ser considerado, desde logo, um ‘divisor de águas’ na análise antitruste brasileira, por ter sido o primeiro Ato de Concentração envolvendo empresas de grande porte a ser reprovado pelo CADE. Mas esse caso também se destacou por conta do avanço teórico e analítico decorrente do aprofundamento da investigação realizada pelas requerentes, pela impugnante e pelas autoridades. Foi ao longo do processo que se inaugurou no Brasil o uso de modelos de simulação para apoiar o exame e a avaliação de fusões, ao mesmo tempo em que se aprimorou a discussão da análise de eficiências”. In: Alessandra AZEVEDO et al., “Análise de Eficiências e Modelos de Simulação no Caso Nestlé-Garoto”, in A Revolução do Antitruste no Brasil 2. A teoria Econômica Aplicada a Casos Concretos. Volume 2, por César Mattos, São Paulo: Singular, 2008, p. 163.
[7] Thompson Almeida ANDRADE, “Uso da Solução Estrutural na Defesa da Concorrência: O Caso Nestlé/Garoto”, p. 129.
[8] Jorge FAGUNDES, “Análise Antitruste do Caso Nestlé-Garoto: Bem Estar Social e Simulação de Fusões”, p. 139-161. Há certa diferença numérica, de acordo com cada um dos dois mercados relevantes em questão.
[9] Ou seja, a técnica que não permite que haja aumento de preço direta ou indiretamente (nas simulações). Em detalhes, ver: José Maria Arruda de ANDRADE. Economicização do Direito Concorrencial. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2014, pp. 68-70.
[10] Os demais conselheiros do CADE acompanharam o voto relator, com exceção do então presidente do CADE, JOÃO GRANDINO RODAS, que aprovava a operação com restrições.
[11] Ver José Maria Arruda de ANDRADE. Economicização do Direito Concorrencial. São Paulo: Editora Quartier Latin, 2014, pp. 56 e 71.
[12] Ver José Maria Arruda de ANDRADE em: http://www.conjur.com.br/2016-jun-26/estado-economia-uso-intensivo-ciencia-economica-antitruste-europeu.
[13] Algumas informações podem ser lidas no andamento processual e na última decisão (04/10/2016). Ver: http://sei.cade.gov.br/sei/institucional/pesquisa/documento_consulta_externa.php?eHxGwvyxxSju7VKozkKZySWza9JJJM9jU7ildgCgjDUlh2pFCSIA_k8JVQoEwFfHgHn9nNYizANeOeuWNsHRJg
[14] Em recente publicação, abril de 2016, a OECD divulga pesquisa sobre o que as autoridades de defesa da concorrência costumam avaliar ex post de suas decisões, bem como algumas best practices. Há campo para muito debate sobre tema tão relevante. Ver http://www.oecd.org/daf/competition/Ref-guide-expost-evaluation-2016web.pdf.
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