Geddel Vieira Lima (e outros) não percebeu que o Brasil mudou
27 de novembro de 2016, 7h00
Vejamos alguns exemplos:
1. Geddel Vieira Lima
Proprietário de um apartamento em um prédio em construção na Ladeira da Barra, em Salvador, o ministro de Estado, receoso de que as obras fossem paralisadas, por força de entendimento do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que considerou o edifício incompatível com a região em que está sendo construído, procurou solucionar o problema através de conversa por telefone com seu então colega da pasta da Cultura, Marcelo Celero. Este, todavia, sentindo-se pressionado, renunciou ao cargo e tornou o fato público.
O que Geddel Lima fez é conduta conhecida de qualquer brasileiro que ocupe cargo público e que é prevista no artigo 321 do Código Penal, como advocacia administrativa. A pena desse delito, que é mais conhecido como tráfico de influência, é de 1 a 3 meses de detenção ou multa.
A pena por si só já revela a pouca importância que o legislador dá ao fato. E esta pouca importância acontece simplesmente porque esse tipo de procedimento sempre foi aceito pela sociedade. Dentro do Poder Judiciário e fora dele (polícia, Ministério Público etc.), sempre houve tentativas de influenciar o julgamento.
Todavia, o Brasil está mudando. A transformação é lenta, pode ter retrocessos, mas é inevitável. E nós estamos tendo o privilégio de acompanhar esta evolução histórica. Ademais, o exemplo de outros países acaba influenciando o pensamento coletivo nacional, mesmo guardadas as diferenças regionais e culturais (vide Como a Suécia pode ajudar as relações jurídicas e o sistema de Justiça do Brasil)[1].
O que aconteceu foi que Geddel Lima não percebeu essa mudança e incorreu em erro primário, ao insistir na antiga prática. Passou ao noticiário nacional, Conselho de Ética e, por fim, teve que renunciar ao cargo.
2. Uso de aviões da FAB por ministros
Revela a mídia que “um estudo feito pelo jornal O Estado de S. Paulo mostra que ministros do governo Temer, no período de 12 de maio a 31 de outubro, utilizaram aviões da Força Aérea Brasileira 238 vezes sem justificativas plausíveis para deslocamentos. Na maioria dos casos, as viagens eram feitas para os locais onde os ministros residem”[2] Segundo consta, o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, foi o que mais viagens fez: 85, sendo que 64 foram para a cidade de São Paulo, onde reside, e 48, injustificadas.
O Decreto 8.432, de 2015, em um único artigo (1º), suspende a utilização de aeronaves do Comando da Aeronáutica em deslocamento para o local de domicílio, na forma do inciso III do caput do artigo 4º do Decreto 4.244, de 22 de maio de 2002, para as autoridades de que tratam os incisos III e IV do caput do art. 1º desse decreto[3]. Em outras palavras, ministros de Estado e autoridades que ocupem cargo público com tais prerrogativas (como o advogado-geral da União)[4].
Ora, é óbvio que voar em um avião da Força Aérea Brasileira é muito mais rápido e agradável do que voar em avião de carreira, sujeitando-se a horários e a eventuais atrasos. Só que a norma proíbe, terminantemente, o uso de voo público para retornar à casa em fim de semana. Salvo hipótese devidamente fundamentada (como ameaça de morte), nada justifica a custosa locomoção em um avião das Forças Armadas.
O ministro que assim procede está sendo desleal com o presidente da República e ainda sujeito a uma investigação pelo Conselho de Ética ou ação judicial por improbidade administrativa.
Será difícil perceber que os tempos são outros e que o que era aceito no passado é proibido, fiscalizado e cobrado pela sociedade atualmente?
3. Práticas superadas na advocacia criminal
No passado, a melhor técnica de defesa era tumultuar uma ação penal e, com a passagem do tempo, levá-la à prescrição. Arrolar testemunhas em locais distantes do Brasil, no exterior, e criar situações que ensejavam invocação de prejuízo para a defesa eram práticas usuais e, inclusive, aceitas com benevolência nos tribunais.
Aí está outro aspecto que mudou, muito embora nem todos percebam. Atualmente, agentes do Ministério Público e juízes estão muito mais capacitados intelectualmente e preparados para esta e outras situações que possam surgir. Além disto, audiências são filmadas, eternizando tudo o que se passa. Por outro lado, na segunda instância, no STJ e no STF, altera-se o comportamento tradicional de em tudo ver-se nulidade. A interpretação da norma passa a ter a efetividade como meta.
Nesse estágio do que é ou não aceito pelo sistema de Justiça, práticas como a de criar problemas com um juiz para vê-lo perder a serenidade, falar o que não deve e assim tornar-se suspeito, tornam-se fora de moda. Exemplifico com um caso real. Em uma comarca com uma só vara, um experiente advogado detestava o juiz de Direito e criava incidentes em todas as audiências para vê-lo afastar-se da vara ou de seus processos. Um dia, o jovem magistrado perdeu a cabeça, deu um murro na mesa e aos berros dirigiu palavras não muito elogiosas contra a mãe do advogado. Errou totalmente. Resultado, foi removido compulsoriamente para outra comarca.
O magistrado foi ingênuo e pagou caro por perder a serenidade. Esse tipo de conduta, atualmente, dificilmente ocorreria, porque todos, inclusive os juízes, perderam a ingenuidade. Assim, procurar criar animosidade com o fim de tê-los como suspeitos e, consequentemente, afastados da causa, tem se revelado medida inócua.
4. Uso de carro oficial para fins particulares
No passado, não existia qualquer censura àqueles que, ocupando cargo público relevante, usassem os veículos oficiais para fins particulares. O fato era aceito com naturalidade e tal prática era comum. No entanto, com o crescimento populacional, o aumento exacerbado da pobreza e a conscientização da sociedade sobre os limites entre o público e o particular, não se aceita mais tal tipo de atitude.
Por mais alto que seja o cargo, seja qual for o Poder de Estado, nada justifica, entre outras práticas, o uso do carro oficial para ir à uma propriedade no interior, ao supermercado e, muito menos, ter dois veículos à disposição, o que faz pressupor que um deles será usado pelo cônjuge.
Em tais condições, quem persiste nesse tipo de conduta está se arriscando a todo momento. Poderá ser xingado ao parar em um semáforo, eventualmente até a ser agredido. Os nervos estão à flor da pele, e os mais de 12 milhões de desempregados não aceitam o desperdício de dinheiro público.
Portanto, revela inteligência e senso de oportunidade aquele que não abusa desse privilégio. Por óbvio, isso não é fácil. Mas é preciso antecipar-se a uma situação vexatória ou até de risco, ocupando a mídia com o mau exemplo, manchando a própria imagem e a instituição a que serve.
5. Sabe com quem está falando?
Esta, de todas, talvez seja a mais rejeitada das condutas. Comum em passado recente, estimulada, implicitamente, nos tempos da ditadura, hoje não é mais aceita em hipótese nenhuma. Todos submetem-se à lei e a ela devem obediência. Não se aceita mais o “carteiraço”, e já há repulsa, inclusive, quando ele vem camuflado como regra legal. Afinal, a simples existência do foro por prerrogativa de função não é um “sabe com quem está falando” por vias implícitas?
Em suma, é preciso sempre adaptar-se ao novo, abandonar práticas não mais aceitas, perceber que o mundo mudou. Não dá mais para comportar-se como Carolina, na música de Chico Buarque de Holanda, para quem “o tempo passou na janela e só Carolina não viu”.
[1] Vladimir Passos de Freitas, Como a Suécia pode ajudar as relações jurídicas e o sistema de Justiça do Brasil”, em http://www.ibrajus.org.br/revista/artigo.asp?idArtigo=371, acesso em 25/11/2016.
[2] http://www.revistaforum.com.br/2016/11/07/ministros-de-temer-usam-avioes-da-fab-238-vezes-sem-justificativa/, acesso em 24/11/2016.
[3] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/decreto/d8432.htm, acesso em 23/11/2016.
[4] https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/2002/D4244.htm, acesso 24/11/2016.
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