A traição de Judas analisada com a visão do Direito brasileiro
27 de março de 2016, 8h00
Judas, arrependido, enforcou-se. Todavia, passou à história como traidor. Sua conduta é lembrada na literatura (p. ex., Dante Alighieri, na “Divina Comédia”), na pintura (p. ex., Leonardo Da Vinci, no quadro “A última ceia”) e na música (p. ex., Raul Seixas, “Judas”, 1978). Em alguns países, até hoje bonecos que o simbolizam são queimados publicamente no Sábado de Aleluia. E um beijo com falso afeto é chamado “Beijo de Judas”.
Judas Iscariotes não soube zelar sobre a sua imagem na sociedade. Com um só ato passou para a eternidade com a pior das reputações. E dela não se livrará jamais, mesmo que outras versões possam surgir, como a de que ele teria feito um acordo com Jesus, a fim de que este morresse e pudesse, assim, salvar a humanidade (Evangelho de Judas, século II).
Nada melhor do que um Domingo de Páscoa para avaliar a traição e a visão que, dela, tem o Direito. A traição é vista como deslealdade, perfídia, infidelidade, quebra de compromisso ou descomprometimento. Ao traidor, que na linguagem popular é agora chamado de “traíra”, dá-se o desprezo, o reconhecimento de uma atitude reprovável.
Na literatura, a traição foi objeto de grandes obras. Entre elas cita-se “Otelo”, de William Shakespeare, na qual Iago, um invejoso suboficial, cria intrigas que levam Otelo, que era general, a matar sua jovem esposa Desdemona, supondo ter sido traído, e depois a suicidar-se.
No cinema, dezenas de filmes retratam a traição. A título de exemplo, cita-se “Atração fatal”, onde o advogado Dan Gallager (Michel Douglas), que era casado, envolve-se com a executiva Alex Forrest (Glen Close) e acaba enrolado em uma teia da qual não consegue safar-se.
Na música, centenas de canções retratam as reações a este comportamento, sendo que “Ciúmes”, do compositor Roger, cantada pelos Titãs e outras bandas, mostra o conflito entre um personagem que quer se fazer de moderninho, mas sente-se ameaçado pela traição da namorada.
Vejamos, no nosso universo jurídico, as consequências da traição.
No Direito Penal o artigo 240 do Código previa o crime de adultério, punindo-o com quinze dias a seis meses de detenção. Referido dispositivo, que foi revogado em 2005 pela Lei 11.106, raramente foi aplicado, servindo, na maioria das vezes, apenas como prova nas ações civis de desquite. O Índice Geral da Revista dos Tribunais, que abrange o período de janeiro de 1960 a dezembro de 1962, portanto três anos, aponta na página 73 apenas um caso e nele se reconheceu a extinção da punibilidade.
No Processo Penal contemporâneo foi adotada no Brasil a colaboração premiada, mais conhecida por delação premiada (Lei 12.850, de 2013, artigo, 3º, inciso I). Para alguns, ela seria condenável, porque acabaria estimulando uma atitude contrária à ética, ou seja, a traição aos seus parceiros. Este preciosismo ético foi rejeitado pelo legislador, que se curvou à necessidade deste e de outros meios de provas para enfrentar a evolução da criminalidade. A colaboração premiada vem sendo muito utilizada nos crimes econômicos, mas é praticamente desconhecida na investigação das organizações criminosas, onde, sabidamente, o delator seria punido com a morte em breve tempo.
No Direito Penal Militar, o artigo 355 do Código respectivo prevê como ato de traição um brasileiro munir-se de armas para usá-las contra o Brasil ou Estado aliado, ou prestar serviço nas forças armadas de nação em guerra contra o Brasil, punindo tal conduta com pena de morte.
No Direito do Trabalho o artigo 482, alínea “g”, dispõe que configura justa causa para a demissão do empregado a violação de segredo da empresa. Trata-se de flagrante traição que justifica a pena máxima. Vale citar, a título de exemplo, acórdão do TRT da 3ª. Região (MG), no RO 01305201113103000, 7ª. Turma, em 09/08/2013, no qual se decidiu que:
JUSTA CAUSA – VIOLAÇÃO DE SEGREDO DE EMPRESA – CONFIGURAÇÃO. Confirmado pelo próprio reclamante que enviou e-mail para sua irmã contendo informações sigilosas da empresa com a relação de salários dos empregados, que foi repassada para vários colegas, configura-se a quebra de fidúcia a autorizar dispensa por justa causa.
No Direito Empresarial são comuns os conflitos decorrentes da aplicação dos direitos e obrigações relativos à propriedade industrial, previstos na Lei 9.279 de 1996. Muito se discute a respeito do nome, da marca, do logo e do site na internet. O Tribunal de Justiça de São Paulo julgou procedente ação proposta por empresa que imputava à concorrente o uso de nome que dificultava a compreensão do consumidor (combat e kombat), determinando à ré que se abstivesse do uso da marca da autora (APL 00316653520128260577 SP, 2ª. Câmara de Direito Privado, j. 05/11/2004).
No Código do Consumidor o artigo 31 dispõe que a oferta e apresentação de produtos ou serviços devem ser claras, precisas, ostensivas e em língua portuguesa, inclusive contendo os riscos que apresentam à saúde e segurança dos consumidores. Aí está o princípio da confiança que deve estar presente nas relações de consumo e que, opondo-se à traição, dela pode ser considerado o outro lado da moeda.
No Direito Civil o dever de fidelidade no casamento está expresso no artigo 1.566, inciso I. O descumprimento desta regra, por meio de traição, tem dado motivo a ações em que se pleiteia não apenas o divórcio com todas as suas consequências, mas também indenização por dano moral. Todavia, os Tribunais, ainda não consolidaram sua jurisprudência no sentido de acatar a tese.
Na maioria dos casos ela vem sendo rejeitada (TJ-RO, APL 00185527520108220001, 2ª. Câmara Cível, j. 21/10/2015; TJ-RJ, RI 00041478420128190021, 2ª. Turma, j. 25/07/2012; TJ-MG AC 10699060652137001, 2ª. Câmara Cível, j. 19/07/2013; TJ-SP APL 313585820098260554 , 3ª. Câmara de Direito Privado, j. 14/12/2011). Há, contudo, precedentes em sentido oposto. O TJ-PE condenou a mulher a quem se atribuiu adultério ao pagamento de R$ 2.000,00 a título de indenização (APL 3044317, 6ª. Câmara Cível, j. 11/10/2013). O TJ-SC condenou um homem, a quem se imputou adultério, a pagar R$ 10.000,00 de indenização (APL 2013.062427-1, 1ª. Câmara de Direito Civil, j. 25/06/2014).
Como se vê, o Direito não compactua com a traição ou suas variantes, a deslealdade e a quebra de confiança, seja no passado, repudiando Judas Iscariotes, que acabou pondo fim à sua própria vida, seja no presente, impondo diferentes sanções, conforme a matéria.
Finalmente, sempre é bom lembrar que errar é inerente à condição humana. Assim, com traidores ou outros que erram na caminhada da vida, é bom termos um olhar compassivo, avaliá-los pelo conjunto da obra e não lembrá-los apenas pelo mau passo dado, às vezes único em suas existências.
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