A "aliança estratégica" entre positivismo jurídico e hermenêutica de Lenio Streck
23 de março de 2016, 8h39
Em interessante artigo publicado na ConJur[1], o professor Lenio Streck afirmou reconhecer que “o positivismo [jurídico] exclusivo” — especialmente na “versão de [Joseph] Raz e [Scott] Shapiro” defendida, no Brasil, por mim e pelo professor André Coelho[2] —, pode “contribuir sobremodo para uma crítica eficaz […] ao ativismo que se espalha cada dia mais no país”. Nessa linha, sugeriu que talvez seja prudente estabelecer uma “aliança estratégica” entre a hermenêutica e “alguns dos pressupostos” adotados pela teoria juspositivista, de forma a elaborar um “plano salvacionista” contra o ativismo judicial.
As palavras de Streck pegaram muitos de surpresa. Por quê? Simples. Todo o percurso teórico do pós-positivismo hermenêutico defendido pelo autor tem se caracterizado pela tese da “superação filosófica” de “todos” os positivismos jurídicos — os quais não teriam aceitado a “viragem interpretativa ocorrida na Filosofia do Direito (invasão da Filosofia pela linguagem) e suas consequências no plano da doutrina e da jurisprudência”[3]. Streck está disposto a abrir mão dessa premissa? No texto ora comentado, ele deixa bem evidente que não. Mas, isso posto, como poderia ser concebida tal “aliança estratégica”?
É preciso muita cautela ao responder essa pergunta. Desde logo, creio ser necessário advertir: caso não se queira cair em sincretismos teóricos irresponsáveis, a proposta do professor Streck deve ser analisada em suas devidas proporções. Por óbvio, ela não pode ser entendida como um esforço de integração conceitual entre premissas empregadas por ambas as correntes de pensamento. Isso, mais do que inconveniente, seria impossível: a metodologia do positivismo jurídico contemporâneo afirma ser necessário, em um processo de adesão por método, descrever o direito de forma moralmente desengajada antes de avaliá-lo. Como consequência, tem-se a proposição teórica, muito bem resumida por Brian Leiter, de que “normas epistêmicas, sozinhas, são suficientes para demarcar o fenômeno jurídico”[4], algo que Streck, partidário da “tese da descontinuidade”[5] e do Direito como “conceito interpretativo” (Dworkin), não está disposto a aceitar. Sendo assim, concorde-se ou não com a dita “superação filosófica”, o fato está a ilustrar que, a não ser que uma das partes do debate venha a mudar de opinião, os inputs do positivismo descritivo e do pós-positivismo hermenêutico são, simplesmente, incompatíveis. Pós-positivistas continuarão afirmando que o positivismo foi “superado”, e positivistas continuarão apontando falhas nesse raciocínio.
E os outputs? Seriam também eles inconciliáveis? Não necessariamente. Aí mora o cerne do “plano salvacionista” de Streck: o desacordo teórico sobre as fundações do Direito não impossibilita uma abordagem pragmática destinada a iluminar e sistematizar eventuais similaridades de resultado entre teorias rivais no plano conceitual[6]. Isso não significa negar a importância dos debates conceituais mais abstratos sobre a natureza do Direito, e sim afirmar que a invocação de tais divergências metateóricas perde sua razão de ser quando, de forma contingente, duas partes teoreticamente dissidentes consentem em unir forças e refinar argumentos com o objetivo de alcançar um resultado prático específico que concordam ser importante.
Nesse sentido, avizinhar positivismo e pós-positivismo hermenêutico, nos termos propostos por Streck, significa engajar-se em um empreendimento de natureza crítico-normativa que (i) toma como critério de utilidade (“podem ser úteis”) a premissa de responsabilidade política do Poder Judiciário em contextos subordinados a constituições democráticas moralmente boas e (ii) propõe-se a fazer uso (“podem servir”) de alguns ensinamentos do positivismo jurídico que possuem potencial bélico contra o “Estado de Exceção Interpretativo” observado na atual prática jurisdicional brasileira.
Mas ora: na correta lição de Andrei Marmor, o “positivismo jurídico não é uma teoria sobre o dever moral de juízes”[7]. Seria, então, possível “usar” teses de teorias que entendem estar procedendo a uma mera descrição da “natureza do Direito”? É claro que sim[8]. Virtualmente, nenhum “positivista descritivo” nega a necessidade e a importância do empreendimento de valoração moral pós-descritiva daquilo que foi angariado como juridicamente vinculante em um primeiro momento (pós-positivismo fraco). E uma das possibilidades pós-descritivas é, exatamente, a defesa da primazia do texto constitucional e legal.
Os positivismos de Raz e de Shapiro ligam-se, de forma muito íntima, a relevantes ensinamentos da teoria da autoridade que, a meu ver, possuem grande potencial normativo no combate ao ativismo judicial. Não só partem de algumas premissas sempre ressaltadas pelo próprio professor Streck — caráter necessariamente intersubjetivo do fenômeno jurídico, responsabilidade política de magistrados, inexistência de “grau zero” interpretativo etc. —, como também afirmam, cada qual a seu modo, que a característica especial do sistema normativo que conhecemos como “Direito” é a de pretender agir por meio de “razões protegidas”, isto é, razões que, em diferente plano lógico, visam impedir ou precluir o balanço de razões dos indivíduos submetidos à autoridade sobre a conveniência ou não de fazer aquilo que é determinado pela norma jurídica. Em outros termos, é uma característica marcante do Direito reivindicar a autoridade moral de dar a “última palavra” sobre questões sociais moral e politicamente controversas, mesmo contra opiniões individuais sobre o acerto ou não das soluções institucionalmente desenhadas.
Aqui, a “aliança estratégica” começa a ficar um pouco mais clara. Streck, por exemplo, afirma corretamente que “[d]eve haver possibilidades de determinações objetivas no Direito”, bem como que “[D]ireito não pode ser produto de desejos, paixões e ideologias”[9]. Ora, eu já li algo parecido em algum lugar. Onde? Justamente em The Authority of Law, trabalho no qual Joseph Raz esclarece que discussões sobre validade jurídica são resolvidas “em questões suscetíveis de determinação objetiva, acerca das quais as visões políticas e morais de uma pessoa são essencialmente irrelevantes”[10]. Shapiro vai além e, em nítida aproximação com o positivismo ético (teoria que não se pretende metodologicamente descritiva, e sim prescreve, como dever hermenêutico do magistrado, a identificação desengajada do Direito pressuposta pelo positivismo excludente[11]), sustenta que a lógica do planejamento jurídico-constitucional “é respeitada apenas quando o processo de interpretação jurídica não reabre aquelas questões que o Direito objetiva solucionar”[12]. Segundo ele, com autodisciplina, magistrados devem aplicar o Direito inside the box — procedendo a uma mera explicação razoável da ideologia suportada pelo sistema.
Tudo isso torna lícito sugerir que existe uma dimensão pragmática à qual positivismo e pós-positivismo podem voltar-se de forma amistosa. Positivistas podem lançar mão de argumentos do pós-positivismo hermenêutico como o “pamprincipiologismo”: não há nada de mais ofensivo aos propósitos autoritativos e planejadores do Direito do que a existência de magistrados que criam “princípios” moralmente corretivos com o fim de tentar conferir legitimidade postiça a interpretações que nitidamente não retratam o “ponto de vista jurídico”. Da mesma forma, o pós-positivismo hermenêutico pode emprestar à sua argumentação teórica e prática ensinamentos do positivismo: a afirmação do professor Streck de que “o que não podemos fazer é cumprir a lei só quando nos interessa”[13] faz perfeito sentido caso o sistema jurídico seja, em alguma medida, valorado como uma entidade institucionalizada lógico-temporalmente predecessora ao intérprete, suscetível de determinação objetiva (Raz), que tem por finalidade moral precluir, substituir ou afastar aquilo que o magistrado, pessoalmente, pensa ser “certo ou errado” (Shapiro/Waldron/Campbell).
Esse é apenas um dos inúmeros exemplos conciliatórios que podem ser construídos. Estou ciente de que tudo isso pode parecer um pouco escorregadio ao leitor mais cético. Não poderia ser diferente: após aproximadamente duas décadas de beligerância, muitas vezes irracional, entre positivismo e pós-positivismo, qualquer proposta de aproximação pragmática entre as duas teorias tem a tendência de soar como um tipo de engodo intelectual intrinsecamente confuso e potencialmente destrutivo. Mas as coisas não precisam ser assim. Parece estar aberta a temporada da boa vizinhança. Com o devido cuidado, o jurista que franze o sobrolho a cada decisão judicial ativista proferida pelos tribunais pátrios pode esbaldar-se em teses relevantes de ambas as teorias. Há bons argumentos dos dois lados, e nada leva a crer que, com boa vontade, alguns deles não possam ser mutuamente reforçados.
[1] Cf. o artigo Hermenêutica e Positivismo contra o Estado de Exceção Interpretativo. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2016-fev-25/senso-incomum-hermeneutica-positivismo-estado-excecao-interpretativo.
[2] Tudo o que será escrito, por mim, neste ensaio, é de responsabilidade exclusivamente minha. Pode haver proposições com as quais o professor André Coelho, mesmo sendo adepto do positivismo jurídico excludente, não concordará.
[3] STRECK, Lenio. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista?. In: Revista NEJ – Eletrônica, Vol. 15 – n. 1 – p. 158-173 / jan-abr 2010, p. 159.
[4] LEITER, Brian. Naturalizing jurisprudence: essays on American legal realism and naturalism in legal philosophy. New York: Oxford University Press, 2007, p. 168.
[5] Para Streck, “pós-positivismo não é uma continuidade do positivismo” (STRECK, Lenio. Lições de crítica hermenêutica do direito. 2. Ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016, p. 132). Sobre a rejeição da “tese da complementariedade” proposta por autores do positivismo includente, cf. STRECK, Lenio. Verdade e consenso. 4. Ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57.
[6] Cf. CANO, Roberto M. Jiménez. Una metateoría del positivismo jurídico, Madrid: Marcial Pons, 2008, p. 110.
[7] MARMOR, Andrei. Philosophy of Law. New Jersey: Princenton University Press, 2011, p .114.
[8] Em crítica a Herbert Hart, Waldron apontou para o fato de o autor britânico “não ter feito nada” com teses “descritivas” que eram “certamente promissoras” a finalidades normativas como a crítica ao judicial review. Não à toa, Waldron acrescentou que seu propósito, naquele livro, era “desenvolver um argumento [normativo] que poderia ter sido construído nas fundações que Hart nos proveu, mas que não foi” (WALDRON, Jeremy. Law and disagreement. New York: Oxford University Press, 1999).
[9] Cf.: http://www.conjur.com.br/2012-jun-21/senso-incomum-pec-37-emenda-insensatez-pes-curupira.
[10] RAZ, Joseph. The Authority of Law. 2. ed. New York: Oxford University Press, 2009, p. 152.
[11] Cf. WALDRON, Jeremy. Normative (or Ethical) Positivism. In: COLEMAN, Jules (ed.). Hart's Postscript: Essays on the Postscript of the Concept of Law. New York: Oxford University Press: 2001, p. 414. Mesmo na hipótese de deslocamento do debate para a área da filosofia política normativa, da qual, segundo Andrei Marmor, o positivismo ético faz parte, a “aliança estratégica” proposta pelo professor Streck ainda deve ser vista com cautela. Streck, por exemplo, afirma que, à luz de sua teoria, “o rigoroso controle das decisões judiciais (…) não quer dizer — sob hipótese alguma — diminuição do papel da jurisdição (constitucional)”. O positivismo normativo, neste ponto, é mais radical, e defende, sim, que o papel da jurisdição deve ser reduzido.
[12] Idem, p. 398. A tradução de “unsettle” e “settle” como “reabrir” e “solucionar” pareceu-me mais adequada ao contexto da frase de Shapiro.
[13] STRECK, Lenio. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista?. In: Revista NEJ – Eletrônica, Vol. 15 – n. 1 – p. 158-173 / jan-abr 2010, p. 171.
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