Opinião

Pontos emblemáticos da aplicação da audiência de custódia

Autor

  • Carlos Eduardo Pellegrini

    é delegado da Polícia Federal mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (Espanha) professor da pós-graduação da Escola Paulista de Direito e de Processo Penal da Rede Educacional Damásio no curso de Carreiras Jurídicas.

9 de maio de 2016, 6h44

Com alguns meses de aplicação do procedimento de audiência de custódia pelo país, tanto na área estadual quanto na área federal, com exceção da capital do estado de São Paulo onde a experiência já foi construída desde 2014, com uma média de 120 flagrantes por dia[1], é possível constatar alguns pontos emblemáticos.

Entre eles, pode-se citar as hipóteses de: o cômputo do prazo de 24 horas dos casos flagrâncias; o Juízo competente para apreciar a matéria; a possibilidade de utilização de videoconferência; cadeia de custódia de bens do preso; arbitramento abusivo de fiança; decretação de prisão domiciliar a mulheres grávidas; determinação de uso de tornozeleiras e recolhimento noturno; escolta de custodiados e, principalmente, impossibilidade de análise de mérito.

Pois bem, esses são os pontos sensíveis, os quais atormentam não só o operador do direito, mas o gestor público tanto do Poder Judiciário como do aparato policial.

Longe de esgotá-los, passa-se a enfrentá-los com sugestões, muitas delas obtidas mediante troca de experiência em encontros com juízes, promotores, advogados e delegados, no âmbito estadual e federal.

O cômputo do prazo de 24 horas fixado no artigo 1° da Resolução 213/2015 para apresentação do preso em Juízo. Este tema pode até passar desapercebido, quando se analisa a criminalidade tal e qual posta sob a égide do CP/1940, onde os crimes de caráter individual não criarão óbice para aplicação do instituto.

No entanto, a criminalidade do século XXI mostra outra realidade, crimes complexos, interestaduais ou transnacionais, inseridos no contexto de uma sociedade de massa e no mercado capitalista, leva frequentemente a autoridade policial na lavratura de auto de prisão em flagrante a situações extremas, principalmente aquelas que envolvem crimes permanentes como associação criminosa e organização criminosa, com o pleno exercício da atividade policial em mais de uma circunscrição ou Estado da federação, cujas ações são, de fato, coordenadas de modo concomitante para execução efetiva de constrição do maior número de integrantes.

Nessas hipóteses, é intuitivo que a lavratura do auto de prisão em flagrante percorrerá período superior a 24 horas como o caso de organização criminosa especializada em tráfico de drogas, os quais os atravessadores das drogas ilícitas oriundas do Paraguai estão na divisa do estado do Mato Grosso do Sul e São Paulo, o depósito na cidade de Guarulhos, os distribuidores em Santos, e os líderes em São Paulo, uma vez decido, como estratégia policial, a ação de prisão simultânea e coordenada, exigirá árduo trabalho da autoridade policial em trazer os criminosos para a delegacia com todos os elementos de formação de prova para identificar a autoria, individualizar a conduta e comprovar a materialidade.

Este caso afeto ao cotidiano das delegacias, não somente de atribuição a matéria de entorpecente, como outras segundo diversos exemplos que poderiam ser citados para ilustrar a complexidade do tema, exige do operador do direito razoabilidade. Neste caso, a autoridade policial deverá comunicar o andamento do flagrante ao Juízo competente e ao membro do Ministério Público, mediante despacho fundamento nos autos, mesmo porque tanto a Constituição Federal (artigo 5°, inciso LXII) como a Convenção Interamericana de Direito Humanos (artigo 7°, item 5) não mencionam o prazo de 24 horas, pelo contrário, dispõe a respeito sobre período razoável, sem demora.

Resta saber quando se inicia o cômputo deste prazo. Seria da situação flagrancial, do momento em que for dada voz de prisão, quando da apresentação ao delegado, do registro da ocorrência, do ato da lavratura, quando tomar ciência dos direitos e garantias. Enfim, diversas possibilidades existem em face de omissão infralegal.

Seria ponderado propor o termo inicial do cômputo do prazo a partir do momento em que foi dada ciência da nota de culpa ao preso, na medida em que, nos casos de associação ou organização criminosa, deverá iniciar quando o último integrante da situação flagrancial receber a presente notificação dentro de um critério de brevidade, comunicando sempre o Juízo de eventuais imprevistos próprios da dinâmica da atividade persecutória.

Grande celeuma refere-se também ao disposto no parágrafo único do artigo 13 da Resolução, pois determina a aplicação nas hipóteses de mandado de prisão cautelar ou definitivo ao Juízo distinto do que foi expedido a ordem, quando o preso por lá for capturado. Como outro Juízo poderá avaliar as prisões cautelares, mesmo que não analise o mérito, apenas os pressupostos procedimentais, as hipóteses de conversão da prisão em preventiva, substituição em medidas cautelares, concessão de liberdade provisória ou fiança, não sendo o Juízo natural do feito.

Neste ponto, cabe o CNJ rever aplicação deste disposto quanto a competência como a aplicação do procedimento incidental para as hipóteses de mandado judicial, com a sugestão de restringir-se apenas as questões de legalidade do cumprimento da medida.

Outro meio discutível de aplicação da audiência de custódia é a utilização de videoconferência. Prever expressamente a proibição desta tecnologia é renegar a imensidão territorial do país. Existem comarcas no Brasil como a de Tabatinga, cuja distância é de 1.105 Km da capital do Amazonas, sendo percorrida em dois dias mediante a utilização de três tipos de transporte, avião, barco e automóvel. Para casos análogos, é salutar utilizar a tecnologia a favor de fruição da prestação jurisdicional para proteção da integridade do preso.

A cadeia de custódia, mesmo dos bens do preso que não interessam a investigação, é uma questão que não pode ser relegada a segundo plano, pois o Estado tem o dever de proteger a propriedade do cidadão, até mesmo daquele que comete crime. É medida de ordem afeta à organização dos serviços de atribuição dos gestores tanto da Polícia (Militar, Civil e Federal) como do Poder Judiciário.

Na prática forense, percebe-se em alguns casos que a Autoridade policial exaspera o arbitramento de fiança para os delitos cuja pena máxima cominada é inferior a 4 anos (CPP, artigo 322), o que caracteriza verdadeira decretação de prisão preventiva às avessas. Hipóteses que sequer haveria necessidade de apresentar o preso, pois livrar-se-ia solto com o Juízo acautelado. A correção exige parcimônia e proporcionalidade da aplicação da fiança pelo delegado de Polícia de acordo com os parâmetros postos pelo CPP (artigo 325 e 326).

A decretação de prisão domiciliar para mulheres grávidas a partir de 7 meses era decorrência de respeito à lei (CPP, artigo 318, IV). O problema residia, particularmente nas comarcas mais distantes e desprovidas de recurso, de como o juiz constataria o período gestacional. A controvérsia foi resolvida pela Lei 13.257, de 8 de março de 2016, que revogou o mencionado inciso, incluído apenas o termo gestante, o qual também exigirá do Juízo meios para averiguar esta condição.

As medidas cautelares diferentes da prisão como uso de tornozeleiras e recolhimento noturno depende para satisfazer a efetividade de prestação judicial, fiscalização, além, é claro, de destinação de recursos para aquisição e exercício. Em regra, os recursos serão do Poder executivo estadual adimplidos pela Secretaria de Administração Penitenciária dos Estados. Uma forma interessante de realizar esta fiscalização será pelo meio aleatório, proposta, aliás, feita pelo Departamento de Inquéritos Policiais (DIPO), vinculado ao Poder Judiciário de São Paulo, ao Governo do Estado.

A escolta de custodiados é, de fato, outro problema crônico enfrentado por todas as esferas de governo. O efetivo policial, seja ostensivo ou de caráter judiciário, encontrasse escasso para atender todas as demandas. A área federal é ainda mais crítico, pois setores como o planejamento operacional, acumulou a função de execução da audiência de custódia, com cumprimento de capturas, mandado de intimações e escolta regulares de presos para as audiências comuns. Não é apenas uma questão de organização policial ou de caráter logístico, é, de fato, uma questão de recursos humanos e materiais, o que exigirá consenso de todos os envolvidos, especialmente dos gestores do Judiciário e da Polícia, para ajustar, de modo pragmático, a fruição dos direitos do preso. A busca pelo consenso para atendimento desta demanda não pode ser, pelo menos como posta na esfera federal, com cada juiz titular das Varas do Fórum. É necessária decisão macro para regulamentar todas as hipóteses de organização judiciária da audiência de custódia.

Todas as adversidades colhidas no cotidiano forense mencionas são relevantes, porém a que demanda maior preocupação para equacionar a paridade de armas entre o Estado e o criminoso, é a vedação da análise de mérito, previsto no artigo 8°, inciso VIII, da Resolução. Se, por um lado, o móvel normativo foi proteger o devido processo legal e a relação dialética de igualdade entre acusação e defesa, por outro, a atividade policial restou desguarnecida, máxime quando das hipóteses de autolesão e uso da força em razão de fuga da situação flagrancial[2].

Inúmeros são os cases, basta analisar os precedentes de investigação devidamente registrados e documentados, de autolesão praticado pelo preso antes, durante e depois da situação flagrancial como os famosos “engolidos”, que transportam drogas ilícitas no intestino em viagens internacionais, e quando presos, por outro fato ou por pequena quantidade de droga em bagagem, não revelam tal situação ao Delegado e seus agentes; casos de prática de suicídios em custódia com celas individuais; fuga do local do crime com quedas de muros altos ou hipóteses de autolesão em ofendículos entre outras inúmeras situações corriqueiramente constatada na atividade policial.

Para os casos aventados, tem-se a firme convicção que todos os elementos de formação de prova do curso da autolesão deverão ser amealhados e, mediante despacho fundamentado da autoridade policial, comunicado, quando da entrega do auto de prisão em flagrante, ao juiz competente para analisá-lo, ainda que dentro de um juízo de cognição sumária, a fim de corroborar com o livre convencimento racional de modo que permite, de plano, constatar a autolesão. 

Se o delegado não tomar, por cautela, o devido cumprimento deste procedimento poderá influenciar o Juízo a erro pelo falso convencimento da situação, o que pode, em tese, caracterizar com a elaboração do exame de corpo de delito em atos de maus-tratos ou, dependendo da índole do criminoso, em tortura.

As hipóteses de fuga de situação flagrancial e autolesão representam questões sensíveis para a atividade policial durante a audiência de custódia sendo certo que exige da Autoridade policial redobrado cuidado no zelo da colheita e custódia da cadeia dos elementos de prova e, no mesmo sentido, para o Juiz quando da análise de mérito do contexto da execução da prisão.

Por fim, ressalta-se o tema da prática de atos de tortura quando da apresentação do preso. É certo que a polícia moderna utiliza técnicas especiais de investigação baseada em doutrinas internacionais para aperfeiçoar a atividade, porém não se pode refutar casos neste torrão.

O delegado tem o dever de ofício em cumprir o procedimento de perquirição flagrancial em busca da verdade real (CPP, artigo 304). Caso constante atos de tortura, tem a obrigação de lavrar dois autos, um para a prática do delito do conduzido e outro em relação ao condutor. Pode-se também deixar de lavrar o auto de prisão em flagrante do conduzido, se verificar que a tortura foi o único meio empregado para alcançar o estado flagrancial em obediência as garantias dispostas no artigo 5°, XLIII e LVI, da CF combinado com o artigo 5°, item 2, CIDH[3] e artigo 7° do PIDCP[4].

A matéria vindica, como em todas as demais significativas à construção da política criminal, o enfrentamento sobre uma nova perspectiva, despido de qualquer estigma, criado por um resquício histórico, capaz de influenciar negativamente a análise do fato no procedimento cautelar incidental ao inquérito policial ou ao processo penal propriamente dito.

Essa nova ordem exige não apenas declarar as garantias da dignidade humana, porém de assegurá-las seja no âmbito policial seja na esfera jurisdicional e, sobretudo, na prestação social dos serviços do Estado, como, pioneiramente, é realizado pelo Tribunal Bandeirante com a criação da Central de Alternativas Penais de Inclusão Social (CEAPIS), a qual é providenciado serviços de higiene, refeição, vestuário e transporte ao custodiado.


[1] Fonte: Departamento de Inquéritos Policiais do Foro Regional da Capital/SP (DIPO), 2016.

[2] O tema dos limites do uso da força policial foi firmado no precedente case Armani vs. Reino Unido pela Corte Europeia de Direitos Humanos em 30.03.2016.

[3] Convenção Interamericana de Direitos Humanos de 1969.

[4] Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966.

Autores

  • é delegado da Polícia Federal, mestre em Direito Penal Internacional pela Universidade de Granada (Espanha), professor da pós-graduação da Escola Paulista de Direito e de Processo Penal da Rede Educacional Damásio no curso de Carreiras Jurídicas.

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