Opinião

Antiguidade e merecimento são critérios complementares na promoção de juízes

Autor

  • Ney Bello

    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região professor da Universidade de Brasília (UnB) pós-doutor em Direito e membro da Academia Maranhense de Letras.

12 de junho de 2016, 16h49

O modelo constitucional brasileiro exige que os tribunais de apelação sejam compostos principalmente de juízes de carreira, a partir dos critérios de antiguidade e merecimento, alternadamente.

A razão de ser da alternância é a valorização da longevidade profissional dos magistrados — independentemente da correção individual, da capacidade laboral, da dedicação ou da competência — e o aplauso à operosidade, à qualidade do serviço prestado, à importância do trabalho executado e ao conteúdo do juiz em questão.

Por um critério, se faz loas ao tempo de casa, e, por outro, se valoriza a competência no exercício da causa.

Aproveita-se a experiência de uns e a reconhecida competência de outros. Mescla-se a potencial ponderação de alguns, com a força construtiva de tantos. É uma mescla de ditados: "Roma não se fez em um dia", "Determinação e trabalho árduo erguem cidades".

São critérios complementares.

A Justiça brasileira tem muitas notícias de distorções. Promoções por merecimento imerecidas que ocorrem por relacionamentos fáceis, parentescos justificantes e obediência a critérios nem sempre sustentados no exercício profissional. Ou, o que é mais comum, por critérios de política interna de cada tribunal. Por merecimento também podem chegar os apadrinhados. Os melhores nem sempre se tornam desembargadores nas cortes.

Da mesma maneira, por antiguidade, por decurso de tempo nos assentos da judicatura, também podem chegar os inoperantes, os incompetentes, os processados criminalmente e os sem compromisso com a Justiça. Ou os que viraram juízes sabem lá os deuses por qual sorte no concurso público. Por antiguidade, também podem chegar os piores, pois o único crivo é o tempo.

Alguns juízes vêm à ribalta requerer — no uso do seu absoluto e democrático direito de postulação — que o tribunal afaste o critério constitucional do merecimento e passe a promover juízes à desembargador exclusivamente em respeito à fila indiana da antiguidade.

Isso implica exatamente o quê?

À partida significa o desejo de regimentalmente ignorar ou abolir um parâmetro constitucional claro: promoção ao tribunal se dá por antiguidade e por merecimento. Não só por uma. Não só por outro.

Além disso, significa dizer que o tribunal será melhor se composto daqueles que mais cedo entraram na carreira pela porta do concurso, independentemente da competência. Sem constatação de dedicação. Sem preocupação com a qualidade do trabalho prestado. Lá encontrariam ex-advogados e ex-membros do Ministério Público possivelmente jovens, e a feição das cortes mudaria: quinto jovem a conviver com juízes antigos na carreira.

Com o aumento do limite de aposentadoria para 75 anos, é fácil projetar que, a se acolher esse critério único, passaríamos a ter cortes de apelação mais idosas que os tribunais superiores. Chegar-se-ia ao tribunal somente no fim da carreira. Não quando se está no auge da força produtiva, mas quando já se atingiu a fase do acinzentamento dos cabelos. O tribunal seria a antessala das aposentadorias.

Uma frase antiga precisa ser lembrada: "O tempo do tribunal é o tempo de seus membros". Uma corte sem a oxigenação dos merecimentos seria arcaica, pois teria a visão de Justiça do período de maior força produtiva de seus integrantes: os idos passados. O tempo que corre estaria divorciado do tempo no qual se labora. Tribunal antigo para tempos modernos.

O erro também existiria se se abolisse a antiguidade. O tribunal sem a ponderação dos mais experientes possuiria ebulição em demasia para uma Justiça de colmatação de costumes. Tribunal deve ser terreno de ponderação, jamais de arroubos.

Usar um único critério seria útil?

A assunção deste único método de entrada — a antiguidade — também abandona a meritocracia. Não haveria mérito em ser desembargador. Só a constatação da ancianidade profissional. Não se chegaria mais à promoção por ser bom juiz. Chegar-se-ia por ser antigo. Não raro, velho!

Há uma certa qualidade nisso, afinal, "o diabo sabe, não porque é sábio. O diabo sabe, porque é velho", diz o ditado.

De fato, há pessoas com tempo de magistratura que são mais jovens que muitos juvenis; têm mais força e dedicação que um sem número de recém-aprovados. A Presidência do TRF-1 é um exemplo disso.

Nos tempos que correm, do que precisamos não é de tribunais que reconheçam a mudança de tempos e a mudança de realidade? Tribunais avançados e encartados num mundo em movimento?

Estamos na era do fim do papel. Estamos no tempo do processo eletrônico.

Além de sábio, precisamos de um tribunal que se modernize e se reinvente e acompanhe as mudanças de gerações, não é mesmo?

Seria útil a lógica de uma fila indiana por tempo de aprovação em um concurso que se perdeu no tempo?

O que faz crer que o juiz antigo seja melhor que o magistrado novo, ao ponto de excluí-lo do acesso ao tribunal? Merecer mais por estar mais tempo sentado na mesma cadeira? Às vezes, trabalhando menos, produzindo menos, possuindo menos compromisso com a carreira e com mais cansaço… Acaso as pedras são mais belas que a areia só porque o tempo as fossilizou e as endureceu? Donde a certeza de que o acúmulo de tempo produz melhor jurisdição? Ou não queremos no tribunal os melhores juízes para prestarmos um serviço melhor e, na verdade, desejamos apenas a satisfação pessoal de ser desembargador?

Há direito adquirido a fazer parte de uma corte de apelação independentemente da qualidade, da competência, da dedicação e do trabalho jurisdicional prestado?

Pensar o sistema! Não pensar somente em si próprio! Esse é o caminho.

Isso suscita uma outra questão: o que move alguns magistrados na busca do fim das disputas por merecimento?

De logo fica fácil ver que alguns já disputaram os tribunais em vagas  por merecimento. Tiveram poucos votos — um ou dois —, às vezes nenhum.

Se o tribunal não lhes reconheceu o autoconsiderado merecimento, fatalmente entendem eles que aqueles desembargadores, que atribuíram merecimento a outros colegas, foram injustos. Logo, a pensar assim, é tão somente a vaidade que os leva ao reclame do critério. É o não reconhecimento por outros da competência que os próprios insistem que possuem e que desejam ver reconhecida. Nada de propositivo para o serviço jurisdicional. Só vaidade. Não é o império da Justiça. É o império do narciso.

E o pensamento passa a ser o do individualismo: "Se o tribunal não reconhece que eu o mereço, então acabemos com o merecimento, pois a antiguidade ninguém me retirará". Nada de contributivo com o sistema de Justiça. Só rancor pessoal.

Demais disso, a opção pelo critério único da antiguidade traz consigo duas incoerências insuperáveis: uma pessoal. Outra institucional.

Vários dos juízes que manifestam-se pelo critério único da antiguidade no modelo da fila indiana não são os mais antigos, e fatalmente aceitam convocações para os tribunais — substituindo em férias e judicando em turmas suplementares, em detrimento de outros à sua frente, com mais tempo de casa.

A respeitar o critério que eles próprios entendem deva ser único, as férias e todas as demais convocações para os tribunais deveriam se dar na exclusiva pessoa do juiz mais antigo. Não faz sentido exigir do tribunal um comportamento que o próprio exigente não se dispõe a ter. A valer esse critério, também as substituições nas varas deveriam se dar com observâncias desse mesmo método, e não faria sentido a alternância de substituições por razões desconexas à prestação jurisdicional, como a percepção da GAA, por exemplo. O juiz substituto mais antigo substitui o colega. E ganha por isso. Não haveria rodízio.

Ou a antiguidade só vale até o limite que beneficia o proponente?

A linha de coerência exige pensar o sistema, e não querer para si o mundo que lhe pareça mais benéfico a seus próprios anseios.

Há nisso uma profunda incoerência pessoal.

Demais disso, a escolha de desembargadores exclusivamente pelo critério da antiguidade destrói a democracia interna. Eleger os desembargadores da lista — com eleições diretas por toda a magistratura — parece muito mais razoável. Hoje, num tribunal de apelação, em média 26 elegem a lista. Não seria desarrazoado que 600 elegessem a lista tríplice. Ou que se acabasse com a lista e toda a magistratura votasse na escolha do novel desembargador.

Como defender eleição direta para presidente nos tribunais de apelação e ao mesmo tempo defender o exclusivo critério da antiguidade para composição do próprio tribunal?

Para desembargador, só o mais antigo! Para presidente do tribunal, poderá ser até o mais moderno, desde que ganhe a eleição. Para desembargador, a gerontocracia; para presidente, a democracia! A História e a Sociologia não nos permitem uma contradição nesses termos.

Contudo, há uma razão para o movimento de imputação da antiguidade contar com o apoio também de juízes substitutos recém-ingressados, ou com pouco tempo de casa e extremamente novos. Há uma razão para um juiz no começo ou no meio da carreira abrir mão de ser reconhecido pelo seu trabalho optando por resignar-se a ser promovido apenas no fim da profissão, nos estertores da vida útil, considerando o tamanho da nossa magistratura atual.

Eles não se sentem representados pelo tribunal a que estão submetidos. Não reconhecem como válidos os critérios usados para a busca do merecimento. Os tribunais cresceram e se distanciaram da base. Paulatinamente afastaram-se dos juízes ao ponto de até mesmo a linguagem os segregar. Conheço poucas expressões de tanto mau gosto quanto "juiz de piso"! Os tribunais se colocam em antítese aos juízes, e vice-versa. Distanciamento que gera desconsideração e, não raro, desrespeito e esquecimento. Há uma reatividade da primeira instância à cúpula. E por culpa dos próprios tribunais, penso eu! Também por um choque de gerações. Não jogamos todos no mesmo time. E o quadro tende a piorar com o aumento da data limite de aposentadoria para 75 anos.

A questão é que a medida proposta, em vez da resolução dos problemas descritos, promove a radicalização dos equívocos, o aumento do fosso, o isolamento dos tribunais, a eternização do cansaço e a proteção de uns poucos.

Promover a todos por antiguidade transformará o fosso em oceano, queimará as poucas pontes existentes entre a modernidade e o classicismo, entre o presente e o passado…. E matará o futuro.

Precisamos nos aproximar — tribunais e primeira instância, — juízes novos e juízes antigos.

O que precisamos é fixar critérios, corrigir distorções e clarear o procedimento. Objetivar o merecimento é o caminho de recolha dos melhores, dos que venham a ser merecidamente desembargadores. Precisamos saber o que é e o que não é merecimento. Precisamos saber diferenciar claramente quem merece de quem não merece. Isso, sim, faz sentido. Formar uma fila indiana onde entram todos — os rejeitáveis e os merecedores — não faz qualquer sentido.

Igualmente, precisamos de um filtro atuante também na antiguidade. Não é razoável o juiz processado ou investigado virar desembargador. Não é razoável o juiz que não trabalha virar desembargador. Não é razoável o juiz sem mínimo conteúdo chegar ao tribunal. A antiguidade não pode ser a porta da absolvição de todos os pecados. A recusa do mais antigo deve, também, se tornar uma prática cotidiana, se houver motivo fundamentado e justificado.

Além disso, o critério da antiguidade pode, inclusive, ser um dos filtros do merecimento. O modelo do quinto — onde somente os 20% mais antigos concorrem — não é ruim. Não atinge a Justiça Federal, por decisão do Supremo Tribunal Federal, mas é um método de possível aplicação.

E quais seriam os critérios de merecimento?

Para alguns, estatística e volume: quem mais jugou, merece mais. Porém, que mérito há na quantidade se a qualidade deixar a desejar?

Para outros, o conteúdo: as mais bem fundamentadas decisões com mais conteúdo e qualidade. Porém, do que adianta isso se os processos se acumulam, e o caos no acervo reina?

Para uns tantos, os melhores currículos: quem mais se aperfeiçoou e mais títulos obteve, merece mais. Contudo, que adianta juiz cultíssimo e estudioso, por todos reconhecido, sem a dedicação ao dia a dia da magistratura?

Há quem veja no exercício único da magistratura o melhor critério: quem é só juiz e muito se dedica, merece mais. Mesmo que as decisões sejam mal fundamentadas, frágeis, fracas e de reforma necessária, e ainda que a estatística seja baixíssima?

Há quem veja na ponderação e na afabilidade o melhor critério: relacionar-se muito bem com os pares — de todas as instâncias — e ser respeitado como juiz é o que o faz merecedor. No entanto, o tribunal seria o prêmio de quem tem postura mesmo sem ter conteúdo e dedicação?

Há quem veja no reconhecimento por várias instituições a razão de ser do merecimento: quem ganhou prêmios, foi convocado por cortes superiores, ocupou TREs e obteve convocações no próprio tribunal já provou que merece a promoção. Porém, ser juiz auxiliar — mesmo no STF — pode advir de um ato completamente dissociado da capacidade funcional. E vencer prêmios como o Innovare pode acontecer por esforço de outros, ou com projeto que não valorize especificamente o serviço jurisdicional.

Isso dá de pensar que não há critério perfeito, e se faz necessária a combinação de critérios. A clareza, a objetivação e a aproximação da realidade precisam prevalecer.

Não se pode conviver com protecionismos na magistratura. A era dos duques, príncipes e barões já se foi. Vivemos uma república, e as escolhas devem ser republicanas. Critérios plurais, objetivos, demonstráveis e que permitam um mínimo de subjetividade.

Há republicanismo nisso! Há democracia nisso! Há modernidade nisso!

Embora a intenção dos juízes seja a melhor possível — a escolha da gerontocracia só engessa, só torna aristocrática a Justiça e só torna injusta a composição dos tribunais. Injusto com quem é bom! Injusto com quem trabalha! Injusto com quem faz a diferença!

Precisamos urgentemente objetivar critérios de merecimento, aproximar o tribunal do primeiro grau e construir uma Justiça com meritocracia. Não só por critério de ancianidade e jamais por protecionismos.

A antiguidade deve ter seu lugar! O merecimento também.

O que precisamos é garantir contemporaneidade com impessoalidade; meritocracia com avanço institucional.

Roma não se fez em um dia. Determinação e trabalho árduo erguem cidades!

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    é desembargador no Tribunal Regional Federal da 1ª Região. Pós-doutor em Direito, professor, membro da Academia Maranhense de Letras.

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