O Plano Temer e a ausência de teto para arrecadação
12 de julho de 2016, 8h00
O Plano Temer não se parece em nada com os bombásticos planos econômicos do século passado. Não teve entrevista coletiva com trapalhadas, tais como as que ocorreram com o trio do Plano Collor: Zélia Cardoso de Mello, Ibrahim Eris e Antonio Kandir. Não houve incitamento à “cidadania consumidora” da população em busca de boi no pasto, como fez Dílson Funaro, no Plano Cruzado, que criou os “fiscais do Sarney”. Nem foi apresentado com tabelas complexas e explicações herméticas, como fizeram os ministros da Fazenda do governo Sarney Bresser Pereira e Maílson da Nóbrega, cada qual a seu tempo, sendo que esse último legou uma inflação superior a 70% ao mês para o sucessor. O Plano Temer nem mesmo gerou impactos diretos e imediatos nos contratos e na economia, como o Plano Real, que criou a URV. Nada disso.
O Plano Temer, até aqui, consiste apenas na proposta de Emenda Constitucional 241, que se propõe a introduzir cinco artigos ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), que, se aprovados, se tornarão os artigos 101 a 105. Nada de pirotecnia normativa; um único texto seco e enxuto. Seu impacto será direto e enorme no setor público, e apenas indireto no setor privado da economia. Seguramente, o Congresso fará alterações no texto, dentre elas a inclusão dos estados nas limitações previstas na PEC, fruto das negociações havidas com os governadores para redução e parcelamento de suas dívidas.
Observando juridicamente o que foi até aqui apresentado, vale analisar (a) em que consiste o Plano Temer (PEC 241) e (b) quais suas principais lacunas?
O artigo 101 proposto pela PEC batiza o Plano Temer de Novo Regime Fiscal para vigorar por 20 anos. É isso mesmo; trata-se de mais uma “Emenda Permanente ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias”, semelhante ao que vem sendo feito pelas oito sucessivas Emendas Constitucionais que renovam periodicamente a Desvinculação de Receitas da União (DRU) desde o governo Itamar Franco. Existe a possibilidade de revisão dos limites estabelecidos após dez anos de aprovação da PEC, na forma proposta pelo artigo 102, parágrafo 7º, se o presidente da República àquela época entender necessário, pois a iniciativa legislativa é exclusiva dele, embora só possa ocorrer por meio de lei.
O artigo 102 proposto pela PEC é o cerne do plano. Ele estabelece limites para o crescimento dos gastos públicos obrigatórios não financeiros, leia-se: despesas com pessoal e seus encargos (artigo 18, LRF), além de outros gastos correntes, como passagens, hospedagem, papel, caneta, luz, água etc.
A pedra de toque do plano está na limitação dos gastos. O montante para 2017 serão os gastos feitos em 2016, incluindo os “restos a pagar referentes às despesas primárias” (artigo 102, parágrafo 8, PEC), acrescidos da inflação anual do período anterior (IPCA).
Não se trata de um limite global para os gastos públicos primários não financeiros, mas um limite individualizado por órgão ou poder. O artigo 102 da PEC é expresso ao nominar: “Limite individualizado para a despesa primária total do Poder Executivo, do Poder Judiciário, do Poder Legislativo, inclusive Tribunais de Contas da União, do Ministério Público da União e da Defensoria Pública da União”. Isso é de suma importância, pois é usual, em especial nos estados, que esses poderes/órgãos políticos, descumpram a limitação para gastos com pessoal, que já é estabelecida pela Lei de Responsabilidade Fiscal, e absolutamente nada ocorra. Nenhuma sanção. No âmbito do STF existe a consagrada tese da Intranscedência das Medidas Restritivas de Direitos, cuja decisão paradigmática é a ACO 1.612, do ministro Celso de Mello, que, sob a alegada autonomia desses poderes/órgãos, deixa de aplicar as sanções estabelecidas. É por isso que, muitas vezes, os salários do Poder Executivo são inferiores aos do Legislativo, Judiciário e Ministério Público. Isso gera incontáveis pedidos de “equiparação para cima”, aumentando de forma incontrolável a folha de salários. Basta ver o que ocorreu com o auxílio moradia que o Poder Judiciário se autoconcedeu, em decorrência de uma liminar do ministro Fux, criando despesas sem nenhuma previsão orçamentária, seja federal ou estadual. É claro que, desse jeito, as contas públicas não podem fechar — observem que menciono apenas um único e singelo exemplo.
Caso esse limite seja extrapolado, diz o artigo 103 da PEC que será vedado: I) conceder qualquer vantagem, aumento, reajuste, etc., exceto os derivados de sentença judicial ou de atos anteriores à vigência da referida PEC; II) criar cargo, empregou ou função que acarrete aumento de despesa; III) alterar as carreiras públicas, de modo a aumentar a despesa; IV) admitir ou contratar pessoal a qualquer título, ressalvadas a reposição de cargos de chefia ou direção (desde que não acarretem aumento de despesa), e em razão da vacância de cargos efetivos; V) será também vedada a realização de concursos públicos. Além disso, caso ultrapassado o teto de gastos pelo Poder Executivo, não será mais permitida a concessão de subvenções, subsídios ou renúncias fiscais.
Desse modo, todos os gastos públicos primários não financeiros, com ênfase para os que se referem a remuneração de pessoal e seus encargos (artigo 18, LRF), devem se limitar ao que foi executado em 2016, acrescido apenas da inflação anual do período, pelos próximos 20 anos, com possibilidade de revisão na metade desse prazo, a critério do presidente da República, e por decisão do Congresso.
É basicamente isso o Plano Temer: contenção dos gastos com remuneração de servidores públicos e seus encargos pelos próximos 20 anos. Cada poder/órgão político, que se ajuste internamente, organizando sua folha de pessoal dentro dos limites estabelecidos na PEC.
De alguma forma, esses artigos 102 e 103 da PEC lembram uma antiga brincadeira infantil, de estátua, em que uma criança era obrigada a ficar parada quando essa palavra era pronunciada por outra, sob pena de pagar prenda. É essa a proposta veiculada pela PEC nesses dois artigos: que todos os gastos fiquem paralisados no nível de 2016, pelos próximos 20 anos, apenas com a reposição da inflação.
Algumas dúvidas preliminares se apresentam após a leitura desses dois artigos: 1) O que impedirá a concessão de aumentos pelo Judiciário? E como fazer cessar o efeito cascata que essas decisões judiciárias terão sobre as demais carreiras jurídicas, todas equiparadas entre si de alguma forma?; 2) As aposentadorias e pensões dos servidores públicos impactam no teto de gastos primários não financeiros, logo, isso implica em dizer que não haverá novos concursos públicos durante 20 anos? Existe uma exceção às sanções estabelecidas quando o ente público chegar ao teto (artigo 103, IV, PEC), porém, como está redigido, dá a entender que será necessário romper o teto de gastos para poder substituir o cargo efetivo vago — parece haver alguma incongruência nesse aspecto.
Os dois outros artigos na PEC são o 104 e o 105.
O artigo 104 adota para as vinculações constitucionalmente estabelecidas para educação e saúde o mesmo procedimento de “congelamento” acima descrito para os gastos obrigatórios. Para a diferença entre vinculações orçamentárias e gastos obrigatórios remeto o leitor à outra coluna que escrevi.
Na verdade, o artigo 104 nem merece maiores comentários, pois é simplesmente inconstitucional. Confunde o conceito de “gasto” com o de “vinculação”. O que a PEC propõe no artigo 104 é que não haja mais a “vinculação” nos percentuais constitucionalmente estabelecidos sobre a receita, mas que os valores “gastos” em 2016, sejam apenas corrigidos pela inflação anual, pelos próximos 20 anos. A norma é claramente inconstitucional, pois, se a Constituição estabelece uma “vinculação” entre a receita e o gasto, não é possível a uma Emenda Constitucional modificar isso para “limitar o gasto” ao ano de 2016, corrigido pela inflação, pelos próximos 20 anos. Isso porque educação e saúde são direitos fundamentais, ínsitos à liberdade real que as pessoas devem ter, e que estão protegidos como cláusula pétrea pela Constituição. De que adianta consagrar um direito como fundamental e não dar os meios para sua execução? É isso que o artigo 104 da PEC pretende fazer com os direitos fundamentais de saúde e educação. O artigo 104 proposto pela PEC é inconstitucional — simples assim. A rigor, para poupar trabalho ao Supremo Tribunal Federal, não deveria sequer ser aprovado pelas Comissões de Constituição e Justiça do Congresso Nacional.
O último artigo, 105, estabelece que as vedações introduzidas pela PEC 241 não constituirão obrigação de pagamento futuro pela União e nem gerarão direitos a terceiros sobre o erário. Eventuais perdas serão exatamente isso: perdas; sem possibilidade de recomposição futura, pois constitucionalmente vedado.
Em suma, é isso que consta no Plano Temer, mas que certamente será complementado por várias outras normas, assim que a PEC seja aprovada.
Todavia, quais as lacunas do plano? Quais os seus silêncios?
Um silêncio eloquente é o que diz respeito à dívida pública (gasto primário financeiro). A exposição de motivos da PEC é recheada de dados e referências acerca da dívida pública, mas o texto da norma proposta é silente quanto a isso. A lógica é que, controlado o gasto público primário não financeiro, a dívida venha a ser reduzida. Não estou seguro disso, pois penso que tais gastos deveriam ser atacados em conjunto, como já expus em diversas outras colunas neste espaço (Contas à Vista) da ConJur. Gilberto Bercovici também já escreveu bastante acerca do tema. Enfim, enquanto não for enfrentada de forma direta a questão da dívida pública, erraremos o centro do alvo.
Outro silêncio eloquente é quanto a um teto para a arrecadação. Isso afeta diretamente o bolso de cada um de nós, que somos contribuintes, diretos ou indiretos, da sustentação dos diversos governos brasileiros.
Toda a lógica do plano é bastante simples: a economia do Brasil inegavelmente voltará a crescer em dois ou três anos. Crescer implica em dizer: crescer acima da inflação. Logo, são arrochados os gastos não financeiros dentro dos limites da inflação, para manter os pagamentos da dívida pública sem nenhuma limitação. Com o passar do tempo, os gastos não financeiros, acrescidos apenas pela inflação, passarão a corresponder a uma percentagem menor do PIB, que crescerá acima da inflação em mais alguns anos.
Contudo, se há um teto para o gasto, onde está o teto para a arrecadação? Qual limite de arrecadação será incluído na Constituição para aos diversos governos brasileiros?
A lógica é igualmente simples. Adotando números hipotéticos, suponhamos que em 2016 o estado de São Paulo arrecade de ICMS 30% do seu PIB; porém, com o crescimento do PIB em 2018, 2019, ou em qualquer momento dos próximos 20 anos, essa proporção vai ser acompanhada ou até mesmo ampliada — gerando arrecadações nominais seguramente acima da inflação do período. O mesmo vale para toda a sopa de letrinhas que compõe o sistema tributário nacional brasileiro: PIS, COFINS, IRPF, IRPJ etc.
Nem seria o caso de devolver o dinheiro diretamente ao contribuinte. Isso seria o ideal, mas haveria algumas dificuldades práticas para tanto — como apontou o secretário de Fazenda do Estado de São Paulo dias atrás, quando expus essa ideia em uma palestra que ele fazia na Associação Comercial de São Paulo. Penso que o conjunto de contribuintes já se daria por feliz se soubesse que, ultrapassado certo teto, o estado ou a União, seriam obrigados a, no ano posterior, retornar aos limites arrecadatórios estabelecidos por uma Emenda Constitucional.
Não adotar esse teto arrecadatório implicará na possibilidade de aumento de arrecadação sem limites, como foi efetuado ao longo de muitos anos, desde a queda da inflação em 1994. Basta ver que a arrecadação em 1994 era de 27% do PIB, e, dez anos após, em 2004, já estava em 32% do PIB, percentual em que se estabilizou e se mantém (2015 = 32,71%). Isso deve ser considerado em termos de cada ente federado, e por tributo, e não de forma nacional e global.
Os governos teriam que perseguir uma meta de arrecadação, que, uma vez descumprida, ensejaria sanções aos governantes. Observe-se que já foi inclusive afastada uma presidente da República por ter deixado de perseguir uma meta de superávit primário — que, em apertada síntese, é uma meta de arrocho para pagamento da dívida pública — exatamente o que se busca fazer agora por meio de uma Emenda Constitucional. Assim, uma meta de arrecadação seria algo que impediria os governos de aumentar a receita (tributária e não tributária) além da inflação do período.
A partir de certo patamar, o que você preferiria: dar mais dinheiro ao governo (qualquer que seja o partido) ou deixar essa grana em seu bolso? Hoje o brasileiro já paga algo próximo a R$ 2 trilhões anuais de tributos para todos os entes federativos. Será que esse valor, corrigido pela inflação anual do período, pelos próximos 20 anos, não seria suficiente como teto de arrecadação? Se o gasto primário não financeiro está limitado pela inflação, por qual motivo não usar a mesma correlação para a arrecadação? Afinal, deixar a arrecadação sem teto, estabelecendo um teto para os gastos não financeiros, acabará destinando mais dinheiro ao governo para usar exatamente em quê? Até as vinculações para saúde e educação estão recebendo umas “telhas inconstitucionais”, a título de “teto”! Logo, vão gastar em que? Maior arrecadação para aumentar a velocidade e o valor do pagamentos da dívida?
Se for isso, teremos a seguinte equação: rentistas alegres, contribuintes tristes. Ocorre que o universo dos contribuintes é muito maior do que o dos rentistas, e ficaria muito alegre com um teto para a arrecadação, apoiando essa iniciativa. É preciso preencher essa lacuna e incluir um teto para arrecadação no Plano Temer.
P.S. Dedico esta coluna ao meu professor Alcides Jorge Costa, decano dos tributaristas brasileiros, que morreu na semana passada. Foi um homem de bem e que mereceu todas as homenagens recebidas em vida. Que descanse em paz.
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