Opinião

Como a Espanha de 2008-2010, vivemos momentos de decisão na área trabalhista

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30 de dezembro de 2016, 12h13

A Espanha, há pouco, viveu momentos muito difíceis. Momentos de decisão. Discutiu-se muito e em diversos segmentos sociais se reformas eram necessárias, em que áreas e em que profundidade. Movimentos sociais, povo nas ruas, protestos diversos, greves sem fim. A Espanha tem um povo que discute às minúcias seus acontecimentos, porém, em olhar retrospectivo, a população mediana confessa que na oportunidade não conseguia ver a profundidade do poço em que estavam mergulhando. Nas relações de trabalho, a luta pelo pleno emprego e a manutenção de seus benefícios era o topo da pauta. As tradicionais forças que movem as relações de trabalho não conseguiram o consenso sugerido pelo governo que em 2010 interveio via real-decreto, tido por austero e que foi ainda mais endurecido via emendas durante a tramitação legislativa. Basicamente, passou-se a permitir a suspensão da vigência de convenções coletivas por impossibilidade de cumprimento, a redução de jornada por causas econômicas e a dispensa por causas objetivas, entre outras alterações.

O desemprego, no entanto, seguiu aumentando. As condições de trabalho e vida, piorando. O desemprego chega a assombrosos 26%, e a comunidade europeia pressiona. Novamente, as forças são chamadas a negociar, e não conseguem. Com o governo em mãos opostas às que estavam em 2010, nova intervenção, ainda mais dura, é apresentada, novamente por ato governamental de eficácia imediata, posteriormente convolado em lei. O Real-Decreto 3 de 2012 é a medida mais austera até então vista no cenário laboral da Espanha. Essencialmente, reduziu a indenização por dispensa imotivada; incentivou o contrato a tempo parcial, a terceirização e o trabalho a distância; regulamentou as dispensas coletivas; determinou a reclassificação dos trabalhadores em suas categorias para que pudessem desempenhar diversas atividades para o mesmo empregador; estabeleceu políticas de recolocação e formação dos trabalhadores; criou fomentos para novos postos de trabalho a prazo indeterminado, especialmente para jovens, mulheres e pessoas com mais de 45 anos; deu relevo ao representante dos trabalhadores nas empresas, importante nas negociações; permitiu a inaplicabilidade de convenções ou acordos coletivos e até a ultratividade de tais instrumentos, por causas econômicas; permitiu a redução da jornada ou a suspensão dos contratos por questões econômicas; admitiu a prioridade do negociado sobre o legislado em algumas matérias; previu a conciliação ou mediação como formas legais para solucionar conflitos laborais de qualquer amplitude e, por fim, avançou no setor público, prevendo causas objetivas para desligamento de pessoal.

Apenas em 2016 o desemprego começou a reduzir. Foram quatro longos anos de esforços e espera por resultados. Dos 26% de desemprego de 2012, hoje os espanhóis já vivem na casa dos 20%, o que ainda é muito alto. Com a economia nacional abalada, novos postos de trabalho a curto prazo virão com a instalação de empresas multinacionais. A capacitação profissional é alvo de políticas públicas (consta no RD 3/2016, inclusive) e imprescindível à recolocação laboral em um cenário de trabalho transnacional, tecnológico e automatizado. Sem dúvida, trata-se de uma realidade distinta da de 1980, época em que forjado o Estatuto dos Trabalhadores, já sob os ares da Constituição de 1978.

Há algum tempo, experts vêm apontando a necessidade de uma reforma trabalhista no Brasil. Para além de satisfazer os ajustes decorrentes do período de recessão por que passa o país, a reforma se justifica pela imperiosidade da modernização dos dispositivos legais de 1940, adaptando-os às novas formas de viver e de se relacionar do povo brasileiro, com especial atenção ao trabalho tecnológico e à flexibilidade necessária a determinadas parcelas da população a que se impõe o dever de conciliar trabalho e cuidados familiares.

Nesta última semana, o presidente Michel Temer enviou ao Congresso Nacional um pacote de medidas para a área trabalhista. O projeto de lei, que iniciou sua tramitação no dia 22 sob o número 6787/2016, traz propostas de alterações na legislação ordinária trabalhista, especialmente na CLT (5.452/43) e na Lei do Trabalho Temporário (6.019/74), com justificativas superficiais para a gravidade do momento brasileiro.

Em síntese, aumenta o valor da penalidade administrativa por trabalho subordinado irregular e fixa os reajustes dos valores das multas pelo IPCA; aumenta para 30 horas semanais a possibilidade de contratação a tempo parcial, admitindo horas extras (até 6 semanais) em contratos de até 26 horas semanais e garantindo a “venda” de até 1/3 do período de férias nesse tipo contratual; regulamenta o artigo 11 da Constituição Federal, que garante o direito aos empregados nas empresas com mais de 200 funcionários de elegerem representante, com ou sem vinculação sindical, garantindo-lhe o emprego (estabilidade provisória) e a participação nas mesas de negociação coletiva; estabelece que na eventual anulação dos instrumentos coletivos haverá também a nulidade da respectiva cláusula compensatória, com devolução de valores pelos empregados; permite a prestação de trabalho temporário diretamente ao tomador do serviço, conceituando “acréscimo extraordinário de serviços” e, nas hipóteses de substituição de pessoal permanente afastado por benefício previdenciário, admitindo prazo indeterminado, limitado à concessão da aposentadoria por invalidez; aumenta o prazo do contrato temporário de três meses para 120 dias, permitindo uma prorrogação dentro desse período e proibindo a recontratação do trabalhador, em caráter temporário, nos próximos 120 dias posteriores à sua dispensa; determina que o contrato temporário seja registrado na CTPS do trabalhador “e” obrigatoriamente escrito — pena de multas; assegura aos trabalhadores temporários todos os direitos dos trabalhadores a prazo determinado, inclusive a contratação a tempo parcial e, para fins salariais, determina que seja observada a categoria da empresa tomadora de seu serviço; no trabalho temporário via empresa prestadora de serviços deverão ser entregues ao tomador que assim quiser os comprovantes de quitação das obrigações junto ao INSS, FGTS e Receita Federal, autorizando a retenção nos pagamentos; estabelece que a empresa tomadora será subsidiariamente responsável por inadimplências trabalhistas e previdenciárias da empresa prestadora dos serviços temporários; e exclui a aplicação do trabalho temporário aos trabalhadores domésticos.

Há evidente desejo de fortalecimento das relações coletivas, uma vez que prevê a prevalência do negociado sobre o legislado em matérias  específicas, tais como: parcelamento das férias em até três períodos (sendo que uma das frações não pode ser inferior a duas semanas), pactuação da forma de cumprimento da jornada de trabalho (desde que não ultrapasse as atuais 220 horas mensais); parcelamento da Participação nos Lucros e Resultados nos limite dos prazos estipulados em lei para balanços patrimoniais e balancetes legalmente exigidos (a partir de duas parcelas); forma de compensação do tempo de deslocamento entre casa e trabalho em caso de ausência de transporte público (horas in itinere); duração do intervalo intrajornada, com duração mínima de 30 minutos; validade de norma coletiva da categoria quando expirado seu prazo (ultratividade); adesão ao Programa Seguro-Emprego; estabelecimento de plano de cargos e salários; banco de horas, garantida a conversão da hora que exceder a jornada normal de trabalho com acréscimo de no mínimo 50%; trabalho remoto (home office); remuneração por produtividade; registro da jornada de trabalho; impõe aos negociadores a demonstração explícita da vantagem conferida à categoria na hipótese de flexibilização dos direitos previstos no artigo 7, VI (irredutibilidade do salário), XIII (compensação de horários e redução de jornada) e XIV (prorrogação além da 6ª hora em turnos ininterruptos e de revezamento) da CF/88. Veda-se, terminantemente, a negociação coletiva em temas de saúde, segurança e medicina do trabalho.

Aproveita o legislador para determinar que os prazos no Direito Processual do Trabalho também se contem em dias úteis, equiparando-o ao Direito Processual Comum (CPC), no qual, desde março de 2015, os prazos já são assim contados, e recomenda à Justiça do Trabalho que no exame dos acordos e convenções coletivas observe os elementos essenciais do negócio jurídico (artigo 104 do CC/2002), balizando sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.

Em seus considerandos, a proposta refere as experiências de alterações legislativas de diversos outros países, entre eles França, Espanha e Portugal, países que sabidamente passam por crises econômicas de alto relevo e que já fizeram ou estão fazendo suas reformas administrativas, previdenciárias e trabalhistas. O Projeto de Lei 6.787/2016 aproxima-se especialmente das reformas espanholas (2010 e 2012), cujo texto protagonista foi a Lei 3/2012, da qual hoje já se podem reportar efeitos, em especial, quanto aos índices de desemprego: dos 26% de desempregados de 2012, obteve-se em 2015 o índice de 22,4%, especulando-se que o ano de 2016 feche na casa dos 20% (o governo aposta em 19,7%). Diversos outros dados estão à disposição, compilados inclusive pelas centrais sindicais espanholas e denotam, superado o período de estagnação (2012-2014), a lenta retomada do mercado de trabalho, sobre novas bases, especialmente calcadas na cultura da negociação coletiva, da flexibilidade contratual assistida e da qualificação profissional como rotina e política pública.

Como a Espanha de 2008-2010, vivemos momentos muito difíceis, momentos de decisão. O momento brasileiro é de crise profunda e, o que é pior, ainda não é possível avistar o fundo do poço. A crise, para ultrapassar a superficialidade com que o argumento tem sido empregado, é multifacetada, sua dimensão mais evidente, obviamente, é a econômica, no entanto, não se pode ignorar que esta é afetada e afeta outras crises como a alimentar, a energética, a ecológica, a democrática e a ideológica. Nesse quadro, é natural a sensação de “desorientação” (Domenico de Masi – Uma Simples Revolução, 2016), não mais como privilégio de um ou outro país, mas da humanidade em geral. Atuação sistêmica é o que se espera, para reorientar os rumos de um país tão rico e promissor como o Brasil, o que inclui para além do repensar das relações trabalhistas, previdenciárias, consumeristas e administrativas: o avanço na atuação anticorrupção; o desenvolvimento de novas matrizes energéticas; o incremento de políticas de combate à fome, de acesso à saúde e educação e, sobretudo, a disseminação de uma cultura de paz, erradicando as polarizações raivosas e catalisando o debate social. As medidas econômicas e administrativas não devem ser isoladas, com o fim em si mesmas. Nessa hipótese, realmente, soarão sem sentido e serão pesadas demais a uma parcela da sociedade: o povo.

Autores

  • é advogada trabalhista e sócia de Souto Correa, Cesa, Lummertz e Amaral Advogados. Mestre e doutora em Direito, professora e pesquisadora na PUC-RS.

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