Passado a Limpo

Levi Carneiro e o parecer favorável à criação da OAB (parte 3)

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

25 de agosto de 2016, 8h05

Spacca
Continuamos nesta semana com o parecer de Levi Carneiro (1882-1971), na qualidade de consultor-geral da República, a respeito de decreto que criou a Ordem dos Advogados do Brasil. Como escrevi na semana passada, o texto e a criação da Ordem são de 1930, ano que marcou a derrubada do regime da República Velha e a inserção de uma nova ordem política e constitucional. Insiste-se que Levi Carneiro tenha protagonizado importante papel no contexto da criação da OAB, atuação que foi potencializada por sua presença no Instituto dos Advogados do Brasil, como já observado.

Levi Carneiro foi personagem constante nos grandes debates da década de 1930, inclusive no contexto de concepção da Constituição de 1934. Além do que, um grande advogado, a quem a Ordem muito deve, pela dedicação, ao longo da vida, à causa dos que defendem causas.

Editar e publicar esses textos é nossa contribuição para a divulgação de nossa reminiscência histórica. De novo, como na semana passada, há algumas supressões, com o objetivo de se conferir ao texto um sentido de compreensão contemporânea. Segue o terceiro dos excertos, com as devidas atualizações, de ortografia e de disposição. No fragmento que segue, Levi Carneiro inventaria as objeções que havia contra a Ordem, sua designação e seus fins, repudiou a analogia que se fazia entre a OAB e as corporações medievais, bem como fixou a natureza jurídica da agremiação; explica também o porquê de Ordem dos Advogados do Brasil, e não Ordem dos Advogados Brasileiros:

Objeções contra a Ordem Houve, sem dúvida, quem, ainda agora, clamasse contra a criação da Ordem. Foram, no entanto, raras as vozes isoladas. Nenhum Instituto, já o disse, condenou-a. No Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros, um único orador se pronunciou nesse sentido. Nos outros Institutos nem consta que alguém assumisse atitude semelhante. Aquele orador, o Sr. Dr. EURICO DE SÁ PEREIRA, considerou a Ordem “antirrepublicana”. Invocou as razões de ordem econômica, com que o comercialista SOUZA PINTO impugnou as corporações de trabalhadores da Idade Média, se bem que lhes reconhecendo grandes benefícios.

Esse é o velho equívoco que, aliado a outras razões ligadas ao momento histórico, terá levado a Revolução Francesa a suprimir a Ordem dos Advogados, e os próprios advogados, quando exterminava as corporações de ofícios. Já mostramos, aliás, sucintamente, as peculiaridades do momento histórico e a diversidade da organização atual da Ordem.

Sentindo bem que, na Ordem dos Advogados, se não encontram as restrições e privilégios que SOUZA PINTO apontou nas corporações medievais, aquele ilustre advogado se limitou a criticar dois dispositivos do anteprojeto: o que não permitia advogar no foro criminal, mesmo em causa própria, ao não diplomado em Direito; e o que proibia a advocacia por delegados de polícia, enquanto somente em certos casos é vedada aos senadores e deputados. Bem se vê que estes dois pontos são secundários. Tanto assim que ambos já se apresentam modificados, no projeto incluso: o primeiro, porque se permitirá a defesa escrita pelo próprio réu, no foro criminal; a segunda, porque se facultará as delegados de polícia a prática da advocacia, exceto no processo criminal.

Outros comentadores do ato governamental aludiram à inoportunidade da criação, entendendo que se não poderia organizar a Ordem dos Advogados antes de organizada a Justiça e decidida à questão da sua unidade ou pluralidade.

O próprio projeto incluso constitui a melhor demonstração de que não há a dependência alegada. Nenhum, dentre tantos juristas ilustres que colaboraram no projeto, sentiu essa dificuldade.

A Ordem constitui um organismo autônomo, e, por isso mesmo, independentemente do número e da organização da justiça perante as quais seus membros funcionem.

As dúvidas, que mais procedência teria, seriam quanto á competência do legislador federal para estabelecer as regras necessárias à eficiência da Ordem. No momento, essas dúvidas não têm fundamento, e já o perdiam, na vigência da Constituição de 24 de fevereiro pela interpretação centrípeta dominante. No momento, o projeto foi zeloso da autonomia dos Estados. Regulando sistematicamente o exercício da advocacia em todo o país, seguiu a orientação já traçada pelas leis de ensino superior e pelo Código Civil, admitindo, ainda assim, largamente, a ação dos Estados no que concerne às matérias de sua competência indiscutível.

Designação e fins de Ordem O Clube dos Advogados desta Capital acentuou que é mais exato dizer — Ordem dos Advogados do Brasil que — Ordem dos Advogados Brasileiros — e parece-me procedente a observação.

Como órgão “de disciplina e seleção da classe dos Advogados”, criou-a o decreto nº 9.408. Todavia, o Instituto de São Paulo objetou que “a ideia de seleção pressupõe a de categorias”, e este não é, acentuou o pensamento do projeto. A seleção não é entre os advogados; mas, sim, dos advogados. Isto é entre cidadãos, em geral, que tenham os necessários requisitos de ordem intelectual e moral. É um processo de deleção, sem dúvida.

O que há a notar é que se não aludiu à defesa da classe, que é um dos objetivos irrecusáveis da Ordem, como notou o Instituto do Paraná.

A lei francesa de 1920 mencionou entre atribuições do Conselho: “ocupar-se de toda questão que interesse o exercício da profissão de advogado, notadamente no que concerne à defesa dos direitos dos advogados e a estrita observância de seus deveres profissionais”. Pareceu-me, pois, acertado, sem eliminar a referência à seleção, aludir também, na definição dos objetivos da Ordem, à defesa dos interesses da classe dos advogados, e assegurar à Ordem qualidade para agir nesse sentido, sempre que necessário.

Recurso judicial – Para excluir a pretendida analogia da Ordem com as corporações medievais, basta acentuar um traço da organização nova — o controle judicial.

Essa é a principal modificação, relativamente à admissão de novos membros, que a Ordem apresenta agora, em França, e, aliás, nem sempre aplaudida (…)

Assegurada a autonomia da classe dos advogados, excluída qualquer subordinação dela à magistratura, definida a competência exclusiva da Ordem para todos os atos disciplinares, não é, contudo, possível excluir a intervenção judicial, quando se trata de ato definitivo, lesivo de direitos individuais, como suspensão ou a exclusão do advogado.

Nesses casos — e só ao de exclusão aludia o anteprojeto — há de assegurar-se ao interessado o recurso judicial. Em França, a doutrina e a jurisprudência têm variado muito em torno dessa questão, mas a velha regra — “I’ordre est maitre de son tableau” — parece restringida (…)

Como quer que seja, o direito de exercer a profissão, denegado, ou tolhido pela recusa da inscrição, pela supressão temporária, ou pelo cancelamento definitivo, merece proteção judicial.

O controle judicial da admissão exclui a admissão por cooptação, como em alguns casos se dava na Inglaterra e nos Estados Unidos (…), sem se confundir com a admissão pelo voto dos juízes, como ainda se dá em vários Estados americanos.

O projeto do Instituto da Ordem dos Advogados Brasileiros só a concedia no primeiro desses casos. O Instituto do Paraná, mesmo nessa hipótese, a excluiria. Nesse, como nos demais casos, acima destacados, julgo, porém, necessário restringir a autonomia da Ordem, por amor a princípios fundamentais de nosso regime constitucional. Essa restrição mesma adapta a Ordem ao nosso regime constitucional, e mostra sua perfeita conformidade com ele.

Classificação jurídica da Ordem – Já deixei dito o conceito que formo da Ordem. Por isso mesmo, não procurei nem me parece necessário exarar em texto legal a sua classificação no quadro do Direito Público, ou no do Direito Privado.

A douta comissão do Instituto da Ordem dos Advogados de São Paulo, de que foi relator o lúcido espírito do Professor VICENTE RÁO, aventou essa questão. Parece-me que, ainda aí, se mostra a deficiência, já por outros aspectos revelados, da clássica dicotomia do Direito. “Como quer que seja, a adoção de outra sugestão do mesmo notável parecer, denominando “Regimento” à regra legal a que a Ordem obedece, e não ‘Estatutos”, fazendo-os emanar diretamente do Governo, e não apenas ser por este homologado; da declaração expressa, que me parece acertada, de constituir a Ordem serviço público federal, com a consequente isenção de qualquer imposto sobre os seus serviços e cargos; do recurso judicial estabelecido para as suas deliberações, de tudo isso há de resultar evidente que a Ordem, formação de índole privada, transcende, pelos altos objetivos da sua criação, do circuito estrito das relações de ordem meramente civil.

Levi Carneiro”.

Autores

  • é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela UnB e pela Boston University. Professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

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