Opinião

Aniversário da Lei Maria da Penha tem sabor um pouco agridoce

Autor

  • Ana Paula de Barcellos

    é sócia-consultora do escritório Barroso Fontelles Barcellos Mendonça & Associados e professora titular de Direito Constitucional da Uerj. Tem mestrado e doutorado em Direito Público pela Uerj e pós-doutorado pela Universidade Harvard.

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9 de agosto de 2016, 6h19

O dia 7 de agosto de 2016 marca os dez anos da edição da Lei Maria da Penha. A data evoca um sabor um pouco agridoce. A lei tem sido celebrada, com razão, como um mecanismo importante na luta contra a violência doméstica e familiar dirigida à mulher. Em 2015, o Ipea divulgou dados revelando o impacto positivo da lei, embora ele ainda não seja tão significativo e varie bastante em função da região examinada.

A ênfase das discussões sobre a lei ao longo do tempo, e de forma um tanto natural, tem recaído sobre seu aspecto punitivo. Há, porém, um outro aspecto da questão, talvez ainda mais complexo, mas não menos fundamental, que envolve a construção da autoestima da mulher na sociedade brasileira contemporânea. É sobre ele que eu gostaria de compartilhar uma reflexão. Embora a construção da autoestima não seja um tema exclusivamente feminino, ele recebe um impacto específico das questões de gênero.

A violência contra a mulher, nos termos da própria Lei Maria da Penha, pode assumir várias formas: física, psicológica, sexual, patrimonial e moral. A luta contra essas variadas manifestações de violência tem, no mínimo, dois fronts. O primeiro front é o dos agressores. A lei visa a intimidar os potenciais agressores, punir os agressores efetivos e impedir a reincidência. O segundo front é o das mulheres vítimas de violência. O legislador bem percebeu a complexidade do problema ao identificar que a violência contra a mulher não causa apenas danos físicos ou financeiros: muitas vezes, ela causa um “dano emocional e diminuição da autoestima” que prejudica “o pleno desenvolvimento” e a “autodeterminação” da mulher. Essa espécie de dano, embora mensurável por instrumentos diversos daqueles classicamente utilizados pelo direito, não é, por isso, menos relevante. Ao contrário: o dano psicológico e emocional muitas vezes acompanhará a mulher por toda vida, limitando-a em seu desenvolvimento pessoal.

A lei, ciente das limitações do direito para lidar com essa espécie de dano, prevê a figura da equipe multidisciplinar, composta de profissionais especializados nas áreas psicossocial e de saúde, além de profissionais da área jurídica. Por mais difícil que seja trabalhar com essa espécie de fenômeno, ele existe, é relevante e não pode ser ignorado. A humildade do Direito — no sentido de reconhecer os seus limites e interagir com outros campos do conhecimento (por exemplo, a Psicologia e a Medicina) — potencializa sua capacidade de transformação. O problema da construção da autoestima da mulher, no entanto, envolve muitas outras dimensões.

De acordo com o conhecimento já consolidado na Psicologia, o período mais relevante para a construção da autoestima de um ser humano é a infância. A internalização, pela pessoa, da compreensão de que ela é importante e valiosa em si mesmo, independentemente do que ela faça ou de como ela seja tratada por outras pessoas, depende em boa medida de ela haver recebido, quando criança, essa espécie de mensagem afetiva (e não apenas cognitiva) dos adultos que estavam ao seu redor. Se uma criança recebe constantemente a mensagem de que só é querida e valiosa se e quando se comporta de determinada maneira, sua autoestima sofrerá danos. Ocorre que adultos, no mais das vezes, reproduzem os padrões sociais nas suas relações com as crianças que estão em sua área de influência. E, no caso das meninas-mulheres, esses padrões têm sido particularmente cruéis.

Socialmente, o valor intrínseco de uma mulher continua profundamente vinculado a elementos externos a ela, e não chega a ser uma surpresa que essa mensagem continue a ser transmitida às meninas. Como regra, uma mulher é considerada valiosa por causa do que faz, por sua performance, e não em si mesma. Assim, mulheres são valorizadas se forem boas filhas, boas companheiras, boas mães, boas gestoras domésticas, boas cuidadoras das pessoas da família que necessitem de cuidados especiais, boas profissionais e, ainda, se forem lindas e magras. Tudo isso junto e ao mesmo tempo. Para as meninas, aplica-se uma adaptação desses padrões: elas valem se forem boas filhas, se tiverem coisas (mochilas, tênis, roupas, celulares), se forem lindas e magras, se forem populares, se tirarem boas notas na escola.

As exigências que esses padrões sociais formulam para atribuir algum valor a uma mulher são tão grandes que o fracasso é certo. Por outro lado, a compreensão que meninas e mulheres desenvolvem acerca de si mesmas e o valor que atribuem a si próprias são marcados pela circunstância de terem sido expostas a esses padrões ao longo da vida. Reaprender pode ser um percurso longo e difícil. 

O problema é muito complexo para ser resolvido apenas por uma lei e assustador devido as suas implicações, mas esse é um dos desafios da nossa geração: contribuir para a construção de novos padrões sociais, de acordo com os quais o valor intrínseco de uma mulher — aliás, o valor intrínseco de qualquer pessoa — não dependa das funções que ela desempenhe socialmente, da sua performance ou das escolhas que ela faça. Pessoas são valiosas em si mesmas.

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