"Estamos criando uma inversão de argumentos para levar HCs ao Supremo"
6 de setembro de 2015, 7h33
Especialista em Direito Constitucional, o juiz do Rio Grande do Sul tem como foco os direitos fundamentais, tema de um de seus livros mais conhecidos (A Eficácia dos Direitos Fundamentais — Uma Teoria dos Direitos Fundamentais na Perspectiva Constitucional, editora Livraria do Advogado) e de sua coluna na revista eletrônica Consultor Jurídico.
Para ele, a perspectiva de que o mundo possa ter uma Constituição comum ou uma carta de direitos única está cada vez mais distante. “Apesar da queda do muro de Berlim e da própria internacionalização do Direito, as constituições dos Estados continuam firmes e seguem aumentando em número”, explica, deixando claro que as fronteiras, no Direito, continuam na moda.
Essa posição fica clara quando o juiz, que é doutor em Direito pela Ludwig Maximillians Universität München e professor da PUC-RS, fala sobre os tribunais internacionais. Para ele, em resumo, traduzem-se em muitos gastos e pouca efetividade de suas decisões.
Seu olhar mais crítico, entretanto, está voltado ao Supremo Tribunal Federal. Para Sarlet, o excesso de casos que chegam à corte se deve a setores que preferem centralizar o processo decisório em Brasília, “buscando de lá controlar os demais setores e instâncias”. E caberia ao próprio tribunal propor a mudança necessária para restringir o número de ações a serem analisadas e cumprir um papel mais tradicional de corte constitucional.
“O grande filtro, na verdade, seria o Supremo escolher as causas que vai julgar, mas talvez esse seja um passo um pouco ousado demais para o sistema brasileiro”, diz o professor.
Leia a entrevista:
ConJur — Existe ou já existiu o espaço para uma Constituição global?
Ingo Sarlet — Eu não acredito em uma Constituição global, ou pelo menos não em algo similar às condições dos Estados constitucionais clássicos, como nós ainda os conhecemos. Sequer na Europa se conseguiu chegar a uma Constituição europeia, pelo menos do ponto de vista formal. O que se admite hoje é que a União Europeia tem uma Constituição do tipo material e que, evidentemente, está muito próxima do modelo de Constituição, mas a ideia de uma Carta Magna europeia hoje se fragilizou muito. As consultas populares na França e Holanda resultaram no Tratado de Lisboa, que não é equivalente a uma Constituição.
ConJur — O que diferencia os acordos internacionais e tratados do que seria uma Constituição especificamente internacional?
Ingo Sarlet — Hoje fala-se de um crepúsculo do constitucionalismo, mas é uma ideia equivocada, falando do ponto de vista formal. Pelo contrário, nos últimos 20 anos, o número de Estados com constituições ainda cresceu, apesar da globalização. Apesar da queda do muro de Berlim e da própria internacionalização do Direito, as constituições dos Estados continuam firmes e seguem aumentando em número.
ConJur — Isso não é uma contradição?
Ingo Sarlet — Não é uma contradição. Pelo contrário, a ideia de que nós estamos abandonando noção de Constituição Estadual é equivocada, bem como toda a discussão em torno do abandono da noção de soberania. Isso, evidentemente, não afasta a possibilidade de termos, paralelamente a esse fenômeno do constitucionalismo em sentido clássico (constituição formal e normativa) outros níveis de constitucionalidade. É por isso que se fala, por exemplo, na Europa, de um constitucionalismo multinível, que seria um constitucionalismo de diversos níveis, o nível das Constituições Estaduais, e o nível do assim chamado Direito Constitucional Internacional, que seria, então, formado pelos tratados e convenções da União Europeia e do Conselho da Europa. Os diferentes níveis constitucionais também têm esquemas de organização e procedimentos, obviamente, distintos entre si e eventualmente entram em rota de tensão.
ConJur — O senhor fala da Europa, mas esse foco pode se ampliar?
Ingo Sarlet — Eu não acredito que isso possa se ampliar a curto prazo e nos mesmos moldes de uma Constituição de um País. A própria União Europeia está numa fase de crise, que já não vem de agora. Com pressões e questões migratórias e econômicas, vemos a busca de concessões e negociações, embora sem abrir mão de algumas premissas. É perceptível que esse é um modelo que chegou a um certo patamar e que, ainda assim, dificilmente pode ser comparado a uma Constituição de um Estado membro. Até porque os Estados têm a possibilidade de se retirar e uma Constituição federal não permite isso.
ConJur — Mas há quem afirme que os tratados já fazem o papel de uma Constituição global, na área de direitos humanos, por exemplo.
Ingo Sarlet — Uma Constituição não se faz apenas com uma carta de direitos, embora a carta de direitos seja um dos elementos essenciais do que se chama de uma Constituição material. Por isso, no meu ponto de vista, uma estrutura dessas pode ser chamada como algo similar a uma Constituição. Quem é o povo que vai dar base de legitimidade para essa Constituição, para esse processo constituinte global? De todo modo isso implica uma releitura da noção de soberania e de poder constituinte, mas então já será difícil de se falar de uma verdadeira constituição no sentido moderno do termo.
ConJur — Elas vão ser menos democráticas.
Ingo Sarlet — E menos democráticas serão, pelo menos do ponto de vista da democracia clássica, representativa. A União Europeia, inclusive, tem um déficit de legitimação democrática em comparação com os Estados da União Europeia. Esse déficit só vai aumentar quanto mais ampliar esse espaço de uma suposta Constituição global. São problemas reais. Eu não vejo nem necessariamente como desejável a ideia de uma Constituição global. O que, evidentemente, pode ser desejável são esquemas cooperativos efetivos, princípios de administração pública e de juridicidade compartilhados para uma boa governança integrada, direitos humanos levados a sério em todos os cantos do Planeta. Talvez um dia cheguemos a uma espécie de patamar mínimo comum jurídico e ético.
ConJur — Isso diz respeito aos tribunais internacionais?
Ingo Sarlet — Há que distinguir entre os Tribunais Internacionais tradicionais e com funções gerais, como o Tribunal de Justiça da União Europeia, a Corte Europeia de Direitos Humanos, a Corte de Haia e a Corte Interamericana de Direitos Humanos, por exemplo, que já conseguiram, em maior ou menor escala, atingir níveis significativos de operatividade e respeito, dos assim chamados Tribunais ad hoc, normalmente criados com competência limitada, como os Tribunais para julgar crimes contra a humanidade e crimes de guerra, que consomem uma enormidade de recursos com relativamente baixo nível de eficácia, para o que se remete a leitura da instigante obra de Eric Posner, The Twilight of Human Rights Law.
ConJur — Ou condenações que não vão ser cumpridas…
Ingo Sarlet — O custo desses tribunais é altíssimo e levando em conta os índices em termos de resultados acabam cumprindo em geral função mais simbólica. Consomem bilhões de dólares que podiam ser, se alocados para atender a saúde da população dos países que sofrem com a miséria, muito mais bem utilizados. O maior problema é idealizar esse fenômeno e achar que ele é o caminho para uma Constituição global, que isso vai acontecer agora só porque nós queremos. É claro que a responsabilização dos responsáveis por crimes contra a humanidade e massiva violação de direitos humanos é essencial mas talvez se possa percorrer um caminho mais efetivo para isso, pelo menos algo que desafia a reflexão.
ConJur — Qual é o diferencial da Constituição brasileira em relação ao resto do mundo, tirando o tamanho, que sempre aparece nestas discussões?
Ingo Sarlet — O próprio tamanho não é tão isolado assim. É uma tendência das constituições mais recentes, especialmente a da leva do constitucionalismo pós anos 1980 e 1990, do período pós-autoritário, num momento de transição, após a queda do muro de Berlim. Vemos no leste europeu e em países africanos, como na África do Sul, constituições que são bastante analíticas. Mesmo Portugal tem uma carta constitucional muito extensa com algo como 300 artigos.
ConJur — Por que, aponta-se a extensão da Constituição como motivo para a alta taxa de judicialização no Brasil?
Ingo Sarlet — Com certeza a constitucionalização é um grande motivo para a judicialização. É claro que quanto mais analítica a Constituição mais aumenta o bloco de constitucionalidade e mais aumenta o parâmetro para o controle de constitucionalidade. Mas isso também está associado à questão procedimental, de competências dos tribunais e do empoderamento de atores que podem provocar a intervenção judicial. O Brasil apresenta um controle complexo de constitucionalidade e um elevado número de processos de controle abstrato e concentrado. Chegam milhares de ações no STF e nós temos um controle amplíssimo do ponto de vista da legitimação ativa no plano do controle concentrado. Os mecanismos e instrumentos de acesso à Justiça constitucional, somados a uma competência alargada do Judiciário nessa matéria, ao caráter analítico da Constituição, são fatores que, somados, potencializam isso. Mas também há outras questões, como o diminuto grau de autocontenção da Justiça constitucional no Brasil, o nível de frustração das expectativas constitucionais geradas pela não regulamentação adequada da Constituição, pela má gestão e pela omissão, entre outros fatores, tudo a estimular a intervenção jurisdicional.
ConJur — Falta um filtro para o Supremo?
Ingo Sarlet — Falta. A questão não é quanto aos temas. Uma reforma do controle abstrato me parece importante. Hoje um partido político com um representante apenas no Congresso, um deputado ou um senador, poder propor uma ADI. Mas certamente esse é talvez um dos menores problemas.
ConJur — Mas são muitas ADIs de partidos?
Ingo Sarlet — Como adiantei, não tem sido isso o que abarrota o Supremo, mas é um sintoma importante. Permite que um insatisfeito movimente toda a máquina contra majoritária. Em alguns países exige-se um mínimo de assinaturas de parlamentares para propor uma ação de inconstitucionalidade. Outro fator é a questão de se distinguir claramente o que é competência do Supremo na condição de Corte Constitucional e o que não é, acabando com as ações originárias em matéria penal no Supremo, com essas competências ampliadas em matéria de Habeas Corpus e assim por diante. Mas é curioso que o próprio Supremo não patrocine realmente essa reforma. Dá para discutir se é uma questão de poder ou de convicção, mas há as reformas possíveis que acabam não sendo feitas, ainda que vários ministros tenham trazido contribuições relevantes ao longo do tempo e feito outras tantas sugestões importantes. Também é verdade que algumas medidas já foram tomadas, evitando que a situação piore mais. De todo modo é um processo gradual de reconstrução da jurisdição constitucional.
ConJur —Poderia partir do Supremo um projeto para isso?
Ingo Sarlet — Claro, o Supremo pode ser o protagonista disso, com um projeto para movimentar a máquina. Mas também há muitos interesses a serem harmonizados, eventualmente algumas pressões de cunho mais corporativo, o que obviamente faz parte do jogo político e institucional numa democracia. Há também setores que preferem centralizar o processo decisório em Brasília, buscando de lá controlar os demais setores e instâncias. Há mesmo quem diga que o acesso ao Supremo é um direito fundamental.
ConJur — Mas não é um direito fundamental?
Ingo Sarlet — Claro que não é, pelo menos não no sentido de um direito subjetivo de acesso direto e em qualquer caso. O direito fundamental de acesso à Justiça (da inafastabilidade do controle judicial) não implica um direito a recursos ilimitados ou mesmo a uma quarta instância recursal.
ConJur — Nem em matéria de Habeas Corpus?
Ingo Sarlet — Para apreciar Habeas Corpus temos as instâncias ordinárias e o STJ.
ConJur — Somos visionários do Direito?
Ingo Sarlet — Talvez em outras matérias mas seguramente não nessa seara. Os argumentos em prol da atuação massiva do STF em sede de Habeas Corpus não são convincentes e também aqui a pergunta não quer calar: afinal, a maior parte do mundo está equivocada e nós certos? Argumentam que o STJ erra e, por isso, é necessário ir ao Supremo. Como se o Supremo não errasse também. Estamos criando uma inversão de argumentos. Isso tem que ser repensado, bem como a própria questão dos filtros de acesso em geral.
ConJur — A repercussão geral?
Ingo Sarlet — Em parte, mas ela não está funcionando de forma adequada. O grande filtro, na verdade, seria o Supremo escolher as causas que vai julgar, mas talvez esse seja um passo um pouco ousado demais para o sistema brasileiro.
ConJur — Seria algo como aquela proposta do ministro Barroso, por exemplo, de, a cada seis meses, definir o que o tribunal vai julgar durante o ano?
Ingo Sarlet — Exatamente. Algo nessa linha.
ConJur — O Supremo tem criado mais súmulas vinculantes recentemente. Isso é uma solução?
Ingo Sarlet — Como as súmulas vinculantes, em grande parte, também são interpretáveis e interpretadas — e é natural que assim sejam — a tendência de que haja uma outra porta de entrada para o STF, qual seja, a Reclamação. Isso está cada vez mais sendo comprovado na prática.
ConJur — O ministro Fachin falou que não existe jurisprudência no Brasil, pois aqui, em vez de coletarem os entendimentos e apontarem o que eles dizem, apontam uma tese e buscam os entendimentos para comprová-la.
Ingo Sarlet — Exatamente. Não é nossa vocação dominante. Só poderemos realmente implantar uma cultura de precedentes adequada se nós tivermos precedentes no sentido próprio do termo. Temos uma centralização nos tribunais superiores, arbitrária, muitas vezes autoritária, com decisões vinculativas que não trazem, muitas vezes, nem mesmo a opinião sólida da corte e constituem muitas vezes um conjunto de votos que embora possam coincidir quanto ao resultado não traduzem a fundamentação em bloco da decisão.
ConJur — Como o Supremo pode passar a julgar menos?
Ingo Sarlet — Uma dos problemas que eu vejo é o grande volume de decisões monocráticas. A maioria dos tribunais constitucionais passou por reformas importantes nas últimas décadas, também pelo aumento da demanda. No Tribunal Constitucional da Alemanha, por exemplo, um filtro importantíssimo de admissibilidade é feito por turmas de três juízes. Se a decisão pela inadmissibilidade é unânime não cabe recurso. Não tem agravo para a Turma (Senado) nem para o Pleno. Já o Tribunal Europeu de Direitos Humanos recebe, hoje, na faixa de 80 mil processos por ano e também desenvolveu fortes filtros de admissibilidade. A decisão monocrática deve ser reservada a situações muito particulares e é um efeito colateral do grande número de demandas repetitivas, que temos a necessidade de conter.
ConJur — Fala-se bastante que, ao comentar a morosidade do Judiciário, que é melhor uma decisão errada rápida do que não ter decisão. O que o senhor acha?
Ingo Sarlet — Eu discordo. Uma decisão errada já é perigosa em primeira instância. Em tribunais superiores, que decidem vinculativamente a jurisprudência para o país inteiro, é mais perigoso ainda.
ConJur — Como é que resolve, então, essa necessidade de se optar entre uma decisão boa ou uma decisão rápida?
Ingo Sarlet — A saída não é acelerar o processo, é acabar com demandas exploratórias. Fazer uma análise mais criteriosa. A Constituição assegura o controle judicial, em caso de lesão ou de ameaça a direito. Só que pouco se explora, realmente, o que é direito, para poder dizer se há ou não lesão ou ameaça. O que nós temos são muitos casos de não-direito e que poderiam ser bloqueados em sede de crivo preliminar.
ConJur — O que é mais perigoso para o cidadão: a insegurança jurídica ou a demora na decisão?
Ingo Sarlet — Penso que as duas se conjugam. Demora gera insegurança.. Não saber quando que o seu caso vai terminar, nem qual vai ser o resultado, gera expectativa e insegurança.
ConJur —E como combater a insegurança jurídica?
Ingo Sarlet — Com precedentes mais claros, com mais controle da ação e deferência ao que os outros juízes decidem. O juiz, como disse Mark Tushnet, tem que ter humildade para eventualmente, considerar que o seu colega, que já julgou um caso similar, tem o mesmo nível de formação e experiência e que apenas se houver razões fortes se deve julgar em sentido diverso. Seria um caso de precedente não vinculativo horizontal, de acordo com o qual Juízes da mesma instância seguem as decisões dos colegas.
ConJur — Falando no ministro Barroso, o senhor concorda que a grande função contramajoritária do Judiciário é olhar pelas minorias, como ele disse em entrevista à ConJur?
Ingo Sarlet — Eu não diria isso exatamente assim, embora concorde que uma das grandes funções do PJ é proteger os direitos das minorias. Mas a função contramajoritária não se confunde com a proteção das minorias em todos os casos e vai bem além disso. A proteção às minorias é apenas uma parte da função contramajoritária.
ConJur — E qual seria a outra parte dessa função?
Ingo Sarlet — Quando o Supremo Tribunal Federal, por exemplo, entende que uma legislação é inconstitucional, está indo contra a maioria do Congresso mas não necessariamente contra a maioria da população. É contramajoritário em um sentido, mas não é, evidentemente, em defesa de minorias. E essa função é relevantíssima e, talvez, até ocupe um espaço maior, do ponto de vista quantitativo, do que a necessidade de defender as minorias.
ConJur — O senhor vê um aumento do punitivismo no Legislativo brasileiro?
Ingo Sarlet — Isso é perceptível. Nossa evolução legislativa em matéria criminal, especialmente nos últimos 20 anos, tem envolvido uma política de aumento de penas, tipificação de novos crimes e até mesmo de redução da idade penal. Vende-se inclusive a ideia de que é possível defender minorias criando novos tipos penais o que é pelo menos discutível quanto a sua eficácia.
ConJur — Esse caso é específico do feminicídio?
Ingo Sarlet — Desse e de vários outros, como a criminalização da homofobia. Por outro lado, dizer que é inconstitucional criar esses tipos penais seria exagerado, pois o legislador tem liberdade de dar respostas e dispõe para tanto de ampla margem de conformação. Ninguém questiona os bens jurídicos em causa e não se discute que a questão da discriminação por orientação sexual, religião ou raça é muito séria e demanda forte enfrentamento. Se a via penal é a mais adequada é que me parece algo a merecer maior reflexão, talvez sendo o caso de apostar mais em educação, promoção de ações afirmativas e mesmo um direito sancionatório não penal, ademais da responsabilidade civil. Por outro lado, a impunidade tem gerado uma revolta generalizada e um nefasto deslocamento da justiça penal para a justiça das ruas, não sendo raros os casos de linchamento. O problema é que aqui também se está a vivenciar uma nada saudável era dos extremos.
ConJur — O que significa a existência da prisão de Guantánamo em pleno século XXI?
Ingo Sarlet — Significa o quanto esse sonho de uma Constituição global, de direitos humanos efetivos e realmente compartilhados nas formações civilizadas é, em grande parte, um jogo de quem pode mais. Guantánamo, na verdade, é a negação de todas as bases do Estado de Direito. Temos agora uma situação impressionante, que pode ser ilustrada por um caso: o Tribunal Europeu de Direitos Humanos condenou a Polônia a pagar uma indenização vultuosa em euros por dois casos em que o governo polonês foi responsabilizado por ter acobertado um posto avançado da CIA em território polonês para onde eram levados suspeitos de terrorismo, e submetidos a interrogatórios “menos convencionais”. De lá, foram levados para Guantánamo, onde se encontram desde 2004, sem sequer serem processados. A corte não tem como condenar os Estados Unidos, então condenou a Polônia por ter permitido e dado apoio logístico para isso.
ConJur — A guerra contra tráfico tem permitido a redução de garantias da defesa?
Ingo Sarlet — Sim. A guerra contra o tráfico e contra o crime organizado é um ponto nevrálgico dessa questão, não só no Brasil, mas no mundo todo. É até uma defesa legítima do Estado de Direito contra os seus inimigos, mas é importante saber quais são os limites da ação do Estado. Percebemos, em alguns casos, decisões que são um pouco lenientes com relação à forma como, muitas vezes, a autoridade policial aborda suspeitos. Nas questões de tráfico tolera-se situações limítrofes, eventualmente até mesmo inconstitucionais, em relação ao domicílio, por exemplo. Uma situação muito frequente na jurisprudência é a da atitude suspeita, quando alguém assim considerado é abordado e tem sua casa invadida sem mandado de busca e apreensão.
ConJur — Sem mandado de busca e apreensão?
Ingo Sarlet — Sem o mandado. E isso em algumas situações tem sido tolerado pelos tribunais como sendo legítimo, do ponto de vista da flagrância, sobretudo quando se encontra alguma droga na residência. Em muitas decisões, há uma tendência de ser leniente com isso quando houve evidente violação da inviolabilidade do domicílio.
ConJur — Pelo combate ao crime, permite-se também a extensão de grampos telefônicos por mais tempo do que é permitido na lei. Como isso se justifica?
Ingo Sarlet — Aqui também se verificam, por vezes, problemas do ponto de vista da legitimidade constitucional. É possível prorrogar diante de uma concreta ameaça, mas sempre observando os critérios legais.
ConJur — O senhor acha que as cláusula pétreas devem ser interpretadas de forma restritiva ou de forma extensiva?
Ingo Sarlet — Sou adepto da teoria de que os direitos fundamentais, todos eles, são limites materiais à reforma constitucional Além dos direitos materiais expressos, há os chamados de limites materiais implícitos, como, por exemplo, a dignidade da pessoa humana e o princípio republicano.
ConJur — Mas a interpretação, por exemplo, do princípio da dignidade da pessoa humana é vastíssima.
Ingo Sarlet — Ela é vastíssima, mas é um contrassenso imaginar que os direitos fundamentais sejam cláusulas pétreas e o princípio da dignidade da pessoa humana não, ainda mais na sua condição de princípio estruturante fundamental da ordem constitucional, que vincula até os direitos fundamentais. Em outros países, nós temos o oposto: o princípio de dignidade da pessoa humana é cláusula pétrea e não os direitos fundamentais.
ConJur — Quando se debatia a PEC da Bengala, discutiu-se o direito de o Judiciário estabelecer regras relativas a si mesmo. Quais são os limites para isso?
Ingo Sarlet — Como o Judiciário é o guardião dos princípios constitucionais — foi outorgada a ele essa função —, ele, obviamente, vai ter que decidir sobre questões que lhe dizem respeito. Com o Congresso é a mesma coisa. Quem faz as leis para definir qual é a remuneração de senador e deputado, quais são as suas imunidades, também são os próprios congressistas. No contraponto da situação deles, o Judiciário vai fazer o controle disso. Então não me parece que tenha havido qualquer exagero na questão do STF sobre a inconstitucionalidade da PEC da Bengala, ao julgar que a nova sabatina à qual seriam submetidos ministros que completassem 70 anos, representa uma afronta à independência do Poder Judiciário. Isso significaria que o ministro que não agradasse, eventualmente poderia não ter seu mandato confirmado.
ConJur — O senhor acha que deveria ter mandato para ministro do Supremo?
Ingo Sarlet — Eu sou a favor de mandatos no STF, que é um tribunal constitucional, ou, pelo menos, cada vez mais cumpre tal papel.
ConJur — Seriam mandatos de quanto tempo?
Ingo Sarlet — O mandato dos juízes de uma corte constitucional tem que extrapolar os mandatos dos parlamentares, justamente para eles poderem fazer o controle da atividade dos legisladores. Não existe também uma regra mágica em relação a isso, mas há uma tendência que aponta mandatos entre 9 e 13 anos.
ConJur — E como seria feita a eleição?
Ingo Sarlet — Os sistemas são muito variados. Como nós temos aqui um presidencialismo, me parece que a solução não pode ser igual à da Itália, da Alemanha ou da Espanha. Eu entendo que seria interessante fazer uma leitura mista do sistema presidencialista com o sistema por mandato dos Ministros do STF. A indicação pode continuar sendo do Presidente da República, mas com sabatina não só pelo Senado, mas também aprovação pelo Congresso. E eventualmente, como é na Alemanha, com revezamento entre a Câmara Alta e a Câmara Baixa. Também a formação de listas representativas dos diversos segmentos (Magistratura, Ministério Público, Advocacia, Academia Jurídica etc.) tem sido sugerida por alguns. Mas são várias as alternativas e existem vários projetos bem interessantes nessa seara.
ConJur — Neste caso, isso vai contra o quinto constitucional, não é?
Ingo Sarlet — Não, pois o quinto não é algo aplicado ao STF. Além disso, o modelo do quinto constitucional tal como praticado no Brasil é isolado no mundo. Mas foi a nossa opção e temos tido muitos Magistrados excepcionais operando no quinto. É claro que isso por si só não responde se o quinto é mesmo adequado ou se deve ser revisto, mas, como disse, foi o caminho trilhado pelo constituinte, o que evidentemente não afasta a possibilidade de eventual alteração no futuro.
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