Direito Civil Atual

A metadogmática do Direito Comercial brasileiro (parte 3)

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26 de outubro de 2015, 7h01

Na última semana distinguimos o direito comercial do societário. Hoje, concluímos esse raciocínio e seguimos para afirmar as razões para o apartamento objetivo-programático entre direito comercial e o direito civil.

II O que é e para que serve o direito comercial
5. A organização jurídica da empresa não societária é uma evidente exceção programática do direito comercial. Decorre de um lapso, que se explica pela recente percepção da existência e da importância de organizações sob forma jurídica não societária. Esse lapso se mitiga, todavia, pelo amplíssimo conceito de sociedade prevalente no Brasil (capaz abranger quase toda a empresa coletiva).[1]

A fixidez dogmática dos institutos e das categorias fundamentais de direito privado convive com uma multiplicidade instrumental (decorrente de autorizações legais à conformação autônomo-privada de relações jurídicas), que os torna plásticos ao ponto de prover novas “vias de direito” a operações econômicas novas e supostamente indisciplinadas.[2] Esses predicados são precipuamente expressos pelo contrato, que contempla o exercício particular da autonomia privada ao livre estabelecimento, pelas partes, do conteúdo das prestações a que se obrigam. Nele, a liberdade contratual, como liberdade de configuração autônomo-privada do conteúdo das relações jurídicas, difere, no particular, da autonomia privada, que trata propriamente da liberdade de celebração.

As organizações empresariais não societárias assumem majoritariamente a forma jurídica dos contratos empresariais disciplinados pelo direito comercial. Não raro essas organizações serão desdobros dimensionais de contratos empresariais de exercício ou, incompreendidos os fenômenos em questão, simplesmente tratadas como contratos empresariais de exercício.[3]

6. O direito comercial se distingue do direito civil, em razão das suas próprias funções[4], mas, sobretudo, em vista dos fenômenos que disciplina[5]. O direito comercial e o direito civil tratam de distintos objetos para produzir distintos efeitos na dimensão sociológica do fenômeno jurídico.[6]

Não é plausível que compartilhem, direito civil e direito comercial, normas que contenham hipóteses e consequências jurídicas comuns, nem sequer se uma interpretação elástica (de normas elásticas)[7] fosse capaz de calibrar as consequências aos distintos fins de cada disciplina. Isso não significa que não possam se valer, ambos, de categorias e de institutos de direito privado, sob um regramento particular. Essas categorias e institutos, contudo, em que pese a sua notória plasticidade funcional e semântica, já não dão conta de prover forma jurídica aos complexos fenômenos que se sujeitam à disciplina do direito comercial[8], o que preme o legislador a um urgente exercício de criatividade institucional e a uma ampliação do âmbito da autonomia privada[9].

O simples compartilhamento de normas é, portanto, ruinoso, porque provê o mesmo tratamento àquilo que é diferente. É igualmente impertinente esse compartilhamento sob o pressuposto de que uma interpretação orientada por princípios (diferenciados por especialização) dará conta de prover consequências distintas (quando da concreção da norma) a hipóteses diferentes, mas tratadas – absurdamente – como se fossem iguais. Esse devaneio responde, em boa parte, pela intolerável ausência de consenso mínimo acerca do conteúdo do direito comercial (especialmente em um país de dimensões continentais, submetido a níveis bastante heterogêneos de informação e de formação jurídica).

7. A inexistência de um consenso mínimo acerca da autonomia do direito comercial, do seu objeto e do seu conteúdo o impede de alcançar os seus fins.

8. O direito comercial é indispensável à existência de trocas econômicas, à geração de riquezas, à criação e determinação dos mercados e ao desenvolvimento econômico (em qualquer de suas acepções, incluindo-se todas as que o distinguem de crescimento econômico[10]) dos países sob um regime de produção capitalista. Isso se explica simplesmente porque todos esses fenômenos econômicos e sociais decorrem do direito e nele se justificam.[11]

O direito comercial só não ostenta essas funções no contexto de regimes puros (liliputianos) de produção socialista[12].

A importância do direito comercial se relativiza, contudo, onde forem influentes as proposições das chamadas post-development theories, para as quais a necessidade de mudanças sociais, particularmente nos países considerados subdesenvolvidos ou em desenvolvimento, decorre de danos provocados pelo próprio desenvolvimento (como concebido por potências hegemônicas). Essas teses se opõem a que as mudanças socioeconômicas sejam o produto de uma “engenharia social” predeterminada e imposta, que se deve substituir por um processo de redefinição social, autoconhecimento e de regeneração criativa de uma nova forma de solidariedade global.[13] Antes, contudo, será necessário que esses teóricos encontrem um meio de neutralizar os processos de internacionalização dos mercados, a voraz competição entre as nações e, sobretudo, a política imperialista praticada por potências hegemônicas, sob pena de que esse seu discurso arruíne definitivamente a capacidade de reação e de resistência dos países emergentes e do chamado “terceiro mundo”, relegando-os eternamente a um desenvolvimento condicional e dependente.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC e UFMT).

[1] Cf. art. 981 do CC.
[2] Cf. Fernández de la Gándara, Luis. La atipicidad en derecho de sociedades. Zaragoza: Portico, 1977.p. 195 et seq.
[3] Alguma doutrina, especialmente a portuguesa – sob a influência do direito alemão –, trata desses contratos sob a rubrica “contratos de cooperação”, cf., nesse sentido, FERREIRA DE ALMEIDA, C. Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, 2 vols., Coimbra: Livraria Almedina, 1992, vol. I, pp. 533 e ss., nota 211, e Contratos II, Coimbra: Almedina, 2007, pp. 127 e 128. Há, também, autores que se referem aos “contratos de cooperação associativa”, como subcategoria dos contratos de cooperação, cf. BRITO, M. H. O Contrato de Concessão Comercial, Coimbra: Almedina, 1990, pp. 205 e ss. Para um enquadramento dos contratos de cooperação entre empresas em outras tipologias de contratos empresariais de exercício, cf. ENGRÁCIA ANTUNES, J. A. Contratos Comerciais Noções Fundamentais, volume especial da revista Direito e Justiça, UCP, 2007, pp. 26 e ss.; FERREIRA LEITE, L. Novos Agrupamentos de Empresas, Porto, Athena Editora, 1982; MORAIS, D. S. L. Empresas Comuns Joint Ventures no Direito Comunitário da Concorrência, Coimbra, Almedina, 2006; AMORIM PEREIRA, A. O Contrato de «Joint Venture» Conceito e Prática, in ROA, ano 48, III, Lisboa, Dezembro 1988; LIMA PINHEIRO, L. Joint Venture Contrato de Empreendimento Comum em Direito Internacional Privado, Lisboa, Cosmos, 1998; e VALLES, E. Consórcio, ACE e Outras Figuras, Coimbra, Almedina, 2007.
[4] Referimo-nos, aqui, criticamente, às célebres palavras de Teixeira de Freitas, no ofício enviado ao Ministério da Justiça em 20 de setembro de 1867, para informar sua intenção de abandonar o “Esboço de Código Civil”: “Não há tipo para a arbitrária separação de leis, a que se dá o nome de direito comercial ou Código Comercial, pois que todos os atos da vida jurídica, excetuados os benéficos, podem ser comerciais ou não comerciais, isto é, tanto podem ter por fim o lucro pecuniário, como outra satisfação da existência”. O equívoco se justifica pela incipiente atividade econômica no segundo império e pela absoluta impossibilidade de se antever a magnitude e a complexidade dos fenômenos cuja disciplina se atribuiria ao direito comercial.
[5] São numerosos e eloquentes os exemplos: a oferta pública de ações não é simplesmente a oferta formadora do contrato (a que se refere o art. 429 do CC), porque se insere no esquema de financiamento, por capitalização, da macroempresa-societária, em meio a relevantes interesses transindividuais e públicos, de modo que seu regramento exorbita e mesmo discrepa da disciplina tradicional dos negócios jurídicos; os fundos de investimento, de mesmo modo, não são condomínios voluntários (na forma dos arts. 1.314 e seguintes do CC), mas organizações não societárias afetadas pela empresa, essenciais ao desenvolvimento dos mercados, cujo enquadramento espera, impaciente, a criação de novas categorias, próprias do direito comercial; os contratos da distribuição (e.g., distribuição, compra e venda, agência, representação, franquia etc.) comportam a um só tempo relações de exercício e de organização de empresas coletivas derivadas, mas isso não foi percebido pelo legislador. A sociologia, em especial a sociologia das organizações, posto avançado de análise da atividade econômica, não cansa de apontar essas profundas transformações socioeconômicas que apresentam ao direito (e, no particular, ao direito comercial, em razão de seu objeto) um novo mundo de fenômenos hipercomplexos. Cf. nota 25 abaixo.
[6] É por isso que a melhor doutrina alemã alude a uma “normative Spezifität” do direito comercial. BYDLINSKI, F. System und Prinzipien des Privatrechts, Wien: Springer, 1996, pp. 444 et seq.
[7] Cf. VON TUHR. A. Derecho Civil. Teoria General del Derecho Aleman. Los Hechos Juridicos, Volume II, Buenos Aires: Memorial de Palma, 1947, pp. 207 ss.
[8] Cf., nesse sentido, TEUBNER, G. “Beyond contract and organization? The external liability of franchising systems in German Law”, disponível em 22.11.12 no http://www.jura.uni-frankfurt.de/42847561/list-of-publications#Articles; “Networks as connected Contracts”, disponível em 22.11.12 no http://www.jura.uni-frankfurt.de/42847561/list-of-publications#Articles; “Idiosyncratic Production Regimes: Co-evolution of Economic and Legal Institutions in the Varieties of Capitalism”, in: John Ziman (ed.), The Evolution of Cultural Entities: Proceedings of the British Academy. Oxford: Oxford University Press, 2002, 161-182; “Coincidentia oppositorum: Das Recht der Netzwerke jenseits von Vertrag und Organisation”, in: Marc Amstutz (Hg.), Die vernetzte Wirtschaft: Netzwerke als Rechtsproblem. Zürich: Schulthess, 2004, 11-42.
[9] Um controle estatal rígido, como observa Roberto Mangabeira Unger, limita a maneira como a sociedade reage a crises e a tensões, ao que respondem os “políticos” apenas para criar hipóteses que limitam a criatividade e a oferta de soluções alternativas. Cf. UNGER, R. M. Free Trade Reimagined: The World Division of Labor and the Method of Economics. Princeton: Princeton University Press, 2007. p. 77-94.
[10] Por todas, cf. SEN, A. “Development: Which Way Now?” Economic Journal, Vol. 93, Issue 372. 1983, pp.745-762.
[11] Cf. IRTI, N. L’Ordine Giuridico del Mercato – Libri del Tempo, Editora Laterza, 1998, p. 39. Entre nós, por todos, cf. BERCOVICI, G. “O ainda indispensável direito econômico”. In: BENEVIDES, M. V.; BERCOVICI, G., MELO, C, (org.). Direitos Humanos, Democracia e República. Homenagem a Fábio Konder Comparato. São Paulo, Quartier Latin, 2009, pp. 504 et seq.
[12] Já em regimes “socialistas de mercado”, o direito comercial também será imprescindível. Cf. FRANK, R. e BELKIN, D. (ed.). Why market socialism? Voices from dissent. M.E.: Sharpe, Inc., 1994.
[13] Cf. RIST, G. The History of Development: From Western Origins to Global Faith, Expanded Edition, London: Zed Books, 2003; ESCOBAR, A. Encountering Development: The Making and Unmaking of the Third World, Princeton: Princeton University Press, 1995; SACHS, W., The Development Reader. A Guide to Knowledge and Power, London: Zed Books 1992.

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