Reflexão complexa

Livro mostra encontro entre a Economia e o Direito Penal

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10 de março de 2015, 14h09

O Direito, por vezes, parece exigir-nos em demasia. Ao jurista não basta conhecer o fundamento, o método, o sentido e o fim do Direito. Isso de nada vale se o objeto da lei nos escapa, se, sobre a matéria de regulação, nada sabemos. À margem dos problemas próprios do Direito, é exigido ao jurista debruçar-se, também e inapelavelmente, sobre as mais díspares dimensões do nosso modo-de-ser-no-mundo: da genética à informática, do meio ambiente ao patrimônio, do ser-pessoa ao Estado, e hoje, sobretudo, sobre a complexa, porosa e multiforme noção a que denominamos economia.

Sabemos bem que o nosso olhar sobre o mundo é sempre um olhar imperfeito, incompleto, parcial. Conhecer não é mais que vigiar, em seu sentido mais profundo. Incômoda certeza que, em princípio, seria de supor fazer-se desestímulo; mas não. Estamos fadados a tentar compreender o que somos e o mundo em que vivemos. Uma tentativa que, conquanto sabidamente falha e historicamente datada, lança luzes sobre dimensões humanas cujo conhecimento, ainda que precário, é absolutamente indispensável para o bem ser e o bem viver individual e comunitário. 

Os ventos da moda e do “mercado jurídico”, contudo, e lamentavelmente, fizeram da economia objeto de predileção de muitos, a resultar, por vezes, em ensaios rápidos, sem qualquer dignidade acadêmica, a poluir as letras jurídicas e a confundir a prática penal. Um desserviço com proporções ainda não suficientemente claras, mas que cresce (e muito) na exata medida em que o denominado direito penal econômico ganha espaço na experiência penal nacional, impulsionado por uma espécie de pretensão de “justiça social”; como se fosse possível fazer justiça (penal) na simples compensação de excessos, “antigos” excessos por novos excessos.

Momento melhor não poderia haver, pois, para obra que ora vem a público.

Andrei Zenkner Schmidt não é um nome desconhecido daqueles que, entre nós, se ocupam do Direito Penal. Pelo contrário. Autor de inúmeras obras e artigos, com larga experiência e reconhecimento na docência e na advocacia criminal, Andrei Schmidt traz no livro Direito Penal Econômico — Parte Geral o resultado das suas reflexões doutorais, levadas a cabo ao longo de mais de oito anos de pesquisa. Pesquisa inicialmente desenvolvida no seio da Alma Mater Conimbrigense, a Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, sob a orientação de José de Faria Costa, mas concluída, em segundo momento, no âmbito Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC-RS.

Trata-se de um trabalho de exuberante maturidade, onde o autor apresenta, sem rodeios, as suas premissas científicas e metodológicas para, só então, ingressar em um profundo estudo acerca do tão complexo ponto de encontro entre Economia e Direito Penal. E fá-lo, sublinha-se, com incomum domínio de ambas as ciências. O primeiro capítulo dá conta da questão econômica e dos conceitos a partir dos quais se torna possível o diálogo — tão desejado pelo autor — entre economia e Direito Penal.  O estado da arte é, assim, delineado com cuidado e rigor, permitindo, mesmo ao leitor pouco habituado à matéria, elementos suficientes para acompanhar o autor em seus próximos passos.  

Fortemente influenciado pela Escola de Coimbra, nomeadamente pela linha de reflexão inaugurada por José de Faria Costa, Andrei Schmidt adota a denominada compreensão onto-antropológica do Direito Penal — e, assim, tudo aquilo que uma tal compreensão implica em termos filosóficos e dogmáticos —, bem como a defesa de uma tênue autonomia disciplinar ao Direito Penal Econômico. Neste preciso horizonte compreensivo, propõe-se a identificar e delimitar o bem jurídico tutelado e, a partir daí, deduzir o respectivo conceito material de crime em âmbito econômico.

Em passagem de particular claridade, assim afirma o autor: “o objeto do ilícito (Unrecht) fundamenta e legitima o Direito Penal Econômico a partir da exigência de ofensa a bens jurídicos protegidos, entendida, tal ofensa, em sua dimensão externa e fenomenológica que, nesta área específica da criminalização, possui uma significação axiológica de menor densidade. O fundamental é que o adensamento da norma penal econômica tenha seus contornos definidos a partir de um desvalor ético-jurídico compatibilizável com um desvalor ético-social — o núcleo essencial da paz e da segurança a que almeja a proteção — e que encontre sua coerência num sistema político-constitucional capaz de ampará-lo” (cap. 2.3.2).

Iluminado por tais premissas, Andrei Schmidt traça as linhas fundamentais de seu conceito material de crime ao longo do capítulo 2 e leva-o à prova nos capítulos 3, 4 e 5, nos quais a sua ideia de base é cotejada à luz das exigências das teorias da norma, do crime e da pena, respectivamente.

O resultado da presente investigação é, nesta medida, um estudo único, com nítida carga autoral, assumidamente comprometido com elementos teóricos que, ao fundamentar, delimitam por meio de critérios dogmáticos fortes o espaço de atuação legítima do direito penal econômico. É, por isso, ao fim e ao cabo, um elogio ao Direito Penal como espaço de liberdade irrenunciável e, hoje, acima de tudo, constitucionalmente assegurado.

Mais do que isso, por certo, não pode ser dito, sem que se retire, de forma imperdoável, o prazer do leitor em ser conduzido pelo próprio autor na linhas que perfazem o presente estudo.

Por fim, uma última palavra, não sobre a obra, mas sobre o agora Doutor Andrei Zenkner Schmidt.

Conheci Andrei em meados da década de 90, quando, então, o Instituto Transdisciplinar de Estudos Criminais (ITEC) dava os seus primeiros passos. De lá pra cá, ao longo de quase duas décadas, tenho o privilégio de contar com a sua presença dentre os meus mais estimados amigos. Se por um lado, Andrei Schmidt construiu a sua história acadêmica e profissional fundada na seriedade, rigor e dedicação acadêmico-científicos, e, por tudo isso, digno da mais viva admiração, por outro, em âmbito pessoal, mostrou-se cultor dos mais elevados valores. Andrei é, e sempre foi, um penalista na sua forma mais profunda, um humanista na sua vivência mais sincera, um amigo na sua expressão mais plena. É, por tudo, e como não poderia deixar de ser, alguém que agrega sentido ao texto e vida às suas ideias.

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