Direito Civil Atual

Quando menos se espera, recorre-se à teoria da imprevisão (Parte 2)

Autor

9 de março de 2015, 8h00

Spacca
Retomando a análise da teoria da imprevisão no Brasil pela perspectiva da história econômica, iniciada na coluna anterior, começo do ano de 1994 com o Plano Real,[1] que conseguiu estabilizar os preços e combater a inflação, fazendo com que a moeda nacional recuperasse o padrão de valor e também sua função de reserva de valor. Naquela ocasião, em vez de medidas drásticas e inesperadas, optou-se pelo incentivo à adoção prévia à URV (Unidade Real de Valor, mecanismo de indexação cujo valor era reajustado diariamente).[2] O preço de todas as coisas acabou sendo fixado em URV, o que concorreu para se restabelecer o padrão de valor da futura moeda. Em 1º de julho de 1994, os preços referenciados nesse índice converteram-se em Reais. Também ficou proibida a correção monetária em periodicidade inferior a um ano para evitar a espiral inflacionária.

Dessa vez, para que produtos importados suprissem a procura eventualmente não atendida pelo mercado interno, o Banco Central mantinha o valor do dólar dentro de certos valores (“banda cambial”), por meio da compra e venda dessa moeda, para tornar atrativas as importações. Quando o dólar subia, o Governo vendia dólares, aumentando a oferta, o que levava à diminuição de seu preço e vice-versa.

Estimulou-se a captação de empréstimos no exterior, mesmo diante de um cenário econômico internacional adverso, como aqueles provocados pelas crises econômicas no México e nos “Tigres Asiáticos”. Consumidores adquiriram carros populares por meio de financiamentos bancários, que, na verdade, eram empréstimos contraídos em dólares no exterior. Por exemplo, por meio de leasing, financiava-se um automóvel popular que, na época, valia R$ 10 mil, por meio da contratação de empréstimo de US$ 5 mil feito pela instituição financeira.

Por todos esses fatores de ingresso de capitais estrangeiros no Brasil, o balanço de pagamentos desequilibrou-se. Uma das medidas à época para evitar a retirada de capitais estrangeiros no Brasil foi o aumento da Taxa Selic a níveis elevadíssimos, como, por exemplo, 45% ao ano.

Apesar disso, o Banco Central, em janeiro de 1998, anunciou às Instituições autorizadas a operar em câmbio que continuaria com a política de manutenção do valor do dólar entre R$ 1,12 e R$ 1,22, por meio de leilões de divisas.[3] Mas, sabendo-se da impossibilidade da continuidade dessa política, antevia-se o fim da “banda cambial”, para que o preço do dólar seguisse a lei da oferta e da procura. Era período eleitoral e o governo divulgava que as medidas econômicas não seriam alteradas,[4] a despeito da crise da Rússia, que causou saída de capitais estrangeiros do Brasil.[5] 

Em 13 de janeiro de 1999, o Banco Central ainda manteve sistema de bandas cambiais, mas se definiu que o valor do dólar oscilaria entre R$ 1,20 e R$ 1,32.[6] Essa medida provocou saída imediata de capitais estrangeiros do Brasil.[7] Dois dias depois, o Banco Central anunciou que não faria mais intervenções no mercado de câmbio, deixando o preço do dólar flutuar de acordo com a lei da oferta e da procura.[8] Esse comunicado foi ratificado no dia 19 de janeiro de 1999.[9] Foram mudanças drásticas, que elevaram bruscamente o valor do dólar.[10] Muitas pessoas foram prejudicadas pela desvalorização cambial, pelo fato de que o dólar subiu de aproximadamente R$ 1,20 para R$ 2,15.[11]

Diante desse problema que resultou no aumento brusco do valor das prestações de todos esses financiamentos, os tribunais oscilaram em seus entendimentos. Num primeiro momento, entenderam ser inaplicável a teoria da imprevisão. Por exemplo, o Segundo Tribunal de Alçada Civil de São Paulo reformou decisão de primeiro grau que estabeleceu o INPC como indexador do contrato de leasing. Nesse acórdão, colocou-se como previsível a mudança da política cambial nos seguintes termos: “Ora, e aqui reside questão de suma importância, estes fatos foram amplamente difundidos e discutidos pelos diversos meios de comunicação (jornais, televisão, rádio, etc…), e não se pode negar, sequer necessário era possuir conhecimento técnico de economia para saber que a mudança na taxa de câmbio era simples questão de tempo, vistas, inclusive, a insucessos anteriores de planos econômicos nacionais (como os planos cruzado e verão)”.[12]

Contra esse acórdão do Segundo Tribunal de Alçada Civil, impetrou-se Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça, que o reformou para reconhecer a validade da cláusula que reajustava as prestações segundo a variação cambial. No entanto, aplicou-se a imprevisão para reequilibrar o contrato, ao estabelecer a divisão dos prejuízos entre as partes, como se vê no excerto da ementa do mesmo: “III. Índice de reajuste repartido, a partir de 19.01.99 inclusive, equitativamente, pela metade, entre as partes contratantes, mantida a higidez legal da cláusula, decotado, tão somente, o excesso que tornava insuportável ao devedor o adimplemento da obrigação, evitando-se, de outro lado, a total transferência dos ônus ao credor, igualmente prejudicado pelo fato econômico ocorrido e também alheio à sua vontade”.[13] Esse acórdão do Superior Tribunal de Justiça serviu de paradigma para a formação da jurisprudência favorável à revisão judicial dos contratos.

Nos últimos anos, sob a vigência do Código Civil de 2002, julgou-se a existência ou não de onerosidade excessiva nos contratos de compra e venda de soja, cujas prestações se desequilibraram pela ocorrência da denominada “ferrugem asiática” no campo. O entendimento final do Superior Tribunal de Justiça foi o de que essa situação não autorizava a revisão contratual.[14] No final de 2008, os Estados Unidos e certos países da União Europeia, como a Grécia, Espanha e Portugal, entraram em crise econômica. O Brasil escapou desses períodos de estagnação pela reedição de políticas anticíclicas de estímulo ao consumo de automóveis e de bens duráveis, obras de infraestrutura por meio do Programa de Aceleração do Crescimento, além da preparação para eventos internacionais de porte, como a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. A economia brasileira experimentou um período de crescimento, queda de desemprego e ampliação do consumo. Mesmo com os protestos de 2013 e a descrença com os gastos desnecessários com a Copa do Mundo, as sombras do horizonte limitavam-se aos primeiros efeitos de um aumento da inflação.

Mas o que o cidadão comum não podia prever ou o que remotamente se imaginava aconteceu. De um lado, aumentos significativos da inflação gerados pelo descontrole dos gastos públicos, provocados pelo represamento do repasse dos preços de energia elétrica, combustíveis e transportes coletivos, artificialmente reduzidos por medidas governamentais decorrentes da proximidade das eleições. De outro lado, a crise hídrica. Mesmo com todos os alertas e campanhas para economia de água há décadas, não se imaginava que toda a Região Sudeste poderia enfrentar racionamentos de água. A população das grandes cidades aumentou muito em um espaço geográfico historicamente mal ocupado, excessivamente populoso e poluído. Embora os governos tivessem sido alertados sobre a alteração no regime de chuvas – o que exigiria investimentos em novos mananciais, a despoluição dos já existentes, o reuso da água, o tratamento de esgoto e o combate às perdas do sistema de distribuição –, nada foi feito.

O setor elétrico também sofre os efeitos da crise hídrica, porque a matriz energética brasileira tem a energia hidrelétrica como principal componente. A agricultura e a indústria deverão reduzir o uso da água ou até mesmo privarem-se do uso em caso extremo, já que a prioridade é o consumo para a sobrevivência dos humanos e dos animais.[15] Nesse cenário de redução de atividade econômica por falta de água e de energia elétrica, postos de trabalho poderão ser reduzidos. A arrecadação de tributos tenderá a diminuir. Diminuem-se os investimentos. E contratos poderão ser afetados.

Agora cabe a pergunta se, do ponto de vista do cidadão e do empresário, esse cenário era ou não imprevisível ou em que casos será possível ou não a revisão dos contratos. De qualquer modo, sendo imprevisíveis ou não esses fatos recentes, o direito brasileiro conta com uma completa disciplina legal acerca do tema e, por que não, com um repertório de experiências pretéritas que podem ajudar na solução desses problemas. O melhor dos cenários seria o de que essas regras se tornassem letra morta, porque sua aplicação é sinal de tempos difíceis. Mas, devido à ausência de leis da história, que tornam imprevisíveis os acontecimentos futuros, só resta dizer que “quando menos se espera, recorre-se à teoria da imprevisão”.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF e UFC).


[1]  Medida Provisória nº. 542, de 30 de junho de 1994 (convertida em Lei nº. 9.069, de 29 de junho de 1995).

[2] Medida Provisória nº. 434, de 27 de fevereiro de 1994. Dispõe sobre o Programa de Estabilização Econômica, o Sistema Monetário Nacional, institui a Unidade Real de Valor (URV) e dá outras providências. Reeditada sob os ns. 457, de 29 de março de 1994 e 482, de 28 de abril de 1994 e convertida na Lei nº. 8.880, de 27 de maio de 1994.

[3] BANCO CENTRAL DO BRASIL. Comunicado nº. 6.002, de 20 de janeiro de 1998. Divulga novos limites dentro da sistemática de “faixas de flutuação” (bandas).

[4] FOLHA DE S.PAULO. “Câmbio não muda, reafirma ministro. Malan e Pastore participam de fórum”. Editoria Dinheiro. p. 2-3-5. 13 de maio de 1998.

[5] FOLHA DE S.PAULO. “Rússia desvaloriza rublo e faz moratória. FMI e EUA temem que russos percam credibilidade no mercado e cobram reforma fiscal; títulos brasileiros despencam”. Editoria Primeira Página. p. 1-1-8. 18 de agosto de 1998; FOLHA DE S.PAULO. “Câmbio não muda, diz BC”. Editoria Dinheiro. p.2-3. 20 de outubro de 1998. FOLHA DE S.PAULO. “Crise impede mudanças graduais, diz Malan. Ministro afirma que panorama internacional impõe ajuste imediato mas descarta mudança no câmbio”. Editoria Caderno Especial. Página especial 3-10. 29 de outubro de 1998.

[6] BANCO CENTRAL DO BRASIL. Comunicado nº. 6.560, de 13 de janeiro de 1999. Dispõe sobre a nova sistemática de intervenção do Banco Central do Brasil no mercado interbancário de câmbio.

[7] FOLHA DE S.PAULO. “US$ 1,057 bilhão deixa o Brasil. Banco Central atuou no mercado, mas, com as saídas de ontem, janeiro acumula uma perda de mais de R$ 3 bi”. Caderno Especial. p. 5. 14 de janeiro de 1999.

[8] BANCO CENTRAL DO BRASIL. Comunicado nº. 6.563, de 15 de janeiro de 1999. Dispõe sobre as intervenções do Banco Central do Brasil nos mercados interbancários de câmbio.

[9] BANCO CENTRAL DO BRASIL. Comunicado nº. 6.565, de 18 de janeiro de 1999. Dispõe sobre o regime cambial às instituições autorizadas a operar em câmbio.

[10] FOLHA DE S.PAULO. “Dólar vai a R$ 1,88; fuga continua”. Editorial Dinheiro. p. 2-1. 27 de janeiro de 1999.

[11] FOLHA DE S.PAULO. “Consumidor quer revisão de contratos”. Editoria Dinheiro. p. 2-10. 5 de fevereiro de 1999.

[12] 2º TAC-SP. Apelação com Revisão nº. 617.660-00/1. Comarca de São Paulo. 3ª Câmara. Rel. Ribeiro Pinto. j. 18 de dezembro de 2001.

[13] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº. 472.594/SP. 2ª Seção. Rel. Min. Carlos Alberto Meneses Direito. Relator para acórdão Min. Aldir Passarinho Junior. j. 12 de fevereiro de 2003.

[14] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial nº. 783.520/GO. 3ª Turma. Rel. Min. Humberto Gomes de Barros. j. 7 de maio de 2007; Recurso Especial nº. 977.007/GO. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 24 de novembro de 2009; Recurso Especial nº. 866.414/GO. 3ª Turma. Rel. Min. Nancy Andrighi. j. 20 de junho de 2013.

[15] Art. 1º, III, da Lei nº. 9.433, de 8 de janeiro de 1997.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!