Estamos formando profissionais de Direito capacitados?
3 de maio de 2015, 8h00
Todavia, termino antes da hora, pois nem tudo estava na cabeça. Os 35 minutos que sobram devem ser preenchidos. Escrevo uma situação no quadro, caso real de ação civil pública que minha memória retém. Trata-se de precedente do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no qual uma ação civil pública foi proposta contra dezenas de proprietários que estavam há muitos anos vivendo ou exercendo o comércio em área de preservação permanente. Peço que façam uma contestação em nome de um dos réus, arguindo o que entenderem conveniente, mas chamando a atenção para o fato que o conflito situa-se entre proteção da APP e direito constitucional à moradia.
Alerto: não vale nota, nem é preciso se identificar. É só para ver como se saem. Eu lerei e devolverei na aula seguinte, com observações. Uma forma de ajudar.
Recolho as peças e, durante a semana, leio-as em casa. Surpresa. Muitas não passaram de três parágrafos. Várias não desenvolveram um raciocínio lógico. Grande quantidade não soube explorar o conflito de normas constitucionais. Uma, somente uma, foi até o final, pedindo corretamente a improcedência do pedido e especificando provas a serem produzidas.
Detalhe: o curso de graduação é de ótima qualidade. Os professores são mestres e doutores. Os alunos, digo, as alunas, porque correspondem a cerca de 80% da sala, são, na maioria, estudiosas e atentas. Não há problemas de disciplina. Mas se em agosto estiverem advogando (superado o exame de Ordem), estarão eles/elas capacitados para exercer a profissão? Tudo indica que não.
Conversei com três professores de outras faculdades de Direito, uma de Curitiba, localizada em um bairro, curso noturno e com alunos de condições econômicas mais modestas, as outras duas de municípios diferentes, uma de uma Universidade na capital e a outra de uma faculdade de Direito de cidade pequena. Responderam-me que têm constatado o mesmo, muito embora enfatizassem mais os erros de português e dificuldades de expor as ideias em uma sequência lógica de raciocínio.
Portanto, temos aí três tipos de desafios a enfrentar e, frequentemente, eles caminham juntos: a) erros de gramática; b) dificuldade de desenvolvimento de raciocínio lógico; c) desconhecimento de regras formais e de técnicas de requerer em juízo.
A primeira é a mais fácil de solucionar. Com um bom professor de português, podem aprender a usar as crases, a regência correta dos verbos e a evitar períodos longos com uso errado de pronomes relativos (v.g., que).
A segunda é mais difícil. Constata-se que muitos jovens têm enorme dificuldade em expor suas ideias de forma lógica e clara. O problema não está só na graduação, mas também — ainda que com menor frequência — no mestrado e no doutorado. Parágrafos incompreensíveis, inversão da ordem “sujeito, verbo e complemento”, expressões de pretensa erudição (v.g., decantação constitucional) e repetição de afirmações de forma absolutamente desnecessária.
Esta realidade tem várias causas, mas, certamente, uma delas é a ausência de boas leituras. A internet, que possibilita tantas coisas boas, acaba desestimulando a prática da escrita porque torna usual o copia e cola, além de ser obstáculo a leituras mais profundas. Tudo que passe de duas folhas é considerado excessivo, cansativo. Para um jovem estudante de Direito de hoje, Pontes de Miranda (que me socorreu tanto em minhas dúvidas) é algo tão distante quanto a música Tico-tico no fubá, de Zequinha de Abreu.
Mas isto também tem solução. O primeiro passo é ler. Não apenas livros jurídicos, mas também boa leitura e os editoriais dos melhores jornais. Além disto, há hoje cursos de redação, nos quais os professores ensinam como tornar a escrita clara, direta e atraente. Em 10 aulas de uma hora e meia é possível alcançar um progresso que se torna visível na primeira peça judicial escrita.
Por fim, a elaboração de peças. As dificuldades enfrentadas pelos jovens estudantes, inclusive os mais destacados, são incríveis. Raramente se encontra quem saiba redigir uma carta. Pouquíssimos sabem diferenciá-la de um ofício. Peças processuais, só são feitas quando há modelos, e disto resulta que todas ficam assemelhadas (o preâmbulo sempre tem a qualificação e em separado a palavra contestação em caixa-alta).
Esta deficiência também tem jeito. É oportuno, além da prática jurídica no curso, participar de estágios em escritórios de advocacia (inclusive para quem deseja ser do Ministério Público ou da magistratura) e também que os professores, além da base teórica, expliquem e exijam redação de peças processuais.
Atualmente, há formandos com aprofundadas noções sobre temas constitucionais da mais alta relevância, que falam sobre o “diálogo das fontes”, discutem a teoria de Habermas, aprofundam-se e apaixonam-se pelo estudo dos refugiados ambientais, mas quando têm que redigir uma petição inicial de despejo por falta de pagamento sentem-se impotentes.
Em outras palavras, muitos jovens se formam, passam no exame da OAB, mas não estão preparados para a vida profissional. Redigem petições enormes, repetitivas, com narrações desnecessárias e muitas vezes não formulam o pedido de forma precisa. Ora, o pedido na petição inicial ou na contestação é o que vai vincular o juiz. Ele não dará mais nem menos do que ali está explícito. Se não pedir não leva.
Isto só para falar dos atos mais simples da vida de um profissional. Imagine se ao recém-formado for requerido um parecer, uma defesa na esfera administrativa (onde ao invés de contestação há impugnação) ou um requerimento de urgência a uma agência reguladora.
Desta realidade é possível tirar algumas conclusões. Uma delas é a de que boa parte das pessoas que estão se formando tem dificuldades de externar suas ideias de forma clara, em português correto e com posicionamento ou pedido explícito. Do outro lado da moeda, é possível também concluir que estas dificuldades podem ser superadas, é possível remover o obstáculo que se coloca entre a formatura e o sucesso profissional.
Em um segundo momento, é razoável também admitir que os cursos de Direito estão se afastando da realidade da vida, cada vez mais preocupados com sedutoras teses constitucionais. No entanto, quando o formando for exercer a advocacia, possivelmente passará toda a vida sem ser provocado a interpor uma Ação Direta de Inconstitucionalidade perante o STF, mas terá que defender empregados, proprietários, empreendedores, infratores de normas administrativas ou criminosos.
Estas constatações não valem apenas para a advocacia, apesar de que a maioria dos formandos exercerá esta profissão. Elas, evidentemente, aplicam-se também a outros profissionais do Direito. Imagine um defensor público expondo de forma confusa; um promotor que no cível dê pareceres de 10 laudas, que mais tumultuam o processo do que auxiliam aqueles a quem tem o dever legal de proteger; um professor que não conheça a realidade e que, ao discorrer emocionado sobre investigação criminal, ouça de um aluno PM que na vida real é diferente; ou um juiz que dê decisões enormes, recheadas de citações, mas nas quais o vencedor não saiba por que ganhou e o vencido por que perdeu.
Finalmente, é possível concluir que a superação dessas deficiências pode ter solução individual (um estudante consciente não desanima, ao contrário, enfrenta o problema) ou institucional, procurando as escolas ou faculdades de Direito preparar seus alunos para que possam sobreviver profissionalmente no mercado de trabalho. Sabidamente, o sexto ano é o mais difícil de todos. Está na hora de pensar-se mais a respeito.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!