Justiça Tributária

A vilania das raposas fazendárias e omissões que permitem o crime

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

15 de junho de 2015, 8h00

Spacca
A diferença fundamental entre os cidadãos comuns e os servidores públicos é que os primeiros podem fazer qualquer coisa que a lei não proíba, enquanto os segundos só podem fazer o que a lei lhes permita.

A administração pública deve rigorosa obediência ao disposto no artigo 37 da Constituição Federal. Seus princípios básicos são: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Além disso, o mesmo artigo e as demais normas constitucionais estabelecem as regras de conduta dos servidores que não são pessoas mais importantes que qualquer cidadão.

Apesar da obviedade disso tudo, são comuns demonstrações de desrespeito  e afronta a tais normas, o que muitas vezes se configura crimes que, por falta de interesse ou por omissão dos organismos capazes de apurá-los e puni-los, tornam-se corriqueiros e fazem com que sejamos vítimas da iniquidade, da desfaçatez, da vilania e da falta de caráter de muitas pessoas.

Um caso emblemático é o tratamento que se dá ao pagador de impostos neste país. Tanto assim que alguns leitores já sugeriram que este espaço destina-se a estudos filosóficos ou metafísicos, uma vez que Justiça Tributária é algo inatingível neste país, um pouco além do nirvana, a tal quietude perpétua de Tristão da Cunha, uma espécie de apatia ou inércia, o estado de ausência do budismo, sem nada a ver com a banda de rock do Kurt Cobain. Enfim, segundo esses leitores, o tema Justiça Tributária no Brasil estaria próximo de uma tese de doutorado sobre o sexo dos anjos.

Por exemplo: a Secretaria de Finanças do Município de São Paulo (o Estado e a União não fazem muito diferente)  criou um tal de PPI – programa de parcelamento incentivado – onde deseja que os contribuintes que possuam corram logo a pagar suas dívidas, com generosos descontos, como essas vendas de ocasião que mercadores sem escrúpulos anunciam quase sempre para engabelar a vítima e fazer com que façam gastos desnecessários ou paguem dívidas inexistentes.

Se bancos e financeiras já contrataram verdadeiras quadrilhas de meliantes para representá-los e promover atos de terrorismo na cobrança de valores pelo menos duvidosos, a administração fazendária age no mesmo sentido.

Vejam só: antes da vigência da Lei Complementar 116, que regula a tributação do ISS, havia algumas atividades que não estavam sujeitas ao tributo, porque não elencadas no seu texto. Um desses casos eram os serviços profissionais de jornalismo.

Não há a menor dúvida de que só o serviço taxado na lista é que pode sofrer incidência do imposto. Nesse sentido decidiu o STF em vários casos, como nos Recursos Extraordinários 78.927 e 96.963: “A Lista do decreto-lei 834 é taxativa e não pode ser ampliada por analogia, ex vi do artigo 97 do CTN”.

Antes da Lei Complementar 116 vários doutrinadores examinaram à exaustão o caso. Yonne Dolácio de Oliveira, professora da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, em “Comentários ao Código Tributário Nacional”, obra coletiva coordenada pelo Prof. Ives Gandra da Silva Martins (Editora Saraiva, São Paulo, 1998, Volume 2, página 10) ensinou :

 “Quando a Carta Magna exige definição dos serviços pela lei complementar no ISS, o faz para reforçar a permanência do entendimento existente ao tempo da Carta anterior e, portanto, agasalhado no artigo 97, III e IV, vale dizer, os tipos legais tributários são cerrados, pois devem ser definidos através da indicação exaustiva  das notas características desses serviços, sempre necessárias.”

Sérgio Pinto Martins, eminente professor de Direito, em sua obra "Manual do Imposto Sobre Serviços” (Editora Atlas, São Paulo, 3ª edição, 2000, página 175) registra que:

"Sendo a lista de serviços taxativa, certos serviços ficaram fora da incidência do referido imposto, pois nela não estão compreendidos. São eles, entre os outros, os serviços de: atuário, agrimensor, artista, bibliotecário, biólogo, biomédico, carregador e transportador de bagagens, estatístico, farmacêutico, fisioterapeuta, terapeuta ocupacional, geógrafo, tatuador, escafandrista, modelo, geólogo, guardador e lavador de veículos automotores, pescador, petroquímico, químico, radialista, detetive particular, síndico de condomínio, armador, arquivista, jornalista, mãe social (Lei 7.287/84) nutricionista (Lei 8.234/91), orientador educacional (Lei 5.564/68), sociólogo (Lei 6.888/80, tecnólogo, zootecnista (Lei 5.550/68)."

O artigo 108 do Código Tributário Nacional, ao tratar da aplicação e interpretação da legislação tributária, determina:

"Artigo 108 – Na ausência de disposição expressa, a autoridade competente para aplicar a legislação tributária utilizará, sucessivamente, na ordem indicada:

I – a analogia;

II – os princípios gerais de direito tributário;

III – Os princípios gerais de direito público;

IV – a equidade;

§ 1º – O emprego da analogia não poderá resultar na exigência de tributo não previsto em lei."

Diz a Constituição Federal, (artigo 156) que o Município só pode instituir o ISS nos serviços “definidos em lei complementar”. Os serviços de jornalismo só passaram a ser tributados com a LC 116, cuja lista de serviços criou o item – 5.01 – Serviços de reportagem, assessoria de imprensa, jornalismo e relações públicas.

Apesar da clareza da lei anterior, que não fazia qualquer referência a tais serviços, quando uma empresa que os prestasse fosse inscrever-se no cadastro municipal para poder emitir nota fiscal, ainda que não incidente o imposto, a prefeitura a registrava como outra atividade (processamento de dados, por exemplo) e, a partir daí, exigia o ISS.

Só nesse procedimento já estava caracterizada a prática do crime tipificado no artigo 316 do Código Penal (excesso de exação).  Isso ocorre quando o servidor exige tributo que sabe ou deveria saber indevido. Simples assim. A quase totalidade dos jornalistas, por desinformação, conformismo ou porque simplesmente o repassavam aos seus clientes, nunca o questionaram. Mas…

O fisco resolveu fiscalizar e autuar uma pequena empresa de serviços de assessoria de imprensa. Seu proprietário, cidadão exemplar, recusou-se a pagar o que não devia e ante a exigência descabida, encerrou suas atividades e adotou providências judiciais para livrar-se de ser mais uma vítima do crime.

Só recentemente tomou conhecimento de que a Municipalidade, mesmo ciente de ser o tributo indevido, inscreveu a dívida inexistente como ativa e ingressou com execução fiscal!

O jornalista, que já encerrou há muitos anos a empresa, acaba de ser convidado a parcelar a conta. Descobriu, contudo, que a prefeitura ficou mais de 10 anos sem dar andamento ao processo de execução. Resultado: a dívida prescreveu! Veja-se o que decidiu, em caso idêntico, o Tribunal de Justiça do Estado na Apelação 9000063-74.1992.8.26.0090:

“PRESCRIÇÃO INTERCORRENTE – Execução fiscal – IPTU e Taxas – Exercício de 1991 – Município de São Paulo – Ocorrência – Retomada do prazo com o ajuizamento da execução – Precedente do STJ ao qual se imprimiu o regime do art. 543-C do CPC. – Paralisação do feito, porém, por mais de cinco anos – Inércia da exequente configurada – Recursos oficial e voluntário não providos.”

A decisão unânime do TJ-SP no referido acórdão, aliás mantendo a sentença de primeiro grau, descreve situação já comum nas execuções fiscais que ficam paralisadas por muito tempo. Disse o relator:

“…uma rápida leitura dos autos demonstra que a exeqüente permaneceu inerte, desde 18.10.1992, com ajuizamento da ação executiva (fls.02), até 06.08.2003 (fls. 12) , data em que compareceu aos autos para requerer o regular prosseguimento do feito e a abertura de vista. Como se observa, passaram-se mais de 10 (dez) anos sem que a exeqüente praticasse nos autos qualquer ato tendendo a impulsionar a cobrança de seu crédito.”

Amparou-se ainda o Voto na Súmula 314 do STJ, que fez questão de transcrever:

“Em execução fiscal, não localizados bens penhoráveis, suspende-se o processo por um ano, findo o qual se inicia o prazo da prescrição quinquenal intercorrente”.

Ora, cobrar imposto indevido, ingressar com ação de execução fiscal e permanecer por mais de 10 anos sem tentar cobrar um débito que se sabe que não existe, é ato de evidente ilegalidade. Pior ainda: a simples distribuição de uma ação de execução pode causar sérios prejuízos  ao contribuinte, com sua negativação nos famigerados cadastros de crédito, transformando-o em vítima de um sistema desleal, desonesto, criminoso mesmo, que visa apenas dar lucro a intermediários, a parasitas de toda espécie que lucram com tais práticas. Isso precisa mudar! E para tanto, é imprescindível que o Judiciário nos dê as respostas necessárias.

Por primeiro, seria muito útil que os nossos Tribunais criassem mecanismos capazes de identificar todos os casos de execuções prescritas por inércia dos exequentes e decretasse a prescrição de ofício que a lei determina. Isso seria Justiça. A omissão permite o crime de excesso de exação!

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  • é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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