É comum nos manuais se buscar, compulsivamente, a natureza das coisas. Em vão. Mesmo assim, as proposições sobre a natureza das coisas habitam os livros jurídicos e contribuem, no seu cúmulo, para o caos da hermenêutica jurídica inautêntica. Por isso, na tradição desta coluna Diário de Classe, pretendo enunciar algo sobre os jogos de linguagem de Wittegenstein. Pode ser interessante para se compreender as coordenadas paralelas da hermenêutica jurídica (Hermenêutica Filosófica).
Precisa-se recorrer ao ‘Tratactus Lógico-Philosophicus’[1] para se demonstrar a evolução do pensamento de Wittegenstein, eis que no Tractatus a proposição era considerada a partir de uma imagem estruturada e isomorfa dos fatos que representava a sua verdade, influenciada pela matemática, na qual a forma lógica era a garantia da possibilidade de se pensar e falar do mundo real. O sujeito seria plenamente consciente e não estaria inserido nas formas da vida, como quer ainda parte da epistemologia da modernidade. A relação era sujeito-objeto.
Nas Investigações Filosóficas[2], Wittegenstein muda o foco da abordagem. A proposição passa a ser apenas uma hipótese da representação, a qual demanda um processo constante de reformulação. Não se vincula mais a uma isoformia primeva entre a proposição e o fato representado, dependendo agora fundamentalmente das circunstâncias em que ela é manejada, conforme o contexto (o jogo). Não existe mais a prometida maneira formal de significação, uma vez que são as formas de vida que irão indicar o significado provisório, condicionado sempre ao decurso de tempo e aos contextos. Falar é só uma atividade humana, participante das ‘formas de vida’, tal qual comer, andar, argumentar, decidir, conversar e jogar. A relação passa a ser sujeito-sujeito.
Não tem mais sentido, pois, indagar-se qual o significado de uma palavra, já que a resposta estaria assentada na falsidade da premissa, ou seja, na (im)possibilidade de uma resposta definitiva e única[3]. Ela depende dos jogos da linguagem, da maneira dinâmica pela qual será empregada na práxis da linguagem, não se podendo mais se buscar significações cristalinas e ideais. As proposições, pois, não dão mais a segurança lógica da Matemática ou da Metafísica, estando desde sempre incluídas na linguagem, única via de acesso ao significado provisório e sujeito a modificações, havendo, assim, a necessidade de se buscar unidades de outra ordem, outros critérios, indicados como sendo os usos que se faz da linguagem nas diversas formas de vida. É no campo do uso da linguagem que a proposição ganha destaque e significado, não podendo residir numa aldeia ideal.
O significado das proposições, então, decorre dos usos que se realizam a partir deles próprios, tendo caráter fragmentário, aderidos ao ‘veja’, expressão que se refere à multiplicidade do mundo da vida, revés da consciência plena, do sentido pleno. Decorrência disto é que a linguagem vem superar a divisão entre mundo real e representação, tido o mundo real como referência de consistência lógica. Essa segurança desaparece pela mudança de perspectiva, agora restam opções de sentido. Não se trata mais de descobrir como funciona a linguagem, mas de como se emprega[4]. A retirada do referencial estático, eterno, modifica a maneira pela qual se pode significar, a despeito, pois, dos fatos. É na multiplicidade dos usos da linguagem que deverá se situar o mecanismo do referencial, não mais absoluto, mas no espaço/tempo, correspondendo aos usos possíveis. Em síntese: a linguagem declara sua independência em relação aos fatos, embora se articulem. Daí o perigo do conceptualismo.
Por certo essa maleabilidade encontra-se, ainda, regulada por mecanismos imprecisos, indicados pela propriedade de semelhança de família, e inseridos nos jogos de linguagem[5], estatuídos a partir de semelhanças e diferenças. Mas os limites dos conceitos decorrem das relações derivadas da ação, dos usos, sendo impossível, salvo de maneira metafísica, a colmatação de conceitos eternos, acessíveis aos interlocutores. Decorrem do processo intersubjetivo de atribuição de sentido, despregado de um fundamento primevo. Logo, à pergunta: o que significa esta palavra? Responde-se: significa a explicação que se der de sua significação, advinda do seu uso. Esse ‘uso’, todavia, é regulado por instituições, regras de discurso não totais[6], semiologia e semiótica — não podendo ser considerado o ‘vale tudo’ relativista; rejeita-se, assim, o fundamento do fundamento, inexistente, de resto.
Assim é que o ato de falar está repleto de termos vagos que não delimitam precisamente a que se referem; busca-se, enfim, compreender e se fazer compreender, supondo-se, tão-somente, a possibilidade de distinção entre forma, cor, conjunto de objetos, sem que possam ser confundidas com regras de condução, mas que servem apenas como regras de orientação.
Por essa linha de raciocínio, pois, perdem sentido os aprisionamentos de significado eternos realizados pelo senso comum teórico (Warat), eis que esta atribuição é feita no espaço/tempo, sujeita aos participantes do processo intersubjetivo, situação destacada, dentre outros momentos, por Canotilho ao responder às indagações sobre sua concepção de ‘Constituição Dirigente’, cujo sentido semântico evolui[7]. As apreensões, pois, formuladas pelo ‘Monastério de Sábios’ enjeitam esta ausência de referente primeiro, tanto assim que é mais do que comum à busca metafísica das ‘naturezas jurídicas das coisas’ (ações, tipos penais), como se fosse possível. Não o é, definitivamente, por impossível, já que a premissa é equivocada.
Daí a importância da viragem linguística e dos processos cognitivos, sempre vinculados à tradição autêntica (Streck), cuja atribuição, por sua vez, precisa entender o jogo em que se articula. Quando, assim, sugiro a possibilidade de se entender o processo penal como jogo, longe de procurar essências, aceito, de bom grado, o plano pragmático da linguagem e seus riscos. Com ele posso entender, para poder rejeitar, os sentidos inautênticos, em desconformidade com a tradição autêntica. Não se trata de relativismo, nem de essência, mas de sua superação pela hermenêutica filosófica. Termino com a advertência de Wittegenstein: “Não diga: ‘Não há nenhuma última elucidação’. É exatamente o mesmo que dizer: ‘Não há nenhuma última casa nesta rua’; pode-se sempre construir mais uma.” Boa semana.
Comentários de leitores
4 comentários
Segurança jurídica.
Johnny LAMS (Funcionário público)
Só gostaria de saber como conciliar essas verdades com a segurança jurídica. Infelizmente, o jogo de palavras no Brasil está muito desregrado, e jogá-lo está cada vez mais difícil e imprevisível.
Periodicidade do "definitivo"
Antonio D. Guedes (Professor Universitário - Tributária)
ORLANDO M. CARVALHO, ilustre mestre meu, narrava que na tumultuada transição dos anos 60 aos 70, ao procurar uma Constituição do Brasil (repetidamente emendada e substituída, além de submissa a Atos Institucionais e Complementares) em uma livraria jurídica de Londres, ouvira: "Não vendemos periódicos"! Ante a instabilidade e o contexto ideológico-cultural da linguagem, até enciclopédias seriam "periódicos" (e certamente a livraria teria falido)!
Passar fronteiras inexistentes?
Antonio D. Guedes (Professor Universitário - Tributária)
Estudo muito estimulante de reflexões sobre os inquietantes temas do conceito e da verdade, que aflije o intérprete e o julgado jurídicos, o historiador, o filósofo e até o debate de fundamentalismo ou etnodiscriminação como eventuais causas do terror e entre si! BAKTIN/VOLOCHINOV, antes de CHOMSKY, inaugurou o estudo da linguística como ideológica, com um cataclisma na visão jurídica de que o Direito seria justo por ter discurso senhor de verdades absolutas, conceitos definitivos e imutáveis essências. A visão culturalista de que usos e crenças moldam o discurso e sua aplicação pontual torna o intérprete um agente político-ideológico na corda bamba do circunstancial, com severos riscos oriundos da inconsciência disso. O "quadro" de aplicação do discurso jurídico é na verdade um ponto real/vital de emanação de vetores inclinados ideologicamente mas ilimitados, a se expandirem permanentemente (ensejando analogias, metáforas, novas significações). A aplicação (ou verdadeira elaboração) do Direito é, pois, realizada ideológica e culturalmente, mas sem fronteiras que a vedem. Daí: toda atuação jurídica encerra coloração de injustiça para alguém; construímos ideologicamente o Direito do caso concreto; e somos não meros "operadores do Direito" (quem os opera é quem se submete a ele, como investigadores, oficiais de justiça, contadores, gestores de recursos humanos): mas juristas, seus criadores.
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