Senso Incomum

O que Papai Noel, a bispa Sonia, o ECI e os embargos têm em comum?

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24 de dezembro de 2015, 8h34

Spacca
Resposta: provavelmente nada. Talvez para chamar a atenção e constatarmos que a coisa está ruim mesmo. Papai Noel, em crise, dá aulas em 10 turmas de graduação, está no Serasa e vai tirar empréstimo na Ficrisa – a financeira que só dá crédito para negativados. Bingo. Para mostrar que palavras e coisas brigaram feio – e deram um drible da vaca na minha poetisa preferida, Hilde Domin[1] – a Bispa Sonia está lançando um perfume… cristão, com cheiro de… Jesus (seria de Jesus suado ou depois do banho no Jordão?). Eis a ligação do que não tem ligação. Simples e complexo assim. Meio pós-moderno. Como a propaganda da cerveja Skin – você bebe porque…sim! Do mesmo modo que você paga um ano de academia e não frequenta. Por que você faz isso? Porque sim! Fim do primeiro ato.

Mas eu quero falar do Natal e dos meus tradicionais pedidos jurídicos. Quando eu era pequeno, ficava pedindo a intervenção de Jesus e Papai Noel para que houvesse Natal na minha casa, com arvorezinha e tudo. E, claro, presentes. Houve até um período em que havia. Logo depois, no ano do golpe de 64 e nos seguintes, nada de Papai Noel. Carregava água por dois quilômetros e ficava recitando versos e músicas natalinas. Enfim, deixa prá lá. Que fase.

Mas, vamos lá. Como deveria ser a lista de um jurista para o Papai Noel? Os pedidos não são muito diferentes dos do ano passado. Por isso, meus pedidos são uma espécie de crença “como se”. Peço coisas como se (als ob – isso vem da filosofia de Hans Vahinger) pudéssemos ser atendidos. Como se! Uma ficção necessariamente útil.

Vejamos a lista (Já fiz lista outras vezes e poucos ou nenhum pedido foi atendido), Insisto, pois:

1. Que as Faculdades de Leis se transformem em Faculdades de Direito e que a comunidade jurídica não apatife o novo Código de Processo Civil. Por favor, Papai Noel, convença os juízes de que o CPC é uma lei e que eles juraram cumprir a l-e-i! Simples assim. Leis devem ser cumpridas. E não só algumas partes escolhidas a dedo.

2. Que os julgados, a partir do NCPC, obedeçam, efetivamente, a coerência e a integridade (art. 926 do CPC); e que os juristas possam entender o seu significado;

3. Que os precedentes de que fala o NCPC não sejam vistos como se fossem pequenas pandectas, isto é, enunciados com pretensões plenipotenciárias, caindo, com isso, nas armadilhas do positivismo do século XIX; que os juristas saibam o que eu quis dizer com “pequenas pandectas”, que não é o mesmo que pequenas panquecas;

4. Que os juristas (juízes incluídos, é claro) não insistam em fazer, em 2016,  enunciados pensando-que-estão-legislando. Quem insistir nisso, não ganhará presentes e, sim, umas varadas com pequenos galhos de marmelo; ah: se insistirem, diga-lhes para se candidatarem a deputado;

5. Que as provas dos autos sejam examinadas pelos juízes e tribunais, e que os casos subjacentes aos processos sejam vistos sob uma ótica normativo-constitucional e não meramente econômico-quantitativa. E, Papai Noel, avise a todos de que, por trás dos processos, existem pessoas (e na frente deles também). Ah: e que nós, advogados, não precisemos mais ouvir, em 2016, estagiários e assessores comentando, em salas de aula e corredores de tribunais, coisas como “a minha decisão” ou “no ‘nosso’ gabinete do Desembargador fulano, minha tese é a vencedora”. Ups, Papai Noel, você sabe do que estou falando, certo?

6. Que os Tribunais Superiores entendam que, passados 800 anos desde o surgimento do habeas corpus, está na hora de implementarmos a possibilidade de implementar uma doutrina do habeas corpus. Sim, Papai Noel. Explique que habeas corpus quer dizer “traga-me o corpo”. E que o advogado, trazendo o corpo, não pode levar um “não conheço” do Tribunal. Ah, Santa querido: que a concessão de ofício não seja tão discricionária. Como? Não entendeu, Papai Noel? Está surdo?

7. Que o Ministério Público, ao qual me dediquei por mais de 28 anos, deixe de insistir na velha figura do Promotor Público, acusador sistemático para quem tanto faz e tanto fez se o réu é culpado ou inocente. Papai Noel: conte para os membros do MP que eles são fiscais da lei e que, sim, por mais incrível que lhes pareça, o acusado pode ser…inocente. Bingo, Santa Claus.

8. Que, quando uma lei for aprovada pelo Parlamento e esta não for inconstitucional (e não se enquadrar nas seis hipóteses de que falo no livro Verdade e Consenso), o Judiciário simplesmente… a aplique. Bingo de novo. Sim: um faz a lei, o outro… a aplica. Ajuda nisso, Weihnachtsmann. Você já me sacaneou tanto que bem poderia se recuperar agora, certo?

9. Que seja proibido o uso de princípios flambadores no Direito, como o da “confiança no juiz da causa”, da “rotatividade”, do “fato consumado”, da “amorosidade” (está em uma Lei federal, acredite se quiser) e similares. Chega de princípios fofinhos. Querido Santa Claus: se quiser, forneço-lhe as varinhas de marmelo para umas lambadas em alguns (ou muitos) excelsos lombos pindoramenses que ficam incentivando essa coisa chamada “pamprincipiologismo”;

10. Que a palavra “ponderação”, que consta no parágrafo segundo do artigo 489 do CPC, não dê azo a mantras do tipo “na colisão de regras, age-se no tudo ou nada” e na colisão de princípios “usa-se a ponderação”; putz; querido Weihnachtsmann: não mais permita que se escreva ou se diga que “princípios são valores”;

11. Que os processualistas penais e os penalistas de Pindorama se deem conta, finalmente – agora que o sapato está apertando com esse novo imaginário moralista que toma conta da operacionalidade do direito – que não dá mais para acreditar na falácia da livre apreciação da prova. Sim, Papai Noel, sei que, até o advento do mensalão, eles não se importavam com isso porque vinha dando certo… Mas agora parece que estão se dando conta de que não dá para operacionalizar o direito sem olhar para a história e sem levar em conta o papel dos paradigmas filosóficos. Não entendeu nada do que eu disse? Sei. Não se preocupe. Você não é o único (risos). Nada pessoal, Pai Natal.

12. Já pedi isso em 2013 e 214, querido Papai Noel, mas lá vai de novo: Que seja proibido dizer que Kelsen era um positivista exegético ou legalista (não leve presentes para quem disser isso);

13. Que certos docentes parem de pagar mico em sala de aula, cantando, gritando e fazendo charadinhas para decorar “fórmulas” jurídicas; violão e músicas da Xuxa, nem pensar, Papai Noel; ah: se alguém fizer funk com o NCPC, varinha de marmelo nele (sem frescura, Papai Noel: eu disse docente, onde está incluído o gênero feminino).

14. Querido Papai Noel: interfira para que os professores que ficam “brincando” de quiz show na TV, nos cursinhos preparatórios e na prova da OAB sejam obrigados a fazer as provas que seus colegas de quiz shows e cursinhos elaboraram; quem chumbar terá que assistir 100 vezes o episódio da Escolinha do professor Girafales, quando Chaves diz, com voz fininha: Que burro, que burro; dá logo zero prá ele (ver aqui).

15. Insisto no pedido de 2013 e 2014 e que você, Santa (veja a intimidade!) não atendeu: Que os advogados de todo o país-pindorama não mais sejam humilhados nas audiências, principalmente na justiça do trabalho e que, quando o advogado tiver uma pergunta indeferida e pedir para consignar na ata (sim, ata é para essas coisas), que o juiz não diga que o advogado o está desrespeitando (Papai Noel, seja duro nisso, tá?); e aproveite e peça ao Presidente da OAB local e nacional que fiquem do lado do advogado quando estes são desrespeitados; afinal, o preço da OAB não está nada barato.

16. Nessa linha, Pai Natal, aproveito para fazer outro pedido: que a OAB distribua adesivos e imãs de geladeira para avisar que, com o NCPC, não há mais livre convencimento e que, portanto, não mais poderão ser negados embargos com base em frases do tipo “nada há a esclarecer” e “fi-lo com base em minha convicção pessoal” (sim, Papai Noel: convicção pessoal entra na proibição de livre convencimento);

17. Que os servidores do Judiciário não tratem a “repartição” como se fosse sua ou como se estivessem fazendo favor ao jovem causídico (e nem ao velho causídico; cuidado com o Estatuto do Idoso); às vezes, é a sua primeira causa (Papai Noel, zele pelos jovens causídicos; não deixe que os serventuários, porteiros ou juízes os maltratem);

18. Que a Defensoria atue em causas de hipossuficientes (carentes de recursos) de verdade e que não faça concorrência com os causídicos que pagaram cinco anos de faculdade e…bom, Pai Natal, você sabe que a coisa não está fácil, certo?

19. E que os juristas – em especial os magistrados – aprendam o conceito de limites semânticos dos textos (deixemos que os textos nos digam algo, pois não?), para que não necessitemos, a todo momento, brigar pelos conteúdos significativos mínimos. Fica chato, Papai Noel, ficar brigando por coisas do tipo “por favor, onde está escrito x, não se pode ler y).

20. Papai Noel – eis um pedido sarcástico: Que os Tribunais de todo Brasil façam licitações (qualitativas) para comprar obras jurídicas (aquelas que ficam sobre as bancadas). A Lei das Licitações – pelo menos na versão que eu tenho – veda a compra de livros simplificados, mastigados, flambados, twitados, resumidinhos… Santa Claus: avise a todos que tais compras sem licitação podem dar improbidade (no mínimo epistêmica); ah: e me traga novas placas com dizeres “ironia”, “sarcasmo”, “irritação”.

21. Papai Noel, sobre os embargos de declaração…deixa prá lá. Não vai adiantar mesmo. Vamos pular esse pedido.

22. Grande Santa Claus, esse pedido é mais complexo: faça com que paremos de louvar a crescente jurisprudencialização do direito; portanto, determine que a doutrina volte a doutrinar; dê de presente um pacote de “lego”, para montagem do significado da palavra dou-tri-na!

23. No ano passado pedi para que institutos como delação premiada não servissem para conspurcar o sagrado direito ao silêncio. Dizia eu: Papai Noel, a delação não é instrumento para extrair confissões; entenda Santa: ninguém é favor da impunidade, mas faça com que não se corrija o direito por argumentos morais; pena Papai Noel, você fez ouvidos moucos. Confesse, vai.

24. Pai Natal, explique para a comunidade jurídica que direito não é moral e que a moral não pode corrigir o direito.

25. Agora um pedido relacionado à academia jurídica: que não mais sejam feitas dissertações e teses — mormente se for com dinheiro da combalida Viúva (bolsas da Capes e CNPq)  — sobre embargos, agravos, tipo penal, poder do árbitro, a origem do cheque, Constituição como ordem de valores,  ponderação, uniões homoafetivas em cursos de direito ambiental, música regional, obrigações e direitos humanos, consumidor e direitos humanos,  embargos e direitos humanos (compreendes a ironia, Santa? Com a partícula “e”, cabe qualquer coisa em qualquer curso de pós). Invistamos esse dinheiro – acaso for de universidade pública – em soro e leitos hospitalares, Papai Noel. Ah: e que não sejam concedidas bolsas para fazer tese sobre temas como “o banco central do Mercosul” em…Paris (quem não quer ir às custas da Veuve a Paris?) ou as festas juninas e os ritos do processo…em Londres; ou a violência feminina em São Paulo…a ser estudada na Espanha. Peço de novo isso, Pai Natal, porque se os temas são estritamente daqui, qual é a razão para desprezarmos mais de 30 programas de doutorado em direito de Pindorama? Sei que é chique estudar lá fora. Sei disso, Papai Noel. Mas tese sobre Lei Maria da Penha… na Inglaterra é dose, não é? Ups, Papai Noel: você quer uma bolsa da Capes para fazer uma tese sobre “As festas natalinas nas famílias alemãs do RS” a ser feita…na Alemanha? Poxa, até você, Weihnachtsmann?

26. De novo, repetindo 2014 e 2014: Que os congressos e seminários não mais iniciem com a frase “Bom dia a todos e a todas”. Papai Noel. Jogue pesado. Dê-lhes de presente uma cartilha da língua, para verem que, na palavra todos, estão “as todas”; oh, oh, oh!

27. Que não receba presente quem faça afirmações como “o Direito é aquilo que os tribunais dizem que é” ou “o texto é apenas a ponta do iceberg”, ou, ainda, “além do texto existem os valores que são ‘condição de possibilidade do texto’”. O que eu quero? Simples: Quero apenas que se cumpra a legalidade constitucional.

Por fim, Papai Noel: se a tese do Estado de Coisas Inconstitucional pegar mesmo, veja se você está legitimado a propor uma ADI para que, com efeito ex tunc, seja restaurada a governabilidade, antes que Pindorama acabe e não haja mais Natal, nem Páscoa, nem Constituição, nem… você sabe, Papai Noel, no-caos-não-há-direito(s). Triste assim.

Feliz Natal a todos os meus leitores espalhados pela imensidão de Pindorama.  Obrigado, Papai Noel, por ter ajudado a colocar a Coluna Senso Incomum 31 vezes em 2015 no ranking das dez matérias mais lidas do Conjur. Somando com participações avulsas e Diário de Classe, de 54 semanas, foram 36 rankings. Reparto a felicidade com meus leitores.

E para entrar no clima, oiçam esta música (https://www.youtube.com/watch?v=QS7ly4VnXnY)

[1]  Ela dizia: “Wort und Ding legen eng aufeinander; die gleiche Körperwärme bei Ding und Wort.” O quer dizer: “Palavra e coisa jaziam juntas; tinham a mesma temperatura a coisa e a palavra…”! E complemento: Sim, no início era assim. Mas, depois, palavra e coisa se separaram. E, com certa melancolia, acrescento: E nunca mais se encontraram… Hoje são inimigas!

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