Opinião

Ausência de pedido não impede indenização por danos causados em crime

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2 de dezembro de 2015, 6h16

Questão assaz interessante, de pouca aplicação prática, relaciona-se com a possibilidade de o juiz, na sentença condenatória, fixar “valor mínimo” para reparação dos danos causados pela infração, considerando os prejuízos sofridos pelo ofendido (CPP, artigo 387, IV).

De um modo geral e quase unânime, doutrina e jurisprudência alinham-se no entendimento que o arbitramento de qualquer valor na sentença, a título de reparação de danos, carece de pedido expresso na denúncia ou queixa, para permitir o contraditório e a ampla defesa do réu ou querelado.

A questão, ao nosso sentir, não tem sido bem compreendida e, por isso, colocada em seus justos termos, estando a norma do artigo 387, IV do CPP a merecer interpretação condizente com a sua finalidade, que não é outra senão emprestar agilidade na reparação dos danos que o delito tenha provocado na vítima ou nos seus sucessores.

Afinal: quando reclamam a exigência de contraditório e ampla defesa para fixação de “valor mínimo” na sentença, estão a se referir a que tema? À própria responsabilidade civil ou ao valor dela?

Noutras palavras: a necessidade de pedido expresso na denúncia ou queixa refere-se a uma pretensão condenatória ou à indicação de valor de uma futura e provável indenização? Ou a ambos?

De pronto surge a primeira indagação: há necessidade de a ação penal conter pedido que imponha ao réu uma obrigação de reparar os danos?

Neste particular, a resposta categórica é: Não!

Assim é porque, nos termos do artigo 91, I do Código penal, um dos efeitos da condenação é tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime.

Significa dizer que advindo sentença condenatória, o dever de indenizar sobressai ope legis, como efeito secundário da decisão.

Em assim sendo, não há se falar em cúmulo de demandas, em baralhamento da instância penal com a civil, embora assentadas no mesmo acontecimento fático.

A obrigação de reparar os danos não decorre de nenhum pedido que se possa fazer na ação penal, mas do efeito genérico da sentença condenatória (CP, artigo 91, I), que até prescinde de declaração expressa reconhecendo-a.

É o que basta para mostrar o equívoco do entendimento no sentido de que a ausência de pedido indenizatório ou de seu valor, na ação penal, viola o princípio (rectius: regra) da correlação entre acusação e sentença, cujo propósito é impedir seja o réu julgado por fato diverso daquele colocado na exordial acusatória.

Depois, é preciso anotar que, nas ações penais públicas, o Ministério Público sequer tem legitimidade para postular o ressarcimento de danos em favor da vítima ou dos seus sucessores [1], por se tratar de direitos disponíveis.

De fato, a Constituição Federal atribui ao órgão a defesa de interesses sociais e individuais indisponíveis (CF, artigo 127), entre os quais, evidentemente, não se inclui o relacionado à composição de danos morais ou patrimoniais causados às vítimas de delitos.

Aliás, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade “progressiva” do artigo 68 do Código de Processo Penal, que permitia ao Ministério Público promover a ação civil ou a execução da sentença condenatória voltada à reparação dos danos experimentados pela vítima “pobre”, que hoje é, por força de norma constitucional, representada pela Defensoria Pública (CF, artigo 134) [2].

Diante da situação, me adianto em perguntar: não tendo o Ministério Público legitimidade para reclamar o ressarcimento de danos, terá para postular, em nome alheio, a fixação de valor mínimo?

Nessas condições, de quem a doutrina e a jurisprudência exige a formulação de pedido expresso para instauração do contraditório e da ampla defesa?

Da vítima ou dos seus sucessores, que não podem aditar a denúncia nem ampliar o objeto da ação penal?

Em suma: impor a necessidade de a denúncia constar pedido de fixação de valor mínimo, para instauração de contraditório e ampla defesa, implica reconhecer, além de um cúmulo de demandas, uma legitimidade que o Ministério Público não mais ostenta, nem mesmo em relação aos hipossuficientes.

Não se pode pensar também que a vítima ou seus sucessores devam ser chamados a provocar o arbitramento de valor na ação penal, formulando pedido nesse sentido. Seria a instalação do caos no processo penal.

É certo que nada impede que o ofendido compareça e requeira a hipoteca legal (CPP, artigo 134), o arresto sobre imóveis (CPP, artigo 136) ou móveis (CPP, artigo 137), pertencentes ao causador do dano, estimando o valor da responsabilidade civil, cujo arbitramento será determinada pelo juiz, valendo-se, inclusive, para esses fins, de avaliador judicial ou perito (CPP, artigo 135).

Entretanto, esse procedimento é voltado à situação em que a vítima esteja reclamando a composição integral dos danos e pretenda, desde logo, assegurar, pela hipoteca ou arresto, a execução da obrigação reparatória que advirá da condenação penal do autor do ilícito.

Trata-se, na realidade, de medida cautelar, onde o contraditório se faz imprescindível em razão da especialização da hipoteca ou arresto, que compromete bens do réu para garantia da execução futura.

Não significa dizer, entretanto, que a fixação de “valor mínimo” na sentença (CPP, artigo 387, IV) reclame a instauração de procedimento prévio para estimação da indenização.

Absolutamente!

O procedimento de especialização da hipoteca ou arresto não é caminho a se percorrer para a fixação do “valor mínimo” na sentença.

A toda evidência, a alteração que a Lei 11.719/2008 produziu no artigo 387, IV do CPP teve por objetivo dotar a vítima de um título executivo líquido, para satisfação mínima dos danos que o delito lhe provocou, sem necessidade de arrastá-la para a ação penal, vitimizando-a ainda mais.

Seu fim foi criar atalhos ao longo e penoso caminho da liquidação da sentença, que acaba por desestimular a vítima ou seus sucessores a perseguir a recomposição dos danos.

Chamado a se defender da pretensão condenatória por crime que tenha provocado lesão patrimonial ou moral, sabe o réu, de antemão, que a procedência dela lhe trará a consequência de recompor os danos por meio de indenização à vítima ou aos seus sucessores. [3]

Bem por isso, não se defende unicamente em relação à acusação penal, mas também aos danos e à quantificação deles, que o juiz, por imposição legal (CPP, artigo 387, IV), haverá, necessariamente, de fixar na sentença, se condenado for.

E não se pode mesmo falar em “surpresa”, porque dispondo a lei que a sentença condenatória produz o efeito automático de obrigá-lo a reparar os danos, cumpre atentar para esse aspecto que a demanda pode tomar, se procedente a acusação.

Nessa ordem de ideias, não se faz necessário que a inicial acusatória indique o “valor mínimo”, para possibilitar o contraditório e a ampla defesa, que é realizado no decorrer do processo, por meio de defesa e produção de provas que contrariem não apenas aquelas que comprometem a inocência do réu, como também as que estejam a permitir a quantificação monetária dos prejuízos que o crime causou.

O efeito genérico da condenação dispensa a formulação de pedidos na denúncia, tanto em relação ao an debeatur como ao quantum debeatur, do qual o “valor mínimo” é expressão.

Também não se há de pensar que, para fixação da indenização e do seu valor mínimo, faz-se indispensável abrir discussão sobre a existência do próprio dano, que é requisito primeiro da causa de indenizar.

Absolutamente!

Em se tratando de determinados crimes, como homicídio, furto, estupro etc., o dano decorre do próprio fato ilícito (in re ipsa).

A prova do dano se faz pela prova do ilícito penal que ofenda a dignidade da pessoa humana. Provado o acontecimento, e a injustiça dele, automaticamente prova-se o prejuízo indenizável.

Não presta também o argumento de que o juiz não dispõe de elementos para a fixação da indenização, que, em nosso sistema, é medida pela extensão dos danos (CC, artigo 944, caput) e regulada pelo grau de culpa (parágrafo único), que constituem circunstâncias a serem analisadas na fixação da pena-base (CP, artigo 59).

Verdade é que nada, absolutamente nada, justifica o juiz lavar as mãos na bacia de Pilatos, deixando a questão para o cível.

Formulada a pretensão penal condenatória, cabe ao réu defender-se da acusação, sabendo ele (até porque a ninguém é dado ignorar a existência de lei) que da sua apenação decorrerá, ipso facto, sua responsabilização no ressarcimento dos danos que o ilícito causou.

É evidente que, em eventual recurso, não cabe ao réu atacar a indenização em si, isoladamente, que, repita-se ad nauseam, é efeito que provém da condenação, como a água da fonte.

Pode, entretanto, voltar-se contra o seu valor, considerando-o, verbi gratia, exorbitante, ou quando entenda não haver elementos probatórios que permitam, desde logo, quantificar a indenização, mesmo a “mínima”.

Entrementes, a impossibilidade a ser alegada é, necessariamente, a que decorre da escassez de provas, não a jurídica.

Insistindo ainda no tema relacionado à necessidade de a denúncia ou a queixa indicar “valor mínimo”, parece que a doutrina e a jurisprudência penalista faz, vez ou outra, certa confusão quanto à amplitude do contraditório e da ampla defesa sobre esse aspecto da ação penal.

Com certa frequência se tem entendido que, ainda que na denúncia ou na queixa conste pedido expresso de fixação de valor mínimo, se no curso da ação penal não se instalar o contraditório em torno da questão, fica vedado ao juiz fixá-lo na sentença.

Nada mais equivocado.

Sabe-se que, no juízo penal, — exatamente por estar em jogo a liberdade das pessoas — os princípios do contraditório e da ampla defesa assumem conotações rígidas e inflexíveis.

Não por outra razão se tem como causa de nulidade absoluta a não apresentação de defesa por parte do réu, ou quando a apresentada se mostra deficiente ou atécnica.

É que, em se tratando de liberdade, estamos frente a direito indisponível.

Na esfera cível, o contraditório tem contornos diversos, devendo ser entendido como a oportunidade que se deve abrir ao réu para contestar a pretensão contra si deduzida, colocando-se à sua disposição os meios de provas legais e pertinentes. Nesta, a falta de reação não provoca as mesmas consequências do âmbito criminal. Se o réu opta por não se defender, será declarada sua revelia, considerando-se verdadeiros os fatos não contestados, salvo se diante de direitos indisponíveis.

Embora fixada na ação penal, a indenização é direito disponível, que não se baralha com a “liberdade”.

Tratam-se de bens jurídicos diversos.

A indenização não perde sua natureza cível apenas porque é efeito decorrente da sentença penal condenatória passada em julgado.

Bem por isso, se o réu, não obstante a clareza da pretensão estampada na inicial acusatória, adota a postura do silêncio, não pode, a posteriori, alegar violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa.

Se deduzido na ação penal pedido de arbitramento de valor mínimo, a não impugnação dele pelo réu não inviabiliza sua fixação na sentença, não podendo sua inércia ou esperteza favorecer-lhe.

De outro lado, o “valor mínimo” da indenização — a ser fixado na sentença penal condenatória — é questão afeta às provas que os autos apresentam, que podem ou não permitir a quantificação dele. Se as coligidas no processo — no inquérito ou na instrução criminal — possibilitar a fixação de valor, mínimo ou inteiro, deve o juiz arbitrá-lo como consequência do decreto condenatório.

O “an debeatur” — me esfalfo em dizer — decorre da sentença condenatória passada em julgado. O “quantum debeatur”, das provas que permitam ou não a fixação do “valor mínimo”. Não as havendo, o levantamento há de ser feito em liquidação de sentença.

Como se vê, é equivocado o entendimento que reclama a existência, na denúncia ou queixa, de pedido formal quanto ao ressarcimento dos danos e/ou indicação do valor indenizável, para oportunizar a defesa do réu quanto ao tema, sob pena de violação aos princípios da ampla defesa e do contraditório.

Não havendo na lei exigência quanto à necessidade de a denúncia ou queixa conter pedido expresso de condenação à reparação dos danos, nem de “valor mínimo” deles, não pode o intérprete incluir requisito para o cumprimento do comando inserto no artigo 387, IV do CPP.

Aliás, o legislador não “facultou” ao juiz fixá-lo. Foi enfático em dizer: “o juiz, ao proferir a sentença condenatória, fixará (…)”. O verbo é colocado no imperativo.

Desse modo, a única ressalva é quanto à impossibilidade de se arbitrá-lo por conta da deficiência de provas sobre “os prejuízos sofridos pelo ofendido” (CPP, artigo 387, IV, in fine).

Provados os prejuízos — pouco importando a extensão deles — ao juiz se impõe o dever de fixá-los na sentença, sob pena de omissão intolerável, passível de embargos de declaração.

Tal é a importância que se dá à vítima em termos de ressarcimento dos danos que o delito lhe ocasiona, que a lei confere-lhe mecanismos de pronto ressarcimento, como se vê na possibilidade de se utilizar o valor da fiança e da prestação pecuniária como pagamento (CPP, artigo 336 e CP, artigo 45, §1º), estabelecendo, para essa finalidade, até preferência sobre “as despesas processuais e as penas pecuniárias” (CPP, artigo 140).

Em conclusão: se o crime provoca danos patrimoniais e/ou morais, deve o juiz arbitrar, em favor da vítima ou de seus sucessores, indenização que satisfaça minimamente os prejuízos, independentemente de existir ou não pedido expresso na denúncia ou na queixa, de se ter ou não instalado o contraditório e a ampla defesa sobre a questão.


1 CPC, art. 6. Ninguém poderá pleitear, em nome próprio, direito alheio, salvo quando autorizado por lei.

2 RE n. 147.776/SP, Rel. Min. Sepúlveda Pertence; RE n. 13.5328/SP, Rel. Min. Marco Aurélio de Mello.

3 Nesse sentido Renato Brasileiro Lima, Manual de Processo Penal, 3. Ed., Editora Juspodivm, 2015, p. 316/317.

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