Responsabilização dos advogados públicos pela elaboração de pareceres
20 de agosto de 2015, 8h00
Tais manifestações, quando acolhidas pela autoridade competente para decidir, constituem a própria motivação ou fundamentação do ato. Tradicionalmente, sempre se entendeu que o parecer contém apenas uma opinião de quem o proferiu, não produzindo efeito jurídico quando considerado isoladamente. Seria impensável cogitar, por exemplo, de impetrar um mandado de segurança ou qualquer outro tipo de ação pleiteando a invalidação de um parecer. Sempre se considerou que ele não constitui um ato administrativo propriamente dito, exatamente por não produzir efeitos jurídicos; por outras palavras, o parecer, por si, não afeta direitos de terceiros. Exatamente por isso, não constitui um ato administrativo impugnável pelas vias administrativa ou judicial. Também sempre se entendeu que, por conter mera opinião, a autoridade competente para decidir não é obrigada a acolhê-lo. Ela pode decidir de forma diferente da sugerida no parecer, desde que o faça motivadamente. Pode, inclusive, solicitar a manifestação de outro órgão jurídico.
A situação começou a alterar-se a partir de iniciativas do Tribunal de Contas da União que, ao responsabilizar autoridades administrativas pela prática de atos lesivos ao erário, passou a incluir no processo de apuração de responsabilidade os advogados públicos que proferiram o parecer jurídico em que se baseou a autoridade. O objetivo é o de fazê-los responder solidariamente com a autoridade que praticou o ato lesivo.
Uma norma que favoreceu esse tipo de entendimento foi a contida no artigo 38, parágrafo único, da Lei 8.666/93, em cujos termos “as minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração”. A redação do dispositivo não foi muito feliz, ao atribuir competência ao órgão jurídico para “aprovar” as minutas de editais e contratos, dando a impressão de que a aprovação, no caso, teria a natureza jurídica de ato administrativo produtor de efeitos jurídicos, vinculante para a Administração, e não mera opinião jurídica.
O dispositivo deu ensejo a que advogados públicos fossem chamados a responder perante os Tribunais de Contas por irregularidades ocorridas nos processos de licitações e nos contratos, em decorrência de vícios nos respectivos instrumentos “aprovados” pelo órgão jurídico. Também o Ministério Público, ao propor ações de improbidade administrativa, passou a estender a responsabilização aos advogados privados contratados como profissionais liberais para a elaboração de pareceres jurídicos, necessários à tomada de decisões.
A questão foi parar no Judiciário, inclusive no Supremo Tribunal Federal que, em pelo menos três acórdãos relevantes, expôs o seu entendimento, sem que se possa falar em jurisprudência pacificada, porque as suas decisões foram sendo parcialmente alteradas na apreciação dos casos concretos.
No Mandado de Segurança 24.073, de 2002, publicado em 6 de novembro de 2002, o relator, ministro Carlos Veloso, destacou em seu voto que os pareceres não são atos administrativos, mas “opinião emitida pelo operador do Direito, opinião técnico-jurídica”. Para ele, “o Direito não é uma ciência exata. São comuns as interpretações divergentes de certo texto de lei, o que acontece, invariavelmente, nos tribunais. Por isso, para que se torne lícita a responsabilização do advogado que emitiu parecer sobre determinada questão de direito é necessário demonstrar que laborou o profissional com culpa, em sentido largo, ou que cometeu erro grave, inescusável”.
Outra decisão do STF foi proferida no Mandado de Segurança 24.584-1/DF, julgado pelo Tribunal Pleno em 9 de agosto de 2007. Nessa hipótese, o Tribunal de Contas da União queria responsabilizar os procuradores federais do INSS por terem “aprovado” minuta de convênio celebrado entre o INSS e o Centro Educacional de Tecnologia em Administração (Cetead). O Supremo Tribunal Federal, alterando o entendimento anterior, decidiu que, em determinadas situações, é possível responsabilizar o advogado que proferiu o parecer, fazendo expressa referência ao parecer proferido com fundamento no artigo 38, parágrafo único, da Lei 8.666/93; este teria a natureza de ato administrativo, podendo acarretar a responsabilidade de quem deu a aprovação. O ministro Joaquim Barbosa fez, com base em doutrina estrangeira (de René Chapus), a distinção entre três tipos de parecer, o facultativo, o obrigatório e o vinculante: “(i) quando a consulta é facultativa, a autoridade não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se vincula ao parecer proferido, sendo que seu poder de decisão não se altera pela manifestação do órgão consultivo; (ii) quando a consulta é obrigatória, a autoridade não se vincula a emitir o ato tal como submetido à consultoria, com parecer favorável ou contrário, e se pretender praticar o ato de forma diversa da apresentada à consultoria, deverá submetê-lo a novo parecer; (iii) quando a lei estabelece a obrigação de decidir à luz de parecer vinculante, essa manifestação de teor jurídico deixa de ser meramente opinativa e o administrador não poderá decidir senão nos termos da conclusão do parecer ou, então, não decidir”. O Mandado de Segurança foi denegado, por maioria de votos, ficando decidido, no entanto, que os procuradores federais poderiam ser chamados ao Tribunal de Contas para apresentar explicações a respeito de seus pareceres e notas técnicas.
No Mandado de Segurança 24.631-6/DF, foi apreciada hipótese em que a manifestação do procurador consistiria na aprovação de acordo extrajudicial; portanto, tratar-se-ia de parecer vinculante. Entendeu o relator, ministro Joaquim Barbosa, que, em situações como essa, de parecer vinculante, haveria compartilhamento do poder administrativo de decisão, razão pela qual, em princípio, o parecerista poderia vir a ter que responder conjuntamente com o administrador, pois seria também administrador nesse caso (conforme Informativo 475, do STF). No entanto, a segurança foi denegada, por entender o relator que, no caso, o parecer era facultativo, hipótese em que a responsabilização do advogado somente pode ocorrer se atuou com dolo ou erro inescusável.
É importante ressaltar que os pareceres jurídicos exigem trabalho de interpretação de leis, muitas delas passíveis de divergências quanto ao seu sentido, exigindo a aplicação de variados métodos de exegese. Por isso mesmo, é perfeitamente possível que a interpretação adotada pelo advogado público (que, na função consultiva, participa do controle interno de legalidade da Administração Pública) não seja coincidente com a interpretação adotada pelos órgãos de controle externo. Seria inteiramente irrazoável pretender punir o advogado só pelo fato de sua opinião não coincidir com a do órgão controlador, até mesmo levando em consideração que nem sempre os técnicos e membros dos tribunais de contas têm formação jurídica que os habilite a exercer atividade de consultoria, assessoria e direção jurídicas, que é privativa da advocacia, nos termos do artigo 1º, inciso II, do Estatuto da OAB. Mesmo em se tratando de controle exercido por membros do Ministério Público, nada existe em suas atribuições institucionais que lhes permita censurar ou corrigir opinião emitida licitamente por qualquer advogado, seja público ou privado. Por isso mesmo, sua responsabilização depende da demonstração de que o advogado, ao proferir sua opinião, agiu de má-fé, com culpa grave ou erro grosseiro. De outro modo, faltará aos advogados o mínimo de segurança jurídica para o exercício de suas funções, consideradas essenciais à justiça pelos artigo 131 e 133 da Constituição Federal, com a garantia da inviolabilidade por seus atos e manifestações no exercício da profissão.
O fato é que, se o parecer está devidamente fundamentado, se defende tese aceitável, se está alicerçado em lição de doutrina ou de jurisprudência (que constituem fontes do direito), não há como responsabilizar o advogado pela opinião manifestada em parecer jurídico nem a autoridade que, com base nele, proferiu a decisão.
Não me parece que o caráter vinculante ou facultativo do parecer, na classificação do ministro Joaquim Barbosa, seja relevante para fins de responsabilização do advogado público. O que é relevante é a verificação do elemento subjetivo com que atuou. Se agiu de má-fé, se praticou erro grosseiro, se atuou com dolo, cabe a sua responsabilização.
O novo Código de Processo Civil, cujo Título VI estabelece normas sobre advocacia pública, determina, no artigo 184, que “o membro da Advocacia Pública será civil e regressivamente responsável quando agir com dolo ou fraude no exercício de suas funções”.
Temos realçado, em diferentes oportunidades, que a advocacia pública, quando na função consultiva, participa ativamente do controle interno que a Administração Pública exerce sobre seus próprios atos. Isto porque, no exercício desse controle, as autoridades socorrem-se da advocacia pública. Esta não age por iniciativa própria. Ela não exerce função de auditoria, de fiscal da autoridade administrativa. Ela se limita a responder a consultas que lhe são formuladas pelas autoridades, quer sobre atos que ainda vão praticar (e, nesse caso, o controle é prévio), quer sobre atos já praticados, sobre os quais surjam dúvidas quanto à legalidade (e, nesse caso, o controle, é posterior).
A regra é que as autoridades administrativas, mesmo quando revelem inconformismo com a submissão à lei e ao Direito – que muitas vezes constituem entraves aos seus objetivos – consultem a advocacia pública, ainda que a lei não exija sempre essa consulta. Mesmo quando quer praticar um ato ilícito, a autoridade quer fazê-lo com base em parecer jurídico; para esse fim, ela pede e pressiona o órgão jurídico para obter um parecer que lhe convenha (daí a importância da inserção da advocacia pública fora da hierarquia administrativa, para fins de exercício de suas funções institucionais; daí também a importância da estabilidade dos membros da advocacia pública). A autoridade quer, na realidade, dar aparência de legalidade a um ato ilegal e, para esse fim, quer refugiar-se atrás de um parecer jurídico, até para ressalvar a sua responsabilidade. O advogado público que cede a esse tipo de pressão amesquinha a instituição e corre o risco de responder administrativamente por seu ato. Estará agindo de má-fé e poderá ser responsabilizado.
O papel do advogado público que exerce função de consultoria não é o de representante de parte. O consultor, da mesma forma que o juiz, tem de interpretar a lei para apontar a solução correta; ele tem de ser imparcial, porque protege a legalidade e a moralidade do ato administrativo; ele atua na defesa do interesse público primário, de que é titular a coletividade, e não na defesa do interesse público secundário, de que é titular a autoridade administrativa. O importante, para afastar a responsabilização, é a adequada fundamentação do parecer jurídico, que deverá sempre basear-se, não só no direito positivo, mas também nas lições da doutrina e na jurisprudência.
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