Direito Comparado

Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial (parte 5)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

26 de novembro de 2014, 17h39

Spacca
A última coluna foi dedicada ao Direito das Obrigações no Código Civil e Comercial argentino (clique aqui para ler), o qual não passou incólume a algumas críticas. Na sequência, examina-se o título relativo aos contratos.

O código argentino define contrato como “o ato jurídico mediante o qual duas ou mais partes manifestam seu consentimento para criar, regular, modificar, transferir ou extinguir relações jurídicas patrimoniais” (artigo 957). Os elementos clássicos do consentimento, da pluralidade de partes e do fim específico de criar, modificar ou extinguir relações jurídicas estão presentes, associados a uma qualificação dessas últimas como patrimoniais.

A “liberdade de contratação”, equivalente ao conceito de “liberdade de contratar”, está referida no artigo 958, sendo seus limites a lei, a ordem pública, a moral e os bons costumes.  Ao seu lado está a força obrigatória do contrato, qualificada como “efeito vinculante” (artigo 959), segundo a qual “todo contrato validamente celebrado é obrigatório para as partes”. O poder de intervenção judicial nos contratos é genericamente admitido no artigo 960, em duas hipóteses: a) somente por provocação de uma das partes, quando a lei o autorizar; b) de ofício, quando esse afetar, de modo manifesto, a ordem pública.

A boa-fé, aqui entendida como boa-fé objetiva, tem sua sede material no artigo 961. Segundo essa norma, os contratos devem ser celebrados, interpretados e executados de boa-fé. As partes obrigam-se não apenas ao que expressaram de modo formal, mas também às consequências que se possam entender nelas compreendidas. Além disso, as partes vinculam-se aos fins aos quais um contratante, cuidadoso e previdente, razoavelmente se obrigou.

O artigo 965 tem uma norma de alcance bastante curioso: “Os direitos resultantes dos contratos integram o direito de propriedade do contratante”.

Ocupa-se também o novo Código Civil e Comercial argentino de um capítulo de classificação dos contratos, o que geralmente é deixado ao domínio da doutrina. A partir do artigo 966, descansam definições sobre contratos: a) unilaterais e bilaterais; b) onerosos e gratuitos; c) comutativos e aleatórios; d) formais; e) nominados e inominados. 

Os contratos de adesão, denominados de contratos por adesão a cláusulas gerais predispostas (artigo 984), são aqueles nos quais o contratante adere a “cláusulas gerais predispostas unilateralmente, pela outra parte ou por um terceiro, sem que o aderente tenha participado em sua redação”.  Tais “cláusulas gerais predispostas” devem ser compreensíveis e autossuficientes, bem assim a “redação deve ser clara, completa e facilmente inteligível”. Esses caracteres aplicam-se ainda à contratação telefônica ou eletrônica e suas equivalentes (artigo 985).

O tema das cláusulas abusivas também ganhou espaço no código argentino de 2014. De acordo com a redação do artigo 988, essas cláusulas serão consideradas não escritas, nos contratos por adesão, quando: a) desnaturem as obrigações do predisponente; b) importem renúncia ou restrição aos direitos do aderente, ou ampliem direitos do predisponente, que resultem de normas supletivas; c) não sejam naturalmente previsíveis, em termos de conteúdo, redação ou apresentação. Caso essas cláusulas tenham obtido aprovação administrativa, nos contratos submetidos a controle regulatório, por exemplo, não há óbice ao controle judicial. E, se o juiz, com fundamento na existência de cláusula abusiva, declarar a nulidade parcial do contrato, em simultâneo, deverá integrá-lo, se este não pode subsistir sem comprometer sua finalidade (artigo 989).

As tratativas ou pontuações foram reguladas nos artigos 990-993. A promoção das negociações preliminares é lícita e as partes podem abandoná-las a qualquer tempo. Durante sua realização, as partes devem agir de boa-fé para não frustrar injustificadamente as tratativas. Se não for observado esse dever, haverá pretensão indenizatória em favor do prejudicado.

O problema dos contratos de longa duração, cuja ruptura tem sido objeto de várias demandas, foi objeto do artigo 1.011, que apresenta uma redação prolixa e confusa: “Nos contratos de longa duração, o tempo é essencial para o cumprimento do objeto, de modo que se produzam os efeitos queridos pelas partes ou se satisfaça a necessidade que as levou a contratar” (primeira parte). Evidencia-se neste excerto, um caráter conceptual (uma vez mais) e baixa densidade normativa. O dispositivo prossegue: “As partes devem exercitar seus direitos conforme um dever de colaboração, respeitando-se a reciprocidade das obrigações do contrato, considerada em relação à duração total” (segunda parte). Por fim, “a parte que decidir a rescisão deve dar a outra a oportunidade razoável de renegociar de boa-fé, sem incorrer no exercício abusivo dos direitos” (terceira parte). Esse último trecho é o mais criticável: a) pressupõe que haja renegociação obrigatória “de boa-fé”, o que aparenta ser uma cláusula compulsória e legal de hardship; b) não se consegue alcançar o que seja uma renegociação de boa-fé, a se admitir que se possa renegociar de má-fé; c) qual o sentido da expressão “sem incorrer no exercício de abusivo de direitos”? Não seria expletiva essa regra?

A adesão ao sistema causalista é reafirmada no artigo 1.012, sendo certo que a “a falta de causa dá lugar, segundo os casos, à nulidade, adequação ou extinção do contrato” (artigo 1.014). Alude-se ainda à causa ilícita, que implicará a nulidade do contrato quando aquela for “contrária à moral, à ordem pública ou aos bons costumes” ou ainda quando “ambas as partes tenham concluído o contrato por um motivo comum ilícito ou imoral” (artigo 1.015).

O princípio da relatividade dos efeitos do contrato foi adequadamente referido nos artigos 1.021 e seguintes. Reconhece-se que o “contrato só tem efeito entre as partes contratantes; não o tem em relação a terceiros, exceto nos casos previstos em lei” (artigo 1.021). Em complemento, prescreve também o código de 2014 que “o contrato não faz surgir obrigações a cargo de terceiros, nem os terceiros têm direito a invocá-lo para fazer recair sobre as partes obrigações que estão não tenham convencionado, exceto disposição legal” (artigo 1.022). Como formas atípicas de participação do terceiro nos vínculos negociais alheios estão o contrato em nome de terceiro (artigo 1.025), a promessa de fato de terceiro (artigo 1.026), a estipulação em favor de terceiro (artigo 1.027), o contrato com pessoa a declarar (artigo 1.029).   

A interpretação do contrato é outro ponto que merece uma análise específica.  O código de 2014 contemplou o tema nos artigos 1.061-1.068. A primeira e mais importante das regras é a constante do artigo 1.061: “O contrato deve interpretar-se conforme a intenção comum das partes e ao princípio da boa-fé”. Há aqui uma miscelânea da teoria da vontade com a teoria da confiança, embora se haja optado pela teoria da declaração no artigo 1.062, cuja epígrafe é “interpretação restritiva”. Segundo essa regra, “quando, por disposição legal ou convencional, se estabelece expressamente uma interpretação restritiva, deve ater-se à literalidade dos termos utilizados ao se manifestar a vontade. Este artigo não é aplicável às obrigações do predisponente e do fornecedor nos contratos por adesão e nos de consumo, respectivamente”.  No artigo 1.067, reafirma-se a opção do codificador de 2014 pela teoria da confiança, embora aqui o faça de modo exclusivo. Sob a epígrafe de “proteção da confiança”, afirma-se que: “A interpretação deve proteger a confiança e a lealdade que as partes se devem reciprocamente, sendo inadmissível a contradição com uma conduta juridicamente relevante, prévia e própria do mesmo sujeito”.

Os contratos conexos, um tema muito caro à doutrina civilista contemporânea, também ganharam definição legal: “Há conexidade contratual quando dois ou mais contratos autônomos estejam vinculados entre si por uma finalidade econômica comum previamente estabelecida, de modo que um deles tenha sido determinante do outro para a consecução do resultado pretendido. Esta finalidade pode ser estabelecida pela lei, expressamente pactuada ou derivar da interpretação, conforme se dispõe o artigo 1.074” (artigo 1.073). Os contratos conexos interpretam-se uns por meio dos outros, atribuindo-lhes o sentido apropriado que surge do grupo de contrato, de sua função econômica e do resultado pretendido (artigo 1.074).

São efeitos da existência de conexão contratual: a) um contratante pode opor as exceções de descumprimento total, parcial ou defeituoso, ainda que em face da inexecução de obrigações alheias a seu contrato específico; b) idêntica regra é aplicável, atendendo-se ao princípio da conservação, quando a extinção de um dos contratos produz a frustração da finalidade econômica comum (artigo 1.075).

Os modos de modificação e de extinção do contrato foram agrupados em um capítulo específico, aos quais se somou uma nova expressão — a adequação contratual. O codificador argentino valeu-se da seguinte classificação dos atos a eles concernentes:

1) Rescisão bilateral — A rescisão bilateral não é definida. Há apenas a menção ao fato de que ela produz efeitos ex nunc e não afeta direitos de terceiros, salvo estipulação em contrário (artigo 1.076).

2) Extinção por declaração de uma das partes — O codificador argentino aqui cuidou do que seria, no Brasil, de uma resilição unilateral. Para o artigo 1.077, essa extinção por declaração de uma das partes compreende: a) a rescisão unilateral; b) revogação; c) resolução.   

Encontram-se algumas regras comuns às espécies “1” e “2” no artigo 1.078: a) o direito é exercitável mediante comunicação de uma parte à outra; b) é possível que a extinção do contrato ocorra de modo judicial ou extrajudicial; c) é admitido o exercício de oposição à extinção do contrato, se, ao tempo da declaração, o declarante não tenha cumprido, ou não esteja em condições de cumprir, a prestação que deveria realizar para poder exercer a faculdade de extinguir o contrato; c) é opção da parte que pretenda extinguir o contrato a demanda de exigir seu cumprimento ou a que visa ao ressarcimento de danos. Não haverá impedimento a ulterior pretensão extintiva.

 A frustração do fim do contrato, dita “frustração da finalidade” no artigo 1.090, é assim conceituada: “A frustração definitiva da finalidade do contrato autoriza a parte prejudicada a declarar sua rescisão, se tem sua causa em uma alteração de caráter extraordinário das circunstâncias existentes ao tempo de sua celebração, alheia às partes e que supera o risco assumido pela que é afetada. A rescisão é operativa quando esta parte comunica sua declaração extintiva à outra. Se a frustração é temporária, existe direito à rescisão somente se se impede o cumprimento oportuno de uma obrigação cujo tempo de execução é essencial”.

Ao lado da frustração do fim, o Código Civil e Comercial argentino dedicou um único artigo à chamada “imprevisão”. Trata-se do artigo 1.091, cuja estrutura pode ser resumida deste modo:

a) Imprevisão em contrato comutativo de execução diferida ou permanente. Se a prestação a cargo de uma das partes torna-se excessivamente onerosa, por uma alteração extraordinária das circunstâncias existentes ao tempo de sua celebração, decorrente de causas alheias às partes e ao risco assumido pela que é afetada, terá este o direito a postular, de modo extrajudicial ou judicial, por ação ou por exceção, a rescisão total ou parcial do contrato. Admite-se também o direito à adequação, o que não é objeto de definição no dispositivo, mas que se admite como o pedido de modificação ou revisão do contrato.

b) Imprevisão em contrato aleatório. É admitida a invocação da imprevisão para essa modalidade de contratos, o que não se admite no Código Civil italiano, desde que a prestação venha a se tornar excessivamente onerosa por causas alheias a sua própria álea.

c) Imprevisão em favor de terceiro. O terceiro pode se prevalecer da imprevisão nos contratos a quem haja sido conferidos direitos ou estabelecidas obrigações resultantes dessa avença.

Os artigos 1.090 e 1.091 são muito criticáveis, o que se revela surpreendente até pela longa tradição de estudos dogmáticos na Argentina sobre ambos os assuntos, além, é claro, da notória experiência jurisprudencial advinda das crises econômicas dos anos 1980, 1990 e 2000. Duas críticas podem ser enunciadas aqui: a) a vacuidade conceptual da frustração, que se desloca de seu âmbito clássico, a saber, a divergência da causa final com os acontecimentos advindos da execução do contrato. Não se trata propriamente de uma causa de resolução ou uma invalidade, mas de uma perturbação da causa-fim do contrato, o que é amplamente conhecido pelos célebres Casos da Coroação ingleses e alemães; b) A epígrafe do artigo 1.091 menciona a imprevisão, o que induz ao intérprete examinar a figura jurídica com base nos postulados teóricos franceses da teoria da imprevisão. A leitura do artigo, porém, apresenta como fundamento teórico a onerosidade excessiva, de matriz italiana. A ausência do qualificativo imprevisível para o fato extraordinário poderá abrir amplas discussões sobre se qualquer fato macroeconômico poderá justificar a resolução ou a modificação do contrato.

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  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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