Direito Comparado

Argentina promulga seu novo Código Civil e Comercial (parte 4)

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

12 de novembro de 2014, 16h07

Spacca
Prossegue-se com a série de colunas sobre o novo Código Civil argentino. Já foram examinados os antecedentes da codificação, a Parte Geral e o Direito de Família. Agora, serão estudados os principais aspectos do Livro Terceiro, que trata dos Direitos Pessoais, especificamente em relação ao Direito das Obrigações. Na próxima semana, cuidar-se-á do Direito dos Contratos.

O Livro Terceiro é inaugurado com um capítulo de disposições gerais, no qual se encontram a definição (artigo 724), os requisitos (artigo 725) e a causa (artigo 726) das obrigações.

A obrigação é entendida como “uma relação jurídica em virtude da qual o credor tem o direito a exigir do devedor uma prestação  destinada a satisfazer um interesse lícito e, diante do descumprimento, a obter forçadamente a satisfação do dito interesse” (artigo 724). Trata-se de uma definição que coloca a licitude como elemento integrante do suporte obrigacional, o que é, à partida, algo bastante discutível. Além disso, misturam-se elementos externos à obrigação (execução forçada) com um dos três possíveis fins obrigacionais (satisfação do interesse do credor). Para além dos riscos de se incluir definições em uma lei, o codificador argentino ofereceu uma caracterização de obrigação que pode ser tida como ultrapassada e incoerente.

A deficiência e a defasagem conceitual estão em se identificar no fim obrigacional apenas a satisfação do interesse do credor, a doutrina portuguesa dos anos 1960, louvada em autores alemães, já entendia que a extinção do vínculo obrigacional poder-se-ia dar pela (a) realização dos deveres prestacionais,  (b) satisfação dos interesses do credor e (c) liberação do devedor. Sendo certo também que se poderá extinguir a obrigação sem que o interesse do credor  haja sido satisfeito, sem que a prestação se tenha realizado ou mesmo sem liberação do devedor. São exemplos clássicos a obrigação post pactum finitum (resolvido o contrato de prestação de serviços advocatícios, o advogado deve guardar dever de sigilo e de cooperação com seu cliente, conservando-se parte dos vínculos obrigacionais) ou da situação em que houve pagamento, mas ele não atendeu aos interesses do credor (entrega de imóvel arruinado).  

Nem se comente da inclusão da licitude como elemento obrigacional, o que também é contrário à hipótese de obrigações ilícitas (que não deixam de ser obrigações) ou de negócios jurídicos ilícitos (que também não deixam de ser negócios jurídicos por serem ilícitos). Esse problema se reapresenta no artigo 725, dedicado aos “requisitos” da prestação, os quais estão assim descritos: “a prestação que constitui o objeto da obrigação deve ser material e juridicamente possível, lícita, determinada ou determinável, susceptível de valoração econômica e deve corresponder a um interesse patrimonial ou extrapatrimonial do credor”. Essas dificuldades conceituais têm sua raiz na maneira como foi estruturado o ato jurídico na Parte Geral. Como visto em coluna anterior, a classificação do código argentino nem de longe prima pela coerência.

O Código de 2014 declara-se causalista (artigo 726) e o faz de modo a confundir a causa do negócio jurídico com a causa obrigacional. Diz-se que “não há obrigação sem causa” e, em seguida, tenta-se explicar essa afirmação no próprio artigo: “é dizer, sem que derive de algum fato idôneo para produzi-la, de conformidade com o ordenamento jurídico”.  Nessa chave, é de se indagar: que fato não é idôneo para gerar obrigações? Os ilícitos criam obrigações delituais, que, por serem delituais, não deixam de ser obrigações. Os lícitos podem criar obrigações, salvo quanto às hipóteses de criação de outras espécies de situações jurídicas. Em todo caso, a definição é problemática.

A classificação das obrigações segue a estrutura tradicional, com algumas variações: a) obrigações de dar; b) obrigações de dar coisa certa para constituição de direitos reais; c) obrigações de dar para restituir (outra nomenclatura discutível); d) obrigações genéricas, que assim o é por recair “sobre coisas determinadas apenas por sua espécie e quantidade”, no que andou bem o codificador ao não aludir a gênero (como equivocadamente insistiu o Código Civil de 2002); e) obrigações relativas a bens que não são coisas; f) obrigações de dar dinheiro; g) obrigações de fazer e de não fazer; h) obrigações alternativas; i) obrigações facultativas.

A cláusula penal é tratada sob a rubrica das “obrigações com cláusula penal e sanções cominatórias” (artigos 790 e seguintes).  A criação de uma espécie obrigacional qualificada pela presença de cláusula penal ou de um preceito cominatório é outra escolha a ser posta em causa, por não se justificar a autonomia taxionômica.  Um ponto relevante: a cláusula penal pode  ser (e não deve ser, como está no código brasileiro) reduzida judicialmente se (a) seu montante for desproporcional ante a gravidade da falta que visa sancionar, tendo-se em conta “o valor das prestações e demais circunstâncias do caso”, o que pode configurar “um abusivo aproveitamento da situação do devedor”. Além de não usar o comando imperativo, o codificador argentino criou amarras para essa redução, como a prova de um dolo de aproveitamento do credor (artigo 794). É importante destacar que inexiste no Código de 2014 uma regra limitadora do valor da cláusula penal ao valor da obrigação principal (para as espécies compensatórias) ou em um índice (para as espécies moratórias), como há no Brasil.

A redução proporcional do valor da cláusula penal torna-se obrigatória na hipótese do artigo 798, quando se cuida da aceitação pelo credor do cumprimento parcial, imperfeito ou moroso da obrigação. Nesse caso, “a pena deve ser diminuída proporcionalmente”.

Persiste a classificação de obrigações divisíveis e indivisíveis (artigos 805 e seguintes). No artigo 806, alínea “b”, reconhece-se a indivisibilidade econômica, como passou a admitir o Código Civil brasileiro em seu artigo 258.

É igualmente mantida a referência às obrigações solidárias (artigos 827 e seguintes), com a regra de que a solidariedade “não se presume e deve surgir inequivocamente da lei ou do título constitutivo da obrigação” (artigo 828).

O adimplemento, que é denominado de “pagamento”, define-se como “o cumprimento da prestação que constitui o objeto da obrigação” (artigo 865). Aqui também se podem formular idênticas objeções ao conceito que as lançadas em relação à noção de vínculo obrigacional. Pode-se pagar e mesmo assim não “cumprir” a prestação. O espaço e a natureza da coluna impedem que se desenvolva esse problema com maior verticalidade.

O conceito de mora é central na teoria do adimplemento e gera muitas desinteligências doutrinárias no Brasil em face da adoção de um conceito amplo de mora, que açambarca o tempo, o modo e o lugar, diferentemente do conceito restrito do Direito alemão. Os argentinos definiram a mora de modo não unitário, ao se referir expressamente à mora do devedor (artigo 886), a qual se “produz pelo simples transcurso do tempo fixado para seu cumprimento”. Manteve-se o Código de 2014 fiel ao conceito clássico de mora, o que pode ser notado pelo contraste com a exuberante definição brasileira: “Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer” (artigo 394, Código Civil de 2002).

Exonera-se das consequências jurídicas da mora o devedor que provar que não é “imputável, qualquer que seja o lugar do pagamento da obrigação” (artigo 888). O codificador argentino não menciona a palavra culpa, limitando-se à noção de imputabilidade, cuja definição aparece, de modo indireto, no artigo 955, que esclarece o que seja a impossibilidade absoluta: ela pode ocorrer por causas imputáveis ao devedor, o que faz modificar o objeto da obrigação, convertendo-a em “obrigação de pagar uma indenização de danos causados”. Haverá impossibilidade quando sua causa descansar no fortuito ou na força maior, o que extingue a obrigação, “sem responsabilidade”.

Esse ponto, que é central em qualquer regime jurídico privado, mereceu um tratamento sucinto e pouco adequado. Ter-se-iam duas impossibilidades absolutas: uma que extingue a obrigação (fundada em causas excludentes, como o fortuito e a força maior) e outra transforma a obrigação original em outra, que consiste em pagar a indenização.

A contemporânea experiência europeia nesse campo é indicadora de um descompasso do Código de 2014. O atual Direito alemão, no que foi criticado por alguns autores renomados, retirou da impossibilidade sua antiga posição majestática no sistema obrigacional. Agora, a resolução é independente da atuação das partes ante o objeto prestacional. Criou-se uma dicotomia entre perturbações prestacionais resolutórias e perturbações prestacionais que meramente asseguram a pretensão ressarcitória. A distinção criada pelo Código Argentino entre impossibilidade que extingue (rectius, resolve) a relação obrigacional e a que converte (rectius, transforma) a obrigação originária em obrigação de indenizar (pretensão ressarcitória) parece artificial e contrária ao próprio conceito de obrigação firmado em seu artigo 724.

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  • é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP), com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

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