"Financiamento privado de campanha deturpa democracia"
24 de março de 2014, 15h00
Perto de assumir a presidência do Tribunal Superior Eleitoral, em maio, o ministro Dias Toffoli declara-se contrário ao financiamento de partidos e campanhas eleitorais por pessoas jurídicas. “É uma deturpação da democracia. A democracia não pode ser financiada por atores que não têm direito a voto”, afirmou em entrevista publicada nesta segunda-feira (24/3) pelo jornal Brasil Econômico.
Toffoli também descarta a possibilidade de que a indicação de ministros do STF pela Presidência da República leve a decisões favoráveis ao governo. Ex-advogado do PT e escolhido pelo governo Lula, ele diz que apenas “pessoas desinformadas” avaliam que o trabalho dele no Judiciário tenha relações com a política. “O maior fiscal dos juízes são os advogados”, afirma.
Leia a entrevista:
Qual o balanço que o senhor faz do julgamento do mensalão?
A primeira lição tirada do julgamento, já adotada pelo tribunal, foi a prática de desmembrar os processos em relação àqueles acusados que não têm foro por prerrogativa de função. Este foi um grande ensinamento. Passamos todo o segundo semestre de 2012 julgando o processo, que tinha 30 acusados, dos quais apenas três tinham foro por prerrogativas de função. Se fossem apenas três julgados pela corte, só em termos de sustentação oral já ganharíamos um mês. O primeiro mês, de agosto, foi todo tomado apenas pelas alegações dos advogados. Agora, nós estamos desmembrando os processos quando há acusados sem foro por prerrogativas processados em conjunto com parlamentares.
O julgamento representou uma mudança de paradigma?
Foi uma questão muito ligada, no mundo político, ao financiamento de campanha. Trata-se da necessidade dos políticos de angariar recursos para as eleições. Dependendo do volume de recursos obtidos, um partido consegue eleger mais ou menos deputados. Outra lição que esse caso coloca é que algumas poucas pessoas dominavam os partidos. No Brasil, há proprietários de partidos políticos. São aqueles que controlam o dinheiro que vem do fundo, controlam o dinheiro que vem das doações e com isso fidelizam o filiado. É algo muito vinculado a um sistema de legislação partidária que talvez necessite de um aperfeiçoamento. Há necessidade, no mundo de hoje, de uma ampliação da base democrática. As novas tecnologias estão mostrando isso. Os partidos são dominados por poucos líderes – o Roberto Jefferson, por exemplo, ficou na presidência do seu partido (PTB) até ser condenado.
Valdemar da Costa Neto, ex-presidente do PL, hoje no PR, ainda é consultado na prisão…
Exatamente. Não que essas pessoas não possam ser ouvidas por sua inteligência ou por terem uma capacidade intelectual superavitária. Refiro-me ao fato de conseguirem manter esse controle sobre um partido político.
O senhor vê, então, duas distorções: o financiamento privado de campanha e o controle sobre a máquina do partido?
Exato. Quando o Supremo decidiu pela fidelidade partidária, em 2007, na verdade reforçou um modelo partidário que não foi alterado. Ao dizer que o parlamentar que muda de partido perde o mandato, está-se dando mais poderes às cúpulas para definirem quem tem ou não direito a um mandato político. Há um incentivo desse controle de poder por uma minoria. É necessária uma mudança de modelo. É algo complexo, porque é uma mudança a ser feita pelos beneficiários da própria legislação atual. Mas acredito que isso ocorrerá mais cedo ou mais tarde. Porque, caso contrário, se as pessoas não se sentirem representadas, elas irão às ruas, como ficou demonstrado em junho do ano passado. O voto em lista fechada, por exemplo, é algo que o brasileiro não aceitaria.
Por que o núcleo financeiro do mensalão acabou gravado com penas muito superiores às do núcleo político?
Foi decorrência da legislação. Pela decisão do Supremo, nesse caso, foram crimes diferentes, que têm penas diferentes, associadas ao número de ocorrências. O núcleo financeiro e o publicitário (composto por Marco Valério e seus sócios), pela decisão do STF, participaram de toda a operação e de todos os casos, enquanto os políticos ficaram adstritos aos atos específicos de seus partidos.
O PT sempre argumentou que se tratava de caixa 2 de campanha. Após o julgamento, ainda há possibilidade de uso do caixa 2?
Em minha opinião não se tratou nem de corrupção ativa, nem de caixa 2. Usando uma palavra não técnica, o que houve foi extorsão. Determinados partidos disseram: "Eu vou para a base (de apoio parlamentar) se vocês me derem dinheiro para a campanha". Ninguém diz que precisa do dinheiro para colocar no bolso ou comprar uma casa. Sempre se dá a desculpa de que é para campanha.
Após o mensalão, o senhor acredita que os candidatos ainda se arriscariam a ter caixa 2?
Se você perguntar aos prefeitos do país como eles conseguem aprovar suas leis, poderá verificar se esse julgamento alterou alguma coisa no mundo fático.
O senhor, então, é cético em relação aos efeitos do julgamento?
Isoladamente, esse julgamento não refletirá uma mudança de cultura para a vida política brasileira se não houver alterações no modo de relacionamento entre os setores público e privado, no que diz respeito à democracia e ao financiamento da democracia. Devemos falar em financiamento da democracia, não em financiamento de campanha. Quem financia a democracia no Brasil é o cidadão pessoa física? A resposta é: não. Quem capturou o financiamento das candidaturas, desde o cargo de vereador até o de presidente da Republica, são empresas, pessoas jurídicas, são os interesses econômicos. Isso é facilmente aferível pela declaração dos partidos políticos a respeito de sua contabilidade e pela declaração das campanhas eleitorais em todos os níveis no Brasil. O setor privado capturou a democracia no Brasil. É isso que temos que discutir. É legítimo? É bom?
A solução é acabar com as doações das empresas?
É preciso repensar a forma de organização dos partidos. Há que se ter espaço para a democracia. As pessoas não estão estimuladas a participar dos partidos. E, no Brasil, os partidos não têm democracia interna. O financiamento de partidos e campanhas eleitorais por pessoas jurídicas é uma deturpação da democracia. A democracia não pode ser financiada por atores que não têm direito a voto. É evidente que esses atores representam interesses importantes. O país vive no capitalismo, é nosso modelo constitucional econômico. O capitalismo tem as suas peculiaridades, de buscar o lucro e, portanto, um mercado cada vez mais eficiente. É importante para o país ter grandes bancos, grandes empreiteiras, grandes empresas. Mas é importante para o país e para a democracia que esses atores dominem os agentes políticos através de doações?
Qual seria o modelo ideal?
Sou contrário à proposta que o PT defende, de financiamento público exclusivo. O cidadão tem o direito de expressar, inclusive através de seus recursos, aquilo que pensa. É sua liberdade de expressão. Um católico pode doar um valor para a sua igreja. Assim como é possível a liberdade de expressão religiosa, também é possível a liberdade de expressão ideológica. É legítimo que o eleitor ajude com seus recursos a ideologia de sua preferência. Proibir isso com financiamento público exclusivo de campanha também será uma inconstitucionalidade.
Qual sua posição sobre a Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo que questiona o financiamento empresarial?
Eu até já votei, no sentido de que a pessoa jurídica não tem o direito a essa participação na democracia. Há uma enorme injustiça, na medida em que a pessoa jurídica não vota e o poder econômico não é igualitário entre todas as pessoas, sejam físicas ou jurídicas. Ao lado desse financiamento misto, que seria um financiamento através do fundo partidário e também do financiamento de pessoa física, deve-se estabelecer um teto de gasto para as campanhas, que até hoje não foi fixado. Quem fixa o teto são as próprias candidaturas. A lei eleitoral prevê que até o dia 10 de junho de cada ano de eleição o Congresso edite uma lei fixando esse teto. Caso o Congresso não a edite, cada partido gasta quanto lhe aprouver. Ocorre que essa lei nunca é editada e a sociedade também não reclama. A lei devia ser mudada.
O sr. é favorável ao projeto de iniciativa popular promovido pelo Movimento Contra a Corrupção, que prevê o financiamento misto?
Sim. Aquele projeto é o ideal. Houve, por exemplo, uma grande mobilização conjunta de movimentos sociais e da imprensa em defesa do projeto da Ficha Limpa. O projeto foi aprovado praticamente por unanimidade. Mas não se vê essa discussão no financiamento da democracia porque a própria maneira de denominá-la – como financiamento de campanha – diminui sua importância. Por isso, reitero que a questão é o financiamento da democracia. Não há democracia sem financiamento. As contas apresentadas à Justiça mostram que, no Brasil, quem financia a democracia é o setor empresarial. Evidente que os candidatos acabam se comprometendo. Como se pode exigir que uma pessoa que foi financiada pela indústria de armas vote contra a venda de armas? Uma medida que adotamos agora no Tribunal Superior Eleitoral foi estabelecer que, durante a campanha, os partidos e as candidaturas informem quem são os seus doadores. Isto vai acontecer em agosto e em setembro. Dessa forma, o cidadão terá ao menos o direito de verificar por quem o candidato está sendo financiado.
O Congresso reage às decisões do Supremo, diz que o julgamento do financiamento de campanha é invasão do STF em área do Legislativo…
Mas se trata de uma leitura da Constituição. Só se a ideia for despir o Supremo do poder de ser o guarda da Constituição…
Seria, então, infundada a crítica de "judicialização" da política?
O Brasil tem uma Constituição extremamente analítica e prolixa. Tudo o que está colocado na Constituição tem por guarda o STF. Mesmo com uma Constituição muito menor do que a brasileira, talvez a Suprema Corte dos Estados Unidos seja mais "invasiva" que a nossa.
Então, não há intromissão do Supremo na discussão do financiamento de campanha?
Não. O que se está analisando é se, à luz da Constituição, pessoas jurídicas podem financiar a democracia. A Constituição fala que o sufrágio é para o cidadão e que se tem de afastar a influência do poder econômico. É uma decisão que não é do Congresso, é da Assembleia Nacional Constituinte, que cabe ao STF preservar.
Caso seu voto prevaleça e o financiamento privado seja julgado inconstitucional, será possível que a decisão entre em vigor já na eleição deste ano?
Seria necessário terminar o julgamento. Essa seria uma segunda discussão. Particularmente, penso que se a decisão for tomada a partir de 10 de junho, no início do processo eleitoral com as convenções, não se aplicará. Acho muito difícil que se aplique já para este ano.
Fala-se de uma divisão que existiria no Supremo, que opõe um grupo mais progressista a outro mais conservador, preso à letra da lei. O senhor vê essa divisão?
Não. O Supremo no Brasil tem uma característica que o difere dos outros. Aqui, a decisão é tomada ao vivo e em cores, com transmissão pelo rádio, pela televisão e pela internet. Não há uma discussão prévia, de bastidores. A decisão é uma construção feita no momento da sessão. Poucas pessoas sabem que isso é algo praticamente exclusivo do Brasil. Tirando o México, na América todas as decisões são tomadas em bastidores. A sessão pública é só para anunciar a decisão de bastidores, que ninguém acompanhou. Hoje há uma pressão nos EUA de grupos da imprensa e da área jurídica para a publicidade dessas sessões. Mas mesmo esse movimento para que a Suprema Corte tenha transmissão ao vivo de suas sessões é estranho em relação ao modelo que eles usam. Lá, por exemplo, não há uma distribuição dos processos. É o presidente quem indica o ministro que relatará cada processo. Aqui é por sorteio. Outra diferença é que o relator lá faz um draft, um rascunho, e passa para os colegas, que respondem se estão de acordo ou não. Em seguida começa um diálogo via assessores. No Brasil, é muito mais difícil criar grupos por identificação. Se for feita uma análise do STF, se verá que não existe há muito tempo um líder, uma referência para os colegas. No passado chegou-se a ter o Moreira Alves, o Sepúlveda Pertence. Hoje, já não há essa figura com ascendência sobre os demais. E é bom que não haja. Na corte dos EUA, o chief justice (equivalente ao presidente do Supremo no Brasil) tem uma ascendência sobre os outros.
Então os debates acalorados que acompanhamos na TV são espontâneos, verdadeiros?
São verdadeiros e acho bom. Porque trazem legitimidade.
Mas isso não desgasta a imagem do Supremo?
Eu sou favorável à transmissão porque garante o acesso de qualquer cidadão à sessão. Todo mundo gosta de um bom filme de júri, não? Um júri ao vivo toda semana é o melhor seriado que existe.
Voltando à questão da judicialização da política e da politização da Justiça, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado praticamente arquivou a PEC 58, que previa o fim da vitaliciedade dos ministros do Supremo. Foi uma vitória do Judiciário?
O Congresso tem todo o direito de debater e discutir a modelagem da Suprema Corte, faz parte da sua competência de legislador constituinte. Não há modelo ideal. Existe uma ideia no Brasil de que quem foi indicado por determinado grupo político tem fidelidade com quem indicou. A vitaliciedade impede essa fidelidade, porque dá liberdade para que a pessoa, quando coloca a toga nas costas, possa agir de acordo com seu conhecimento e sua convicção. Esse sistema de indicação com vitaliciedade dá total liberdade ao julgador. Tanto é assim, que se verifica no caso da Ação Penal 470 (a do mensalão) que muitos indicados pelo presidente Lula condenaram políticos do PT. Todos condenaram Delúbio Soares, o tesoureiro da campanha do presidente Lula; eu também. Quando alguém escreve que quem foi indicado vota a favor do governo, está prestando um desserviço à nação. Usa a autoridade de formador de opinião para não ser fiel aos fatos.
Diz-se que, quem deseja ser indicado, tem que fazer um movimento para que seu nome seja lembrado pelo presidente. Isso ocorre?
Respondendo por mim, não fiz movimento algum. Certo dia, após uma audiência que tive com o presidente Lula, como advogado geral da União, Gilberto Carvalho (atual ministro-chefe da secretária-geral da Presidência, então chefe de gabinete do presidente) me informou que o presidente desejava falar comigo no dia seguinte. Ele disse: "Eu acho que ele vai te convidar. Você aceitaria?". Respondi que seria uma honra. Agora, eu era do círculo de convivência do presidente Lula, nem fazia sentido eu fazer algum movimento.
Comenta-se que Joaquim Barbosa teria procurado Frei Betto para ser indicado…
Nesse caso, eu posso falar porque estava no Palácio do Planalto na época. Joaquim Barbosa foi procurado para ser ministro, não procurou ninguém. Creio que todos os que estão no Supremo indicados pelo Lula foram procurados.
Sendo o mais jovem dos ministros, como o sr. vê o horizonte de ficar no Supremo por mais 23 anos (até os 70 anos)?
Quando eu penso que já passaram quase cinco anos desde que entrei no Supremo, me assusto. Vejo que vou chegar aos 70 muito rapidamente. No Supremo não tem dia triste, nem dia sem ter o que fazer; o tempo passa muito rápido. A cada dia, são dezenas de decisões que se toma.
O senhor é a favor de ampliar o limite para 75 anos?
Sou a favor da vitaliciedade americana, que é até morrer.
Neste ano de eleições gerais, o sehor terá a tarefa de presidir o Tribunal Superior Eleitoral. Como encara o desafio?
O Brasil tem um modelo exemplar para o mundo em termos de organização de eleição. É algo que nós temos para nos orgulhar, ao lado de outros setores como o Itamaraty e a Receita. Existe no servidor público do Poder Judiciário, nos seus juízes e tribunais, muita dedicação. Dou testemunho desde que era advogado – de oposição e de situação. No dia da eleição não é necessária nenhuma sanção para que o cidadão seja mesário. Quando viajo a outros países, é triste ver uma mesa que não começou no horário, porque não apareceu mesário. No Brasil, não temos esse tipo de problema. Temos um setor de excelência na Justiça Eleitoral.
Em relação às disputas judiciais, a tarefa será mais complexa?
Elas já começaram. Já há ações no próprio TSE em relação a campanhas antecipadas. Isto mostra que esta será uma campanha bastante disputada. Particularmente, acho bom, porque quanto mais disputa, mais transparência e mais democracia.
Seria possível antecipar o início das campanhas?
Tenho uma visão particular que atualmente é minoritária. Sou favorável a uma maior liberdade para as discussões pré-campanha, desde que não se faça pedidos de voto. A campanha antecipada é vedada por lei, mas a lei não define o que é campanha. Se não se criar um parâmetro para a maneira de julgar, cai-se no subjetivismo. Em minha visão, se há pedido de voto e se há pedido de cargo, isto é campanha antecipada. Mas os debates que ocorrem sem pedido de voto não podem ser considerados como campanha antecipada. Precisa haver o diálogo. Não se trata de pedir voto, mas de discutir propostas.
E a desincompatibilização?
É um paradoxo. Se for pelo fato do eventual uso da máquina, haverá um vice que fará esse uso. O que tem que se fazer é coibir o uso da máquina. Neste aspecto, a legislação no Brasil está bem colocada. Vejo como natural que aquele que é candidato à reeleição possa permanecer no cargo. Seria até um beneficio se afastar, porque não haveria os ônus do cargo. Há um bônus natural que é o holofote, a exposição própria do cargo. No que diz respeito à campanha presidencial, a partir de minha experiência como juiz eleitoral e como advogado, os cuidados são grandes. Acontecem muitos abusos nas campanhas municipais.
E a internet, é um desafio?
Como toda nova tecnologia, vamos aprendendo juntos quais são os parâmetros de utilização. Tenho preocupação de se tolher a liberdade de expressão individual, por exemplo, nas redes sociais, que a rigor são comunidades que se reúnem como em uma sala física ou num clube. A diferença é que este clube hoje é muito mais amplo, maior, e sem espaço físico. Penso que a legislação deve combater a mentira e a calúnia. E isso já está previsto nela.
A ideia é dar direito de resposta imediato?
Exatamente, dar o direito de resposta e retirar a informação da internet. Em relação a isso, a legislação está bem posta.
Na campanha, devem mencionar sua relação com o governo, lembrar que o senhor foi advogado do PT. O senhor teme isso?
Isso só vai partir de pessoas desinformadas, que não acompanham meu voto e minha vida. Duvido que alguém que se coloque como candidato a presidente da República tenha esse pensamento. O senador Aécio Neves (pré-candidato pelo PSDB) e o governador Eduardo Campos (pré-candidato pelo PSB) conhecem muito bem como eu voto. Os advogados deles conhecem — e o maior fiscal dos juízes são os advogados.
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