Variáveis ocultas e efeito borboleta na decisão penal
22 de março de 2014, 8h00
Inexiste conhecimento direto sobre os fatos — salvo do crime acontecido na sala de audiência, mas julgado posteriormente por outro julgador. Todo material probatório é de segunda mão, nos autos ou fora dele: o julgador e jogadores constroem narrativas em face de um evento passado, com as informações que estão à disposição. Nesse articular, a forma em que os fatos serão ajustados pode mudar o sentido.
A reconstrução do fato criminoso é sempre retratada por uma imagem ou filme (apresentada na denúncia/queixa) e que, analisada em face do que há antes (inquérito policial, auto de prisão em flagrante ou documentos) indica a existência de justa causa (informação mínima de materialidade e autoria) capaz de justificar a tipicidade aparente da conduta. Daí que se opera com imagens superpostas e narrativas controversas. Constrói-se uma narrativa englobante da acusação e daí em diante o jogo processual será de preencher ou esvaziar a história/imputação.
Uma estratégia utilizada é a de colocar o mínimo de detalhes na acusação, narrando os fatos genericamente, antecipando, com isso, as inconsistências de informação (prova). Quanto mais detalhada for a descrição, mais chances de inconsistência. O limite disso acontece na impossibilidade de se defender de fatos. Por exemplo, analise as seguintes opções: a) entre os anos de 1998 a 2007 o acusado que atuava como empregado da vítima subtraiu para si dois pingentes de ouro, um liquidificador e duas camisetas, avaliados em R$ 800, os quais não foram recuperados; b) no dia 17 de maio de 2006, entre 19h e 20h30, na residência da vítima, o acusado subtraiu para si dois pingentes de ouro, um liquidificador e duas camisetas, avaliados em R$ 800, os quais não foram recuperados. Qual das duas descrições é mais fácil de ser acolhida na sentença? Evidentemente que a primeira. O devido processo legal substancial pressupõe que o sujeito seja acusado de uma conduta específica, no tempo e no espaço. Acusações genéricas, com longo espaço de tempo, tornam a defesa impossível, sendo uma trapaça processual, no que já denominei de doping processual.
Na imagem que se forma na maneira como pensamos, encontram-se os estereótipos. Ou seja, as representações cristalizadas que não se baseiam naquele caso específico, mas nas experiências anteriores (lugar em que o fato se deu, moradia dos envolvidos, profissão, beleza ou feiura, idade, cor, sobrenome, status social, antecedentes etc.). Não me venham histericamente dizer que isso não importa. Concordo teoricamente.
Na prática, isso acontece todos os dias e é melhor estar preparado para esse tipo de captura psíquica do que fingir que não importa. Parem de ser platônicos, pois estamos justamente na dobra platônica, onde o sentido é colonizado pelo silêncio que diz. Os estereótipos simplesmente formam parte do arsenal de sentidos e operam. Queiramos ou não. Podem se basear em preconceitos, lugares comuns, influência da mídia etc. Se queremos ser minimamente honestos, devemos admitir a influência de fatores externos, como por exemplo, a leitura do jornal do dia, a conversa do almoço, do café com os vizinhos, da lembrança de que fomos um dia furtados… Respondemos no decorrer do processo com aquilo que nos faz sentido, seja ele qual for (louquíssimo, muitas vezes). Quanto mais entendermos o mecanismo aleatório de atribuição de sentido, mais teremos credibilidade pelo que se passa no processo penal. Como operamos com imagens, não raro tomamos uma coisa por outra, atribuímos peso demasiado e, muitas vezes, imaginamos errado. E destruir uma imagem cristalizada é muito complicado.
Franco Cordero chamou isso de postura paranoica, ou seja, o primado das hipóteses sobre os fatos, como visto anteriormente, tão bem articulada no Brasil por Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, via psicanálise. Essa ancoragem antecedente em imagens pode gerar a fixação do convencimento e as informações trazidas no decorrer da instrução processual servem para simples confirmação, seja de que qualidade for. Essa postura paranoica é sedutora. Em primeiro lugar, pensando do ponto de vista histórico, o julgador é colocado como portador da (imaginária) Verdade Real[1], potencializada pela teoria de processo (relação jurídica) pela qual os jogadores dão os fatos e o juiz o direito.
Em segundo, adotando-se a contribuição da psicanálise[2], pode-se dizer que o paranoico caracteriza-se pelo delírio de perseguição sistematizado, acrescido de delírios de ciúmes, de erotomania e de grandeza. Na matriz contratualista e de estabelecimento da civilização encontram-se traços paranoicos de desconfiança recíproca, sendo o Estado o terceiro que poderia fazer laço social. No contexto atual das relações humanas, o traço paranoico se apresenta em qualquer sensação de exclusão, colocando-se na condição de vítima e se acreditando que a ação do outro é dirigida especialmente ao sujeito.
A manifestação paranoica se dá pela certeza do sujeito em possuir a verdade e não qualquer verdade, mas a Verdade Real. Portador da verdade é capaz de pontificar, apresentar a solução para todos os problemas, indicar as causas e as soluções, enfim, postar-se no lugar de Salvador. E a tentação de ocupar esse lugar é permanente, afinal, não seria maravilhoso poder reparar o mundo, reformar as coisas, ajudar as pessoas a andarem no caminho certo e do bem? A pergunta é a posta por Agostinho Ramalho Marques Neto[3]: quem nos salva da bondade dos bons? Paranoicos, acrescento eu. A estrutura psíquica do sujeito é singular, pois vai depender da passagem pelo traumatismo de se perceber não mais o objeto de satisfação da mãe. Não complicarei mais, há referências para quem quiser entender. O mais interessante, todavia, é que o paranoico procurar ser parado, está à procura de um limite, de alguém ou algo que o possa deter.
Se os jogadores do processo, em regra, não sabem dos fatos que serão articulados, já que receberam a narrativa de terceiros, o que não sabem do evento é mais importante do que sabem. Daí que se instalam duas posições: conforto pelo que é trazido ou angústia pelo que não é trazido. Não raro se concentra somente no que é trazido, esforçando-se para que do material informativo tragado para o contexto do jogo se possa elaborar uma narrativa minimante coerente, conforme a acusação.
A tendência mental é a de buscar a confirmação do narrado, ter aversão ao argumento defensivo, construir narrativas frágeis de conforto, rejeitar as emoções e aspectos biológicos como variáveis da decisão, fechando os olhos para os truques, trunfos e silêncio do processo. Taleb[4] afirma que diante da opacidade do mundo articulamos três grandes redutores de complexidade, ou seja, nos autoenganamos de que temos: a) a ilusão da compreensão; a certeza ingênua de que sabemos o que está acontecendo em um mundo mais complicado do que percebemos; b) a distorção retrospectiva: como realizamos uma tarefa de contar o fato criminoso como se estivéssemos olhando pelo retrovisor a história aparenta ser mais clara e organizada do que o mundo de fato é; c) supervalorização da informação factual: a deficiência das pessoas em compreenderem a complexidade a partir de teorias simplificadoras e platônicas.
A reconstrução do caso penal se dá pelas narrativas dos envolvidos — vítima(s) e acusado(s) — e de terceiros (informantes, testemunhas e peritos), bem assim por imagens (gravações em vídeo, reproduções etc.) e sons (áudio, interceptação de conversas) e escritos (interceptação de dados, cartas, e-mails, etc.). Busca-se compulsivamente estabelecer “A” história, recontando como se tudo pudesse ser, efetivamente, reproduzido no futuro. Um remake do evento.
Amarrados ao pensamento causalista (causa e efeito), avessos à complexidade das versões paralelas e coerentes ao mesmo tempo, remontam a história com uma boa dose de imaginário. Isso promove a sensação de compreensão do ocorrido, “como se” os jogadores e o julgador passassem, daí em diante, a ser testemunhas diretas do ocorrido. Não se trata mais do evento histórico, mas do que se fala dele, perdendo, assim, a sua singularidade. Somos treinados a dar sentido, explicar os fenômenos, acoplando tipos penais, incapazes de aceitar o não saber.
Recordar eventos passados exige que o sujeito (testemunha, informante, acusado, vítima, perito) possa dar sentido ao fragmento de momentos que teve conhecimento. Daí que a memória é filtrada e limitada, relegando o que não faz sentido e se focando naquilo que possa explicar o “caso penal”. Não raro se quer que a prova responda simplesmente: (não) aconteceu. Como se as demais circunstâncias fossem irrelevantes.
O esforço narrativo do declarante é sempre retrospectivo. Daí que uma das táticas dos jogadores é inverter a ordem das perguntas, a saber, ao invés de indagar o sujeito na lógica linear, pede-se para que conte do final para o início. A história decorada e prenhe de sentidos pode ficar em curto-circuito. Mas sempre é arriscado e depende qual a estratégia utilizada[5]. Especialmente quando há interesses na condenação/absolvição, a seleção dos eventos relevantes ao lado que se pretende favorecer não deixa de ser uma modalidade de doping processual, de certa forma de trapaça.
Além disso, as informações trazidas pelos depoentes são articuladas em arrazoados que buscam (des)confirmar as teses apresentadas pelos jogadores e como linguagem que são, servem à manipulação. Daí que significantes abertos (perto, longe, medo, parecido, alto, baixo, etc.) são matreiramente utilizados para depois servirem de material confirmatório. E o mundo, todavia, é vago. Ademais, quando mais articulado o narrador, melhor aparentará a sedutora narrativa, a qual junta materiais de informação e costura um sentido que joga com o imaginário de jogadores e especialmente julgador, lembram José Calvo González e André Karam Trindade. E depois há o efeito semblante de que a decisão é o retrato retrospectivo do que se passou, isento de ausências e inconsistências. E isso preocupa, bem sabem Lenio Streck e Aury Lopes Jr. Mas seria muito complicado aos julgadores admitir que julgam sem saber, salvo aos honestos. A situação poderia ser diferente se tivéssemos dado o salto de qualidade em face da resposta correta, como defende Dworkin e, no Brasil, Lenio Streck. Enquanto as decisões forem inautênticas do ponto de vista hermenêutico, a borboleta está solta.
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