Supremo julgará novamente os critérios de partilha do FPE
15 de março de 2014, 8h00
A finalidade do fundo é dupla: descentralizar receitas, transferindo-as do governo central para os governos estaduais (equilíbrio vertical) e dos estados mais desenvolvidos para os mais carentes (equilíbrio horizontal), fazendo com que recebam recursos que, por si mesmos, não poderiam arrecadar, dadas as suas estreitas bases tributárias.[1] O objetivo de “promover o equilíbrio socioeconômico entre estados” está expressamente previsto no artigo 161, inciso II, do texto constitucional, como diretriz para a edição de lei complementar para dispor sobre o rateio dos recursos do fundo.
Desde 1989, as regras para o cálculo do montante individual a ser repassado a cada estado-membro e ao Distrito Federal estavam previstas na Lei Complementar 62/1989. Essa lei, no entanto, não trazia propriamente critérios para distribuição das receitas. Além de distribuir 85% dos recursos para as regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e o restante para os estados situados no Sul e Sudeste, estabelecia coeficientes individuais fixos, previstos em seu Anexo Único, para o rateio das verbas do fundo entre os diferentes estados-membros (por exemplo, 7,2182 para o Maranhão e 2,8832 para o Paraná).
Inicialmente, os coeficientes individuais deveriam ser provisórios e vigorar apenas nos exercícios de 1990 e 1991. O artigo 2º, parágrafo 2º, da LC 62/1989, determinava que, a partir de 1992, novos critérios de rateio do fundo deveriam ser fixados em lei específica, com base na apuração do censo de 1990. Mas essa lei não chegou a ser editada e, à falta dela, os coeficientes, que eram a princípio temporários, permaneceram em vigor por mais de vinte anos.
Inconformados com a omissão do Congresso Nacional e com a permanência indefinida da fórmula de rateio estabelecida, os governadores do Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina (ADI 875) e Mato Grosso do Sul (ADI 2727 e 3243) levaram a questão até o STF (Supremo Tribunal Federal), pela via do controle abstrato. Nas ações diretas propostas, alegava-se que os coeficientes fixos de participação, estabelecidos há mais de uma década por acordo político, não representavam verdadeiros “critérios de rateio”, aptos a evoluir conforme a alteração das circunstâncias socioeconômicas dos Estados e das regiões brasileiras; eram índices estanques, que não guardavam sintonia com a finalidade redistributiva imposta pelo artigo 161, inciso II, da Constituição Federal, nem com o cenário econômico atual.
Em 24 de fevereiro de 2010, o Supremo Tribunal Federal, acolhendo voto do relator, ministro Gilmar Mendes, julgou procedentes as ações para declarar a inconstitucionalidade do artigo 2º, incisos I e II, parágrafo 1º, 2º e 3º, e do Anexo Único, da Lei Complementar 62/1989. A decisão adotou, no entanto, a técnica da declaração de inconstitucionalidade sem a pronúncia da nulidade e assegurou a aplicação da lei até 31 de dezembro de 2012.
Além de merecer destaque pela própria importância do FPE para a federação brasileira, o caso em si chama atenção por três outros motivos: (1) o acolhimento da tese da fungibilidade dos instrumentos processuais empregados, ADI e ADO, (2) os fundamentos utilizados para justificar a declaração de inconstitucionalidade da lei, que incluíam a incapacidade de a legislação impugnada atingir, concretamente, os objetivos constitucionais para os quais foi editada, e (3) a técnica de decisão escolhida pelo Supremo, que declarou a inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade da lei.
O primeiro aspecto é a superação da rígida divisão entre ADI e ADO pela adoção da tese da fungibilidade. Entendeu o STF que deveria relativizar a rígida distinção entre esses instrumentos processuais, nas situações de omissão parcial,[2] nas quais é “imprecisa a distinção entre ofensa constitucional por ação ou por omissão”, como consta do voto do relator, ministro Gilmar Mendes. E assim justificou-se, no caso, o conhecimento de todas as ações propostas e seu julgamento em conjunto, a despeito das relativas diferenças de objeto e fundamentação.
O segundo aspecto está nos fundamentos adotados pelo STF para a declaração de inconstitucionalidade. Não se limitou a decisão ao cotejo entre o texto da lei complementar e o da Constituição Federal. A fundamentação adotada abriu-se ao exame do contexto socioeconômico da lei impugnada em contraste com o objetivo jurídico que a Constituição atribuiu ao FPE. Considerou que a norma tornou-se inconstitucional pela alteração do substrato socioeconômico sobre o qual deveria incidir.
Acolheu o STF a orientação de que os coeficientes individuais fixos estabelecidos na LC 62/1989, por meio de acordo político, há praticamente duas décadas, não mais refletiam a realidade socioeconômica vivenciada hoje pelos estados brasileiros e, portanto, não seriam capazes de realizar o objetivo institucional do FPE, que é reduzir as desigualdades entre as diferentes unidades federadas. O cenário econômico inicialmente retratado pela lei complementar deixou de existir. Por isso, se um dia os coeficientes da LC 62/1989 estiveram em consonância com o texto constitucional, a alteração do quadro fático os teria tornado inconstitucionais, porque incapazes de atender ao escopo redistributivo da lei.
O terceiro aspecto destacado no julgamento é a técnica de decisão. A opção pela declaração de inconstitucionalidade sem pronúncia de nulidade justificou-se diante da natureza do vício atacado, a inconstitucionalidade por omissão parcial. O Supremo teve, então, de construir uma solução que, de um lado, não agravasse a questão constitucional apresentada — como seria a pura cassação dos critérios do FPE — e, de outro, não avançasse sobre as competências do Congresso Nacional.[3] O Legislativo foi, assim, conclamado a editar uma nova legislação sobre o tema.
A nova lei (Lei Complementar 143/2013) só veio a ser editada em 18 de julho de 2013, meses após expirar o prazo fixado pelo STF. Os repasses, no entanto, não chegaram a ser interrompidos, uma vez que, em 24 de janeiro de 2013, liminar deferida pelo ministro Ricardo Lewandowski, na ADO 23[4], no exercício da presidência, garantiu a continuidade da transferência dos recursos para os estados e o Distrito Federal, em conformidade com os critérios anteriormente vigentes, por mais 150 dias.
Em agosto de 2013, foi a vez de a LC 143/2013 também ser objeto de impugnação no STF. Na ADI 5.069, de relatoria do ministro Dias Toffoli, o governador de Alagoas ataca parte das modificações que a LC 143/2013 procedeu na Lei Complementar 62/1989. Os fundamentos jurídicos utilizados na ação — os artigos 3º, III; 161, II; e 171, VII, da Constituição Federal — dialogam com aqueles que justificaram a declaração de inconstitucionalidade da legislação anterior pelo STF.
Aponta-se, em suma, que a nova lei renovou, até 31 de dezembro de 2015, a vigência dos coeficientes individuais já declarados inconstitucionais pelo Supremo (artigo 2º, inciso I), no julgamento da ADI 875, e acabou por transformá-los em piso para os repasses, a partir de 2016 (artigo 2º, inciso II), mantendo, por mais alguns anos, o estado de inconstitucionalidade já reconhecido pelo STF. A nova fórmula de rateio, que leva em conta combinação de fatores representativos da população e do inverso da renda domiciliar per capita da entidade beneficiária, somente será implementada a partir de 2016 e está subordinada à realização de evento futuro e, até certo ponto, incerto, que é o crescimento econômico.
As regras dos incisos II e III do artigo 2º determinam que, a partir de 2016, cada entidade beneficiária receberá valor igual ao que foi distribuído no correspondente decêndio do exercício de 2015, corrigido pela variação acumulada do IPCA e pelo percentual equivalente a 75% da variação real do PIB (Produto Interno Bruto) do ano anterior ao ano considerado para base de cálculo. Apenas a parcela que superar esse montante é que será distribuída individualmente, com base nos novos critérios obtidos mediante combinação de fatores representativos da população e do inverso da renda domiciliar per capita da entidade beneficiária.
O caso, como se sabe, ainda não foi a julgamento. Mas a propositura da ADI 5.069 chama atenção pela singular oportunidade que proporciona ao STF de revisitar o tema julgado na ADI 875 e, sobretudo, de avaliar o efetivo atendimento por parte do Congresso Nacional dos parâmetros jurídicos definidos nessa decisão.
Teria a nova lei incorrido nos mesmos vícios já constatados pelo STF em relação à antecedente? Nesse caso, caberia ao Supremo aplicar a técnica de decisão semelhante à adotada no julgamento anterior? Seja como for, o novo julgamento da lei do Fundo de Participação dos Estados certamente poderá contribuir de maneira significativa para a compreensão e o aprimoramento dos instrumentos de superação das omissões inconstitucionais no Direito brasileiro.
Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).
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