Construção dos pré-compromissos constitucionais nos EUA
15 de março de 2014, 8h01

De lá para cá, o constitucionalismo estadunidense produziu uma considerável bibliografia sobre como foram julgados esses casos em que se discutia a aplicação dos direitos fundamentais, sendo que hoje o foco de análise se dá em torno da delimitação das experiências ativistas da Suprema Corte ao longo da história, bem como na identificação da construção de argumentos de limitação do poder de revisão da corte, conhecido como judicial self-restraint. É isso que está indicado no texto de Christopher Wolfe The rise of modern judicial review: from constitutional interpretation to judge-made law.[1]
Ou seja, diferentemente do contexto europeu, a tradição norte-americana vivenciou a experiência de constitucionalização acompanhada de um amplo debate sobre como a Suprema Corte deveria se comportar e quais os limites desta atuação. Isso porque, paralelo à expansão do movimento constitucionalizador nos Estados Unidos, crescia, conjuntamente, a atividade jurisdicional. Isso repercutiu diretamente numa preocupação no modo de delinear o espaço político-institucional do Judiciário, mas não apenas nisso: num esforço intelectual com o objetivo de aprofundar os debates sobre como compreender a interpretação judicial da Constituição.
Essa questão aparece, por exemplo, nos textos de Walter Murphy (Judicial Supremacy)[2], que discute a ideia de supremacia judicial em contraposição à noção de autorrestrição; Laurence Tribe (The Invisible Constitution)[3], um dos mais conhecidos constitucionalistas estadunidenses; John Hart Ely (Democracy and Distrust)[4], que apresenta uma posição bem distinta sobre o papel do judiciário na realização da interpretação da Constituição; Charles Beard (The Supreme Court and the Constitution)[5], que faz uma ampla reconstrução histórica sobre o nascimento do judicial review, retomando, de modo bastante aprofundado, às peculiaridades da discussão sobre o posicionamento exarado no julgamento do caso Marbury vs. Madison; Mark Tushnet (Taking the Constitution away from the Courts)[6], que faz uma interessante leitura sobre a relação da atuação do Suprema Corte com a conjuntura política norte-americana; Alexander Bickel (The Last Dangerous Branch: the Supreme Court at the Bar of Politics)[7] e Raoul Berger (Government by Judiciary)[8].
Em todas as obras citadas, há um número significativo de referências a casos julgados pela Suprema Corte, nos quais a interpretação da Constituição implicava na aplicação direta de direitos fundamentais (para o bem e para o mal). Independentemente, o fato é que, em última análise, os autores acima citados corroboram a afirmação de que o problema da força normativa da Constituição se apresenta no contexto estadunidense desde a afirmação da judicial review. Indo um pouco mais além, é possível afirmar que a noção de supremacia constitucional, nos Estados Unidos, esteve diretamente relacionada com a afirmação do Poder Judiciário (judicial review), razão pela qual a interpretação, desde os primórdios, sempre foi o principal objeto de discussão acadêmica.
Além de tudo isso, do ponto de vista constitucional, é preciso reconhecer nos Estados Unidos um certo pioneirismo. No que tange especificamente à engenharia constitucional, este pioneirismo teve lugar por dois motivos concomitantes:
1º) Os Estados Unidos não viveram os problemas dos conflitos religiosos que marcaram a experiência constitucional europeia. De algum modo, os imigrantes que se instalaram nas colônias encontraram ali o ambiente propício para uma convivência “pacífica” entre as diversas crenças e religiões. E esse ideal de liberdade religiosa, que de algum modo inspira todos os membros dessa sociedade em formação, possibilitou a configuração de uma sociedade plural e multifacetada, o que tardou a acontecer na Europa;
2º) Os norte-americanos conheciam as construções teóricas do iluminismo inglês e francês e sabiam das medidas que a Inglaterra e a França vinham tomando para moderar o poder do rei. Nesse particular, a experiência inglesa é importante, sobretudo em face da inexorável influência que a metrópole exercia sobre a então colônia.
Nessa medida, a revolução americana representa a construção de uma série de aportes teóricos que transformam profundamente o constitucionalismo. Em primeiro lugar, a afirmação de um sistema federalista de governo que garantiu autonomia administrativa e legislativa aos estados (13 colônias independentes). Por outro lado, a criação de uma nova modalidade de limitação do poder com a construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais — prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de “aristocracia de fato”[9] — a partir da garantia dos direitos da minoria. Estratégia justificada na desconfiança de Madison formulada no seguinte enunciado: “em todos os casos em que a maioria está unida por um interesse ou paixão comum, os direitos da minoria estão em perigo”.
Por fim, e talvez o mais importante, a construção de um ambiente cultural no interior do qual a lei ocupa o lugar do rei, em contraposição aos modelos absolutistas em que o rei é a lei. Desse modo, a afirmação de Thomas Paine de que “uma Constituição não é um ato de um governo, mas sim o ato de um povo que cria um governo”, ou, em outras palavras, “um governo sem Constituição é um poder sem direito”, encontra terreno fértil para brotar e dar frutos.[10]
Estas três características permitem visualizar o caráter de pré-compromisso de que se reveste a Constituição, a partir dos contornos que lhe dá o constitucionalismo estadunidense. Ou seja, com Stockton, é possível dizer que “Constituições são correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”. São, portanto, restrições que os próprios autores políticos estabelecem para si e para as gerações futuras, para garantir um governo que esteja sob o direito e não sobre ele. Como assevera Cass Sunstein: “as estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam servir para superar a miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”[11].
Desse modo, a judicial review é a garantia de que esse pré-compromisso será devidamente cumprido — por isso a ligação entre Judiciário e supremacia constitucional. E isso é consequência da verdadeira soberania da lei. Mas não de qualquer lei, e sim daquela que passa a ser entendida como a lei das leis, a paramount law, dotada de supremacia e rigidez: a Constituição. Nas palavras de Matteucci: “em lugar da velha lei consuetudinária, uma Constituição escrita, que contém os direitos garantidos aos cidadãos por um juiz, que fixa e declara a lei”[12].Vejamos, então, os contornos que essa jurisdição, constituidora deste elo pré-compromissório, receberá na formação da federação americana.
De tudo o que foi dito, ao menos uma coisa parece ficar clara: a decisão de Marshall no leading case Marbury v.s. Madson é mais um ponto de chegada do que um ponto de partida. Ou seja, nesta decisão, a Suprema Corte afirmou um mecanismo que já vinha se sedimentando no interior da construção histórica do constitucionalismo e que encontrou as condições adequadas para seu desenvolvimento em solo norte-americano.
É importante lembrar que, nos debates sobre a unificação das 13 colônias e na redação da Constituição em 1788[13], já estavam desenhados os contornos de um necessário controle dos atos do parlamento e do executivo com relação à Constituição Federal. Isso se dá, como ressaltei no item anterior, a partir da ideia de pré-compromissos constitucionais. Por isso, a tese de Marshall, embora tenha gerado muitas controvérsias, não provocou ruptura ou inovou no contexto do constitucionalismo norte-americano, mas ampliou a ideia de supremacia constitucional (e, por conseguinte, de controle), sedimentando-a a partir da atuação jurisdicional. [14]
Como lembra Matteucci, a consagração do judicial review pelo chief justice John Marshall representa o acabamento da construção constitucional norte-americana. Sem ele, o modelo de freios e contrapesos que, com Elster, podemos dizer que caracteriza o constitucionalismo estadunidense, não estaria completo.[15]
Agora, é importante para nossa pesquisa esclarecer alguns pontos no que tange ao papel que a corte desempenha no exercício do judicial review. Quero dizer, além do tradicional juízo de constitucionalidade (determinar se a lei do parlamento está ou não de acordo com a paramount law), a Suprema Corte cumpre algumas funções deveras importantes. Entre estas funções está o caráter de fechamento do sistema federativo e sua participação nos problemas envolvendo questões da federação na administração dos Estados.
Todo esse poder conferido ao Judiciário não se apresenta isento de problemas. Se era necessária a criação de um mecanismo de controle dos pré-compromissos constitucionais, também é certo que os limites dessa atividade de controle passam a gerar certa discussão. Christopher Wolfe coloca com precisão as transformações que ocorreram no Judiciário, ou melhor, no exercício do judicial review. Ele alerta que, com o passar dos anos, o papel desempenhado pela Suprema Corte foi significativamente alterado, de modo que, de intérprete privilegiado da Constituição, o tribunal passou a agir como uma variante do Poder Legislativo.
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