"Juiz precisa ter consciência de que erra"
11 de maio de 2014, 8h00
Em entrevista à revista eletrônica Consultor Jurídico, Dip aborda os dilemas da Justiça frente aos tempos e a questão da segurança jurídica, tema do qual tratou em diversos de seus trabalhos. “Toda a sociedade precisa recuperar a ideia de verdade. Porque toda essa base metafísica em que se apoia o conceito de verdade vai dar apoio também para as ações morais. Se nós recuperarmos a ideia de verdade, com elas recuperamos a de bem e, portanto, podemos e sabemos o que exigir do comportamento moral”, defende.
Ricardo Henry Marques Dip é paulistano, tem 63 anos, 35 dos quais dedicados à na magistratura. Lecionou nas faculdades de Direito da Universidade Católica de São Paulo, de São Bernardo, e na pós-graduação da Pontifícia Universidade Católica de Buenos Aires, como professor convidado. É membro fundador do Instituto Jurídico Interdisciplinar da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, acadêmico de honra da Real de Jurisprudencia y Legislación de Madri, diretor da Seção de Estudos de Direito Natural do Consejo de Estudios Hispánicos “Felipe II”, de Madri, e membro do Conselho de Redação de Fuego y Raya, revista hispanoamericana de história e política.
Formado também em Jornalismo, atuou na área e foi professor da Faculdade Cásper Líbero. Supervisiona a biblioteca do TJ-SP, e está preparando uma edição comemorativa para os 150 anos do tribunal, em 2024.
É autor de Trilogia do Camponês de Andorra (2003), Direito Penal: Linguagem e Crise (2000) e Crime e Castigo: Reflexões Politicamente Incorretas (2004), em colaboração com Volney Corrêa Leite de Moraes Júnior.
Leia a entrevista:
ConJur — Entre as obras de sua bibliografia, há um título que o senhor organizou, Tradição, Revolução e Pós-Modernidade. O que é entendido no meio jurídico como pós-modernidade? Quais suas implicações?
Ricardo Dip — O livro não é propriamente jurídico. É um livro feito em homenagem a um importante pensador brasileiro, o jusfilósofo José Pedro Galvão de Sousa, e trata mais da filosofia da cultura. Em todo caso, no campo da pós-modernidade, o que me parece grave no ambiente jurídico é a perda da noção de verdade. De maneira que a linguagem jurídica passou a ser performativa. Nesse sentido, há um autor italiano que pode ser considerado hoje paradigmático na matéria, um jurista respeitável, Natalino Irti. Ele escreveu bastante sobre esse assunto, e é favorável a essa linha do chamado “niilismo jurídico”. O direito não vale nada, vale a força, o poder de quem manda. E esse é um problema que nós estamos vivendo no mundo pós-moderno, em que desapareceu o controle possível da verdade, da objetividade das coisas. É uma nova sofística. Nós estamos vivendo num tempo em que recuperamos a ideia de Górgias, de Protágoras, em que não existe mais a verdade. Estamos precisando de um Sócrates!
ConJur — Corre-se o risco de se cair num relativismo extremo?
Ricardo Dip — Pois é, chegamos a isso. As teses da sofística eram três. A primeira delas é nada existe. Portanto, perdemos tempo. Se existe, não pode ser conhecido. Se conhecido, não pode ser comunicado. Embora isso teoricamente seja fácil de destruir, na prática não é tão simples. No fundo, é uma concessão à força, à força de tudo. Que pode ora estar de um lado, ora estar do outro, e não há controle possível. Faltam critérios objetivos, realistas, para descobrir o que há de verdade ou não. Toda a sociedade precisa recuperar a ideia de verdade. Porque toda essa base metafísica em que se apoia o conceito de verdade, vai dar apoio também para as ações morais. Se nós recuperarmos a ideia de verdade, com elas recuperamos a de bem e, portanto, podemos e sabemos o que exigir do comportamento moral.
ConJur — Como falar em segurança jurídica neste cenário?
Ricardo Dip — Não há, na verdade, segurança jurídica absoluta em um mundo como o nosso. O que nós procuramos é ter mais ou menos uma zona confortável em que nós possamos nos orientar. Quando eu era estudante me interessei por um livro sobre segurança jurídica, provavelmente o melhor escrito até hoje, A certeza do Direito, de um autor chamado Flavio de Oñate. Como ele tinha vivido no período do fascismo italiano, pensei que ele fosse tratar da justiça. E, para a minha surpresa, ele fala pouco da justiça. Ele diz que o problema é a falta de segurança jurídica. Passou o tempo, e eu então descubro uma revista, muito rara, de grande importância, que é o anuário de um congresso de sociologia jurídica que houve em 1937, em Roma, e que reuniu o maior número de especialistas em Direito, professores internacionais, como Le Fur [Louis Le Four], Délos [Joseph T. Délos] e Radbruch [Gustav Radbruch].
ConJur — Falava de segurança jurídica?
Ricardo Dip — O tema era “Bem comum, segurança e justiça” [Le but du droit: bien commun, justice, sécurité, in Annuaire de l‘Institut International de Philosophie du Droit et de Sociologie Juridique, ed. Sirey, Paris, 1938]. Eu leio aquilo e começo a me surpreender, porque os principiais trabalhos eram todos, no fundo, para dizer duas coisas: primeiro, uma frase genial do Radbruch, em que ele diz que a segurança jurídica e a justiça vivem em condomínio. Curiosamente os dois autores, que naturalmente não devem ter trocado os trabalhos antes, falavam a mesma coisa, que a segurança jurídica era uma face da moeda e a outra face era a justiça. Então, eu comecei a compreender que este é o problema. Uma incessante deliberação sobre a justiça levaria a um resultado injusto. E a gravidade que eu vejo nisso tudo é que a ideia de segurança não se restringe à jurídica. Porque, no fundo, a segurança é uma ansiedade antropológica.
ConJur — É uma necessidade básica do ser humano.
Ricardo Dip — De todos nós. E veja, quando há uma insegurança, surge uma novidade jurídica. Por exemplo, IPVA prescrito. Vamos supor que você tenha um carro, e por acaso não pagou o IPVA de 2001. A Fazenda resolve cobrar agora, mais de cinco anos depois. Quando ela entrava com a execução, o próprio juiz controlava e às vezes de ofício já reconhecia a prescrição. O que eles estão fazendo agora? Levam para protesto de títulos a CDA. Como a certidão de dívida ativa, a prescrição não pode ser controlada pelo cartório de protesto. Daqui a pouco, teremos uma série de pessoas com o nome inscrito no serviço de proteção ao crédito. Isso causa um embaraço. É uma posição provavelmente minoritária hoje na jurisprudência, mas parece que não é politicamente correto isso.
ConJur — O que tem mudado na relação do Judiciário com a imprensa? Como o senhor avalia isso?
Ricardo Dip — Os juízes estão discutindo demais temas que deveriam ficar no palco próprio, que é o Judiciário. Embora seja em parte um contrasensso dizer isso em uma entrevista, estou falando para uma publicação especializada no Judiciário. Se nós acompanharmos o processo na Grécia, vamos verificar que ele tinha um lugar próprio para ser discutido. E não há vantagem social, a meu ver, em que a discussão se faça fora do campo público que lhe é próprio, que é o do processo. O processo já é público, não há necessidade de torna-lo, por assim dizer, submetido sempre a uma discussão popular. A meu ver, houve um excesso de exposição dos juízes, dos magistrados em geral, perante a imprensa. O juiz deveria ficar numa posição de autoridade, que é aquela que nós desejamos se nós pensarmos no julgamento dos nossos filhos, dos nossos pais, dos nossos netos. Eu tenho dois netos pequenos. Se um dia um deles se metesse em alguma confusão e tivesse que ser julgado, eu gostaria que fosse por um juiz sereno, e não por um juiz que estivesse sempre na mídia.
ConJur — Para o senhor, juízes pode falar fora dos autos?
Ricardo Dip — Ainda que não haja proibição de que fale fora dos autos, penso que é preciso ponderar serenamente quando cabe e quando não cabe essa exposição. Do contrário, o que nós fazemos é um pouco de jogo de cena, transformando a Justiça num espetáculo, e isto parece que não convém. O Judiciário é extremamente polarizado no país. Quando um juiz procura um órgão de imprensa para manifestar-se fora do processo, pode levar a entender que é o Judiciário que está falando, quando é uma opinião particular. O juiz deve, o máximo possível, fora da atividade acadêmica, naturalmente, em que isso se impõe, deixar para expedir a opinião em casos concretos no processo. É ali que ele fala.
ConJur — O senhor é a favor da transmissão ao vivo das sessões?
Ricardo Dip — Sou contra.
ConJur — Por quê?
Ricardo Dip — Por causa de uma possível espetacularização. Há uma discussão muito sutil aqui, que precisaria ser aprofundada: o Judiciário não deve ser poder. Deve ser autoridade. Há uma diferença entre autoridade e poder. O Judiciário deve ter auctoritas, que não deve ser pura e simplesmente convertida num jogo com o poder, ainda que midiático, capaz de influenciar e levar até mesmo à perda desse saber socialmente reconhecido. Tem um livro, de um autor chamado Denis Salas, em que ele conta exatamente como era o processo penal na Grécia: cada um tinha que estar no ponto marcado no chão, de tal sorte que aquela cerimônia pública representava efetivamente a ideia da justiça em camadas, e autorizava o tribunal que a proferia. Se o tribunal começa a se comportar de maneira tal que se despe desta autoridade, não ajuda o bem comum. Onde tudo vira igual, desaparece a razão de ser da diferença de uma autoridade.
ConJur — A imprensa está sujeita ao segredo de justiça?
Ricardo Dip — Se um processo estiver tramitando em segredo de justiça, um acesso indevido aos autos parece que impediria a imprensa também de publicar o que foi considerado sigiloso. Esse é um terreno admirável. Michel Legris publicou um livro chamado Le Monde tel qu’il est. Ele tinha sido, durante muitos anos, diretor-chefe do jornal Le Monde, e conta que certa vez foi publicada uma notícia bombástica. O jornalista foi chamado a falar aos tribunais, e, pretextando o sigilo de fontes, não deu a origem de sua notícia. Só muito tempo depois se descobriu que a notícia havia sido inventada. Então esse é um problema delicado. De um lado, efetivamente forçar o jornalista a quebrar o sigilo adequado de sua fonte pode levar à paralisação, a uma censura que não pode ser extensa. E, sobretudo, não pode ser intensa, em relação aos órgãos de imprensa. Mas a contrapartida também é delicada, porque, como em todas as funções do mundo, pode haver jornalistas mal-intencionados. E, pois, acaso possa inventar uma notícia e não dar a fonte, com determinadas intenções políticas. Isso me parece um tanto preocupante.
ConJur — A maior popularização na mídia do Judiciário trouxe consequências para o modo de trabalho dos magistrados?
Ricardo Dip — Tem um aspecto positivo, que eu reconheço, que é a tomada de consciência de que o processo não é papel. O processo tem um drama humano. Quando a imprensa começa a colocar o Judiciário numa posição em que ele aparece perante os olhos, ele começa a ver que não tem um papel meramente burocrático. Ele está participando dessa tragédia humana de todos os dias e de todos nós. Aqui me lembro de uma expressão de um dos maiores juristas do século passado, Francesco Carnelutti. Ele dizia que todo processo gera uma condenação para quem participa dele. Eu já sofro uma pena quando eu sofro um processo. Se eu consigo transmitir isso para todo mundo que trabalha comigo, e se eu próprio mantenho essa consciência viva, o processo é algo que vai dizer respeito à sua vida, não só ao papel. Então eu começo a ver muito a responsabilidade de ponderar bem as provas, de examinar, de estudar, de ser o quanto possível célere.
ConJur — Como lidar com a necessidade de dar respostas de maneira célere aos casos?
Ricardo Dip — Eu posso contrabalançar os interesses da ponderação e os interesses da celeridade para prestar o melhor possível a minha contribuição para que uma tragédia se resolva. Nesse aspecto, ao ver que sua atividade está sendo contemplada no âmbito social, o juiz perde a ideia de solidão. Perde a ideia de que seu trabalho está encerrado no seu gabinete. Nesse sentido me parece vantajoso. Se, em contrapartida, a ideia é pressionar o juiz a dar soluções de acordo com vontade de um elemento externo, isso me parece um mal. O juiz deve decidir de acordo com sua ciência e consciência. Em rigor, eu digo isso, e é um fato muito pessoal: minha consciência, em determinado momento, está totalmente voltada a Deus. Eu sei que eu vou responder pelos meus acertos e erros perante Deus. Se nós tomarmos isso, é possível extrair bons efeitos dessa publicidade que está sendo dada ao Judiciário. Com a cautela de que não se transforme isso numa pressão indevida sobre a liberdade de decisão do juiz.
ConJur — Como o senhor analisa o conflito entre a ideia de direito real e direito dos autos?
Ricardo Dip — Considere um processo penal comum, um furto ocorrido há três anos, em determinado lugar. O juiz colhe a prova, e veja que a prova testemunhal traz, num depoimento presente, para alguém que esteve ausente no momento de fato, um acontecimento pretérito. Compreende como, nesse meio tempo, o testemunho pode ter sofrido algum déficit de memória, alguma inclinação de aumento na imaginação? Então o processo sempre nos leva até certo grau de conhecimento. Todo juiz sabe, quando termina de julgar um processo, que ele tem alguma certeza, mas a certeza aí é relativa. Não há nenhum caso em que seja possível, quanto a fatos, ter certeza absoluta. Até porque nós temos que perquirir no elemento interior. E como eu sei qual é a sua interioridade? É difícil até julgar o comportamento próprio, imagine julgar o comportamento alheio.
ConJur — E anos depois, ainda.
Ricardo Dip — E anos depois. Há um trabalho magnífico, um discurso feito em duas partes, na década de 1950, pelo Papa Pio XII. Nesse discurso, Accogliete, illustri, ele traça quais os requisitos de certeza para proferir uma decisão condenatória no campo penal. E é muito interessante, de um rigor espantoso. Eu estive por dez anos no Tribunal de Alçada Criminal, e me serviu muito para dar a pauta de julgamento. E, sobretudo, perder esta ideia de que os juízes são infalíveis. Nós temos que ter essa consciência da falibilidade, da deficiência da nossa capacidade argumentativa, inventiva de descoberta dos fatos. Nós temos uma limitação de percepção. Agora, imagina o que é a reconstrução histórica. E que nós temos que basear a maior parte das vezes em testemunhos. E depois testemunhos dos quais nós temos que extrair um fato e interpreta-lo. Vê a dificuldade? Eu me lembro, quando eu era moço, de ter lido uma referência que no início não entendi, de um autor que da “pavorosa função de ser juiz”. Como pavorosa? Hoje eu entendo. É realmente muito difícil.
ConJur — E como é possível desempenhá-la?
Ricardo Dip — Não sei. Sou juiz há quase 35 anos. A gente vai aprendendo, vai ganhando experiência, vai desenvolvendo a prudência. Vai aprendendo também a lidar com os próprios equívocos, evitando paixões, e procurando deixar de ver papéis e ver a situação humana. Tentar se colocar na situação em que se encontram as partes de um processo. Se nós conseguirmos isso, conseguimos o mais possível uma aproximação com a situação real. Mas, infelizmente, a gente tem que lidar eventualmente com testemunhos falsos, com documentos falsos, é inevitável. Essa é a justiça humana. Há um romance muito interessante, Le Compagnon, de Claude Orcival. Conta a história de uma mulher chamada Cathérine, que matou o marido. No julgamento, o advogado, para defendê-la, começa a criticar o marido. Em determinado momento ela se revolta, pede a palavra e diz “meu marido não era esse demônio que ele está pintando, não. Eu sou culpada”. Aquilo foi um escândalo, toda a imprensa noticiou. Ela vai a júri, e é absolvida. Quando ela vai ser colocada em liberdade, fica desesperada, e chama o capelão do presídio: “Eu não quero ser absolvida. Eu sou culpada, eu quero receber uma pena”. E o capelão diz uma coisa muito sábia: “Essa é a justiça humana: às vezes condena indevidamente, às vezes absolve indevidamente. E agora a sua pena não vai ser a cadeia, vai ser viver o resto da vida sem ter sido punida”.
Conjur — Qual seria o juiz ideal?
Ricardo Dip — Em sala de aula eu dizia muitas vezes para os alunos, no final do curso: o modelo de juiz ideal, para todos nós, é aquele que vai pegar um processo do nosso filho, do nosso neto, e vai ler. Eu quero que o juiz leia o processo e veja o caso. E isso é incompatível com o engessamento excessivo. Eu passo longe de ser um juiz ativista, aliás sou um crítico do ativismo. Mas acho que é preciso ver caso a caso. Quando eu estava no Tacrim, levei um caso a julgamento. Eram dois moços que foram jogar futebol, no final do jogo beberam muito em um churrasco e não estavam acostumados a beber. No caminho de volta para casa, eles viram uma gaiola e resolveram matar um passarinho para comer. Era de um compadre. Passada a bebedeira, eles se deram conta da barbaridade, e voltaram lá para pedir desculpas chorando. O compadre falou: “Não. Deixa para lá. Esse passarinho custava dez reais. Não tem problema”. Foram à polícia, se apresentaram ao delegado. A cidade era muito pequena, o delegado não sabia bem o que fazer, fez o boletim de ocorrência, mandou para o promotor. O promotor disse: “Isso é caso grave. É furto qualificado pelo concurso de agentes”. Resultado: foram a julgamento, e condenados a dois anos de prisão. Não tinha nem direito a furto mínimo. O advogado apelou por apelar. Chegou o processo à minha mão, eu examino: evidente, isso é furto. Alguma coisa tem que ser feita para não estimular. Mas me parece que dois anos de prisão é excessivo. Não tinha, aparentemente, como sair do sistema, porque não cabia furto mínimo. A orientação da minha câmara era a de que o furto qualificado nunca poderia ser mínimo. Então, eu disse: “Esse é um caso diferente”. Aqui voltamos a aplicar o aforismo latino, summum jus, summa injuria, quer dizer, o excesso de direito acaba sendo um crime. Neste caso, excepcionalmente, admitimos o furto mínimo e aplicamos uma pena de multa. Cada um ficou condenado a dez dias de multa. Resolveu-se o problema: a comunidade não vai se sentir afrontada, porque houve punição. Mas uma punição proporcional. Percebe que os nossos atos são autênticos na medida e no momento que os praticamos, que nós sentimos como nossos. É isso que tem que ser julgado, não uma tese. E aí corre-se o risco de uma certa variação. Eu penso que há um mínimo, certas categorias que devem ser bem utilizadas, os conceitos não devem ser alterados. Mas não se pode perder de vista o caso, circunstâncias que podem alterar muitas vezes um comportamento.
ConJur — As súmulas eram vistas como uma forma de tornar a prestação jurisdicional mais eficiente. Elas têm sido obedecidas?
Ricardo Dip — No caso do Tribunal de Justiça de São Paulo é impraticável controlar o que se processa como um todo, até dentro da Seção. Imagina que são cinco desembargadores, no mínimo, por câmara, às vezes há um ou dois substitutos, cada um produzindo 80 a 90 votos por semana. Então é impraticável dar uma resposta, considerando todas as câmaras da minha Seção, sem contar a Criminal e a Seção de Direito Privado. Tanto quanto eu saiba, de modo geral, as súmulas são observadas. O problema é que esses enunciados também estão sujeitos a interpretação. Vou dar um exemplo, o caso da súmula vinculante referente às declarações de inconstitucionalidade, da reserva de plenário. O próprio Supremo fez, com todo acerto, a aplicação da teoria dos motivos determinantes. Suponha que o município de Mira Estrela baixe uma lei e ela é copiada por 400 outros municípios. Aí essa lei é declarada inconstitucional pelo Tribunal Pleno do TJ ou pelo STF. Uma lei idêntica, com o mesmo texto, também tem que se submeter a esse processo? Imagina o tempo que vai levar.
ConJur — Qual a alternativa?
Ricardo Dip — O que se pode fazer é aproveitar os motivos determinantes. Aqui não cabe reserva de plenário. Para chegar a isso eu preciso fazer toda uma análise. E essa análise provoca um pouco de risco natural na força da súmula. As súmulas ajudam, até certo ponto, a conter determinadas questões, mas eu penso que até o próprio Supremo compreendeu que o número de súmulas vinculantes não deveria ser excessivo. Percebeu-se que cada norma que surge faz também emergir interpretação, faz eclodir compreensão do texto. E novos problemas, portanto.
ConJur — O sistema dos recursos repetitivos tem sido útil?
Ricardo Dip — Há certa utilidade. Mas nós vivemos um período grave na magistratura. O Brasil é um país muito grande, com uma polaridade institucional evidente. Há certo temor de que os tribunais estaduais e federais acabem se transformando em cronistas de tribunais superiores. Isso é um perigo muito grande, até para a própria vitalidade de autoridade dos tribunais superiores. O papel do juiz de primeiro grau é importantíssimo, ele depura o processo. O processo, quando chega aqui, já chega com uma primeira decisão. A mesma coisa se passa lá nos tribunais superiores. Na medida em que daqui sai um acórdão supostamente razoável, depuramos um pouco mais o processo, preparamos alguma coisa para que os tribunais superiores possam dar uma solução melhorada. Se nós começarmos a deixar os tribunais na função ritual de fazer a crônica dos tribunais superiores, a tendência será não atender à peculiaridade dos casos. Hoje o perigo é que os nossos juízes, devido ao volume de casos, possam ser seduzidos pela ideia de só examinar os precedentes das cortes superiores. Eu tenho 35 anos de carreira e nunca vi dois casos iguais, há sempre uma peculiaridade que deve ser examinada. Pode ser que a solução sirva, mas pode ser que não. Daí a importância da doutrina. Não significa reduzir a importância da fonte pretoriana, mas é permitir que haja outra fonte. Por exemplo, nas comarcas do interior é preciso que nós voltemos a considerar a importância do costume. Há certas peculiaridades locais que precisam ser examinadas.
ConJur — Hoje a gente vê uma quantidade cada vez maior de pedidos de juízes para morar fora das comarcas em que trabalham, principalmente em cidades pequenas ou próximas a São Paulo. Isso não acaba prejudicando esse conhecimento de costumes e o julgamento?
Ricardo Dip — Parece-me que nas comarcas pequenas e médias a falta do juiz morando no local é decisiva para certo desprestígio institucional. Eu fui juiz do interior, morei em todos os lugares onde fui juiz, menos na minha primeira comarca, porque fiquei como convocado. Mas fora isso, eu sempre morei no interior. Eu me recordo como isso era importante. Ou seja, o dono da padaria sabia que o juiz morava na cidade e comia do mesmo pão que o povo todo do lugar. Eu compreendo as dificuldades dos colegas. Tem comarcas em que é difícil morar, e talvez até não convenha morar. Em comarcas onde há presídios grandes, um juiz de execução criminal fica muito exposto. Compreendo tudo isso. Mas do ponto de vista geral, digamos, como regra, é melhor que o juiz resida na própria comarca.
ConJur — O senhor falou da quantidade processos que cada câmara julga. É possível que a câmara, tirando o desembargador que emite o voto, leia todos os casos?
Ricardo Dip — Hoje em dia, aqui no Tribunal de Justiça pelo menos, as coisas são muito facilitadas. No caso da minha câmara, nós temos quatro juízes que trabalham juntos há 15 ou 20 anos. A confiança que um tem no outro é tamanha que o próprio relator chama a atenção do revisor em questões em que a posição seja contrária. Quando vemos um caso mais delicado, levamos direto à mesa e alertamos no dia do julgamento. Liminares, por exemplo, levamos direto à mesa. Não se decide individualmente. No mais, com tanto tempo de convivência, nós já conhecemos as teses uns dos outros. Mas é impraticável imaginar que o terceiro juiz vá ver o processo sempre. O relator e o revisor têm vista dos autos, o terceiro juiz, se não há divergência entre os colegas, tem que confiar no exame dos autos feito pelo relator ou revisor. Se for indicar vista em todos os processos, ele não julgará. Nós precisamos encontrar um meio termo entre a necessidade de ponderação e a necessidade de celeridade. Eu sou um pouco contrário a essa ideia de justiça fast food que está aí. Mas também não vamos ao extremo oposto de paralisar os processos com deliberações incessantes. Pode ser que em 200 processos eu encontre um erro. Mas a probabilidade que isso ocorra é tão pequena que é melhor deixar para Embargos de Declaração.
ConJur — O que o senhor pensa dos projetos de mediação e arbitragem em discussão no Congresso?
Ricardo Dip — Em primeiro lugar, precisamos ter certa cautela com a ideia de mediação e conciliação do ponto de vista ético. Não me parece que esteja bem essa quase compulsividade pela conciliação a qualquer preço. O que tem acontecido muitas vezes é que sobre os pescoços das partes se coloca uma espada de Dâmocles – ou aceita a conciliação ou não sabemos o que vai ocorrer daqui a 50 anos. Uma verdadeira conciliação deve ser no sentido de provocar a concórdia, de colocar juntos os corações. A mediação e a conciliação devem sempre partir dessa ideia, fomentar concórdia das pessoas, do ponto de vista moral. Se a coisa for só para resolver de maneira instrumental, para diminuir o número de processos no Tribunal, não vai dar certo, é momentâneo. Vira uma espécie de judiciário de pequenas causas.
ConJur — A gente vê cada vez mais, até por um aumento de quantidade de profissionais, as pessoas caminhando para especializações dentro da área. O senhor considera que a sua formação em Jornalismo e Direito ajudou ao longo da magistratura? Seria importante que os jovens que estão cursando Direito, com a intenção de ingressar na magistratura, tivessem uma formação também em outras áreas?
Ricardo Dip — Não é propriamente que nós precisemos fazer outras faculdades, mas precisamos desenvolver um estudo um pouco além da esfera do Direito. Eu acho que falta um pouco a nós todos, a começar por mim, uma formação humanística adequada e verificar que o Direito é uma disciplina subalternada da moral. Se nós não compreendermos isso, se nós tratarmos o Direito como matemática ou algo assim, o resultado é catastrófico. Se nós formos utilitários, vamos decidir de acordo com a lei do dia. É um positivismo jurídico. Hoje vem o direito assim, amanhã vem um sadio sentimento do povo alemão nazista e a gente aplica também, porque não haverá limites para isso. Então, eu acho que essa formação humanística é importante. Ainda que não se faça outra faculdade, o que seria necessário é essa dimensão. Precisamos ir um pouco além dessa visão disciplinar. O Direito não é feito para nós jurisprudentes, é para o homem da rua.
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