Comportamento das formigas

O mundo inteiro se deixou engolfar pela obsessão do futebol

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25 de junho de 2014, 17h30

Nelson Hungria Hoffbauer, dos maiores penalistas que o Brasil já teve – e tem —, hoje esquecido pela grande maioria, tinha um apelido: “cabeça de ovo”. Quando o conheci, nos idos de 1953 – veja-se como sou antigo –, já era calvo e exibia, realmente, um crânio meio ovalado. Eu era garotão. Começava os estudos na hoje mais que cinquentenária Faculdade de Direito da Universidade Católica de Santos, a mesma que fez um presidente do Supremo Tribunal Federal (Ministro Peluso). Parece estranho começar uma crônica sobre futebol assim, mas não é. Nelson Hungria, poucos sabem, foi delegado de polícia em “Rio Pomba”. Afirma-se que aprendeu o alemão ali, mas devia ter propensão genética a tanto (v. o sobrenome). De qualquer maneira, foi o que foi. Ainda seria se nossos penalistas modernos prestassem mais atenção aos clássicos, em vez de se entusiasmarem com o “direito penal do inimigo” ou “teoria do domínio do fato”. Ao lado de toda a cultura jurídica que o notabilizava, Hungria era fanático por futebol. Torcia para o Fluminense, mas torcia mesmo, desvairando-se enquanto assistia aos jogos.

O personagem vem a pelo, na madrugada de terça-feira, após o jogo Brasil-Camarões. Eu estava a passar o tempo lendo “O anjo pornográfico”, de Ruy Castro, sobre a vida de Nelson Rodrigues, também obcecado por futebol, sem exceção das mulheres, preferência saudável, embora em desuso. Nelson, experimentadíssimo nas duas vertentes, dava conselhos quanto ao sexo feminino: quando lhe perguntavam como ia um de seus casos amorosos, respondia: – “Está dureza. O negócio é mandar flores de manhã, de tarde e de noite. Não há mulher, por mais insensível, que resista a tantas flores”.

O amor é, psicanaliticamente, uma forma de obsessão. Não tem muita explicação lógica, mas os estudiosos lhe dão, entre outros, o nome de “Obsessão psico-emotiva”. Em suma, é forma de compulsão. O próprio Nelson Rodrigues foi, certa vez, entrevistado sobre o assunto. Indagaram-lhe o que pensava sobre os perfumes na mulher. Respondeu: “Prefiro o cheiro específico, nato, que cada mulher tem” (v. perfume de mulher com Al Pacino ou Vitório Gassmann). Não se perdendo o caráter científico da crônica, o teatrólogo se referia aos atualmente decantados “feromônios”.

Falando-se em compulsões, volte-se ao futebol e, obviamente, à Copa do Mundo. A propósito, houve uma cidade, perdida na imensidão, em que o povo riu compulsivamente durante seis meses seguidos. Vivia-se às gargalhadas. Aquela risomania foi como veio, mas veio. Há outras formas de obsessão. Por exemplo, xingar nos estádios a presidente da República. Algum psiquiatra ou comunicólogo deve ter prevenido a primeira dama: “Não vá mais aos jogos, porque será vaiada novamente”. Sabiamente, Dilma fica no palácio, mas precisará enfrentar aquilo, espécie outra de compulsão coletiva.

Evidentemente, a noção de pátria, país, nação, tem sentido extremamente importante para a união grupal. Afirma-se que entre os hominídeos, nossos antepassados, a comunhão, sempre ligada a interesses coletivos, não ultrapassava o número de 150 indivíduos. Pensando bem, tal enlaçamento não mudou muito, pois mesmo numa metrópole ciclópica como São Paulo os interesses de uns e outros não sobrelevam tal montante. Acontece que há de vez em quando, episódios agregadores de multidões. As guerras são sintomáticas. Futebol também o é. Diga-se que tal competição é, na verdade, a sofisticação do combate. Aliás, os andinos tinham um simulacro desse jogo, bastando dizer que era disputado com bolas de borracha vinda de seringueiras. O impulso era dado pelas ancas dos jogadores (Hulk teria muito sucesso). Cavava-se um buraco nas rochas. A esfera precisava ser encaixada naquele orifício. Os perdedores, eventualmente, eram sacrificados.

Feitas as digressões entre o grande penalista Hungria, o anjo pornográfico Nelson Rodrigues, os feromônios, a Copa do Mundo e as reações da multidão, resta dizer que o povo brasileiro — quiçá o mundo todo — se deixou engolfar pela obsessão futebolística. Até a Justiça parou. Não se sabe sequer, à perfeição, como se contam os prazos, valendo dizer que um feriado a mais, na vida de um preso provisório, é um dia a mais de cadeia. Há uma espécie de desatino geral, com bons propósitos, é certo, mas sempre menor dose de controle emocional, como se fosse um formigueiro menos organizado. A propósito, afirmam os especialistas que há uma espécie de vespa capaz de exalar substância apta a endoidecer os insetos citados, explicando-se que as formigas, como nós, eventualmente se orientam pelos feromônios. Oxalá o Brasil vença o campeonato mundial de futebol. Chegando às finais a presidente estará lá, porque é preciso. César fazia isso no Coliseu. Um problema: na hipótese vertente, quem coloca o dedão pra cima ou pra baixo é o povo. Ver-se-á.

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