Era digital

Ideologias contaminam debate sobre direitos autorais

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17 de julho de 2014, 9h16

Desde a passagem da modernidade para a pós-modernidade, o Direito vem sofrendo um impacto bastante profundo. Fundamentos que foram forjados num cenário de ideal de legalidade e ordenamento jurídico, baseados num paradigma de ordem e sistematicidade, são constantemente contra-arrestados por uma nova configuração de mundo em que as mudanças acontecem numa velocidade consideravelmente maior do que a capacidade do Direito em se adaptar e oferecer soluções coerentes e justas aos mais variados conflitos da contemporaneidade. As controvérsias que envolvem os direitos autorais são um exemplo claro de como essas tensões são extremamente complexas de se enfrentar, especialmente, depois do estabelecimento da internet.

A configuração do direito autoral remete à modernidade. Mais precisamente a 1710 com o Statute of Queen Anne (Grã Bretanha), primeiro documento que trouxe à luz a questão relativa à concessão do privilégio de reprodução, fundando a noção contemporânea (anglo-americana) do copyright, de cariz mais utilitarista, conforme bem lembra o professor português Dário Moura Vicente[1]. Na mesma época, outros países do continente europeu (a França, por exemplo) partiam também da noção do privilégio, só que, de acordo com José de Oliveira Ascensão, substancialmente mais centrado na tutela da atividade criadora em si[2], preservando-se mais o próprio criador do que a obra. Nesse sentido prescrevia a lei francesa Le Chapelier (1791)[3]: “A mais sagrada, a mais legítima, a mais inatacável e, se assim posso falar, a mais pessoal de todas as propriedades, é a obra fruto do pensamento de um escritor”.

Essa breve menção histórica serve para lembrar que o Direito não surge do nada. Ele nasce dos conflitos que emergem na sociedade. Aquele momento traduzia a ascensão da burguesia e os primeiros passos do capitalismo, fatos esses que mudaram os rumos da humanidade, criando novos polos de tensão. Novos embates que não deixaram de ser um reflexo, também, das próprias evoluções tecnológicas, sendo a mais representativa, quanto ao aspecto aqui abordado, a invenção dos tipos móveis de Gutenberg. Esta foi uma invenção, aliás, que trouxe um novo paradigma (no sentido trazido por Thomas Kuhn), que contribuiu, de certa maneira, para que a própria discussão sobre a propriedade intelectual e os direitos autorais viesse à tona. A internet, mais recentemente, também serviu como um novo paradigma, só que, curiosamente, ao invés de potencializar as discussões em relação ao direito autoral, ela vem recrudescendo correntes que pretendem minar esses direitos na era digital.

Pode-se dizer que os direitos autorais vivem um momento de crise de identidade. Isso porque muitas vezes parte-se da noção de que esses direitos foram idealizados para atuar no mundo dito analógico ou físico, não tendo lugar, portanto, no mundo que vem testemunhando a digitalização não só das coisas, mas da própria vida. Esse talvez fosse um fenômeno natural, que se enquadraria na própria noção explorada no parágrafo anterior e que exigiria uma adaptação do Direito a essa nova realidade. Em outras palavras, se o Direito é o resultado dos conflitos, desenvolvido como um objeto cultural que não se divorcia da realidade, ele deveria, então, se aperfeiçoar para buscar encaixar os direitos autorais, desenvolvidos durante séculos, nas novas relações que o mundo virtual possibilita. Mas não é apenas esse o embate que se apresenta.

Quando se pensa em bens intelectuais, umas das consequências conceituais é que eles se apresentariam como bens públicos. Ou seja, partindo do pressuposto de que o bem público é um bem não rival, em outras palavras, um bem cujo uso pode ser feito por um número indeterminado de pessoas, sem perda de qualidade, o Direito respondeu a essa questão criando monopólios. Isso porque, segundo defende o professor de Harvard William Fischer[4], os bens públicos, por natureza, necessitariam de incentivos para não evitar o risco da escassez. Dito de outra forma, isso evitaria a ameaça de que tais bens fossem sub produzidos, justamente pela falta de incentivos. Com isso, em relação aos bens intelectuais, foram criados certos monopólios para viabilizar a sua produção, concentrando-se em elementos como a reprodução e distribuição. Antes do estabelecimento da era digital, o caráter público desses bens enfrentava certa resistência pela própria materialização das criações (livros, fitas, CDs, DVDs, etc). Com a internet, segundo aponta Ronaldo Lemos, esses bens passam a se tornar públicos perfeitos, não conseguindo mais, o monopólio, servir de pedra de toque para o incentivo[5].

Nesse cenário de facilidade de cópia, dois caminhos são geralmente apontados como solução: tornar a proteção do monopólio mais robusta, até com o auxílio de ferramentas tecnológicas, ou partir para soluções alternativas mais flexíveis. No primeiro caso, o que se vê é a criação de ferramentas que buscam preservar o direito do monopólio mesmo no ambiente virtual, seja pela criação de leis que tornam a conduta de violar direitos autorais mais gravosa (como se tentou fazer nos Estados Unidos com os projetos Sopa (Stop Online Piracy Act) e Pipa (Protect Intellectual Property Act), ou mesmo, pelo desenvolvimento de ferramentas tecnológicas que impossibilitem a cópia dos bens (por exemplo, o mecanismo DRM). Com relação às iniciativas alternativas, talvez a mais significativa tenha surgido com o professor da Universidade de Stanford Lawrence Lessig, que idealizou um modelo jurídico (contrato) que possibilita ao criador “dialogar” com o público, por meio da designação “CC” [6] (Creative Commons), transmitindo a autorização da cópia, utilização e distribuição de determinada obra.

O problema, em toda essa controvérsia, é que os discursos ideológicos, muitas vezes, contaminam o debate. Num primeiro momento, o movimento natural da proteção dos direitos autorais, no novo paradigma estabelecido pela internet, seria o de se buscar mecanismos que tivessem o condão de oferecer meios hábeis de proteção aos detentores desses direitos. Mas o que acontece, na realidade, é um caminho inverso: ao invés de nos concentramos mais na busca de soluções protetivas, o que se vê, mais e mais, são correntes que apresentam medidas que, simplesmente, eliminam por completo a coerência do sistema dos direitos autorais. Desta forma, o que se presencia é uma total e temerária inobservância direta de um direito fundamental preservado na Declaração Universal dos Direitos Humanos (Artigo 27) e na Constituição Federal de 1988 (Artigo 5º, incisos XXVII e XXVIII).

A internet são significou apenas uma ferramenta tecnológica. Ela trouxe uma ideologia junto com ela que decorreu das características intrínsecas do seu próprio desenvolvimento. Nesse sentido, ela contribuiu para disseminar uma ideia de desenvolvimentos colaborativos, cujos fundamentos dos direitos autorais seriam, em tese, refratários. Esse é o caminho seguido pelo Creative Commons. Criações colaborativas. Esse discurso de incompatibilização dos direitos autorais na rede, sem dúvida, foi e é potencializado por usos inadequados que deles foram feitos. Quando se discutem direitos autorais nessa conjuntura, muitas vezes se lembra da famigerada indústria do conteúdo. Demonizada, a bem dizer. Indústrias do cinema e da música, mais precisamente. Lembra-se do fato de a Disney ter copiado outras obras[7] no início de sua empreitada, dos intensos lobbies praticados pela Record Industry Association of America (Riia) e Motion Picture Association of America (MPAA)[8] com o fim de ampliar os períodos de copyright, dos bilhões arrecadados pela indústria de software e etc.

O que tudo isso gera, na realidade, é uma profunda deturpação do debate sobre o posicionamento dos direitos autorais no contexto digital. Defender os direitos autorais não significa, de forma alguma, aplaudir as estratégias ilegítimas da indústria. Implica, por outro lado, em tratar de encontrar medidas que abriguem direitos fundamentais num contexto de Estados constitucionais e democráticos, preservando-se o mercado no sentido de manter a integridade na recuperação do investimento, ou mesmo, num fundamento mais europeu, de se proteger um direito que nasce do próprio ato de criar, seja o criador a pessoa mais modesta que escreve um simples livro de contos ou uma produtora de filmes que lucra milhões. Não se pode, simplesmente, fulminar um direito fundamental porque ele tutela quem detém determinado poderio. Não se pode, igualmente, exigir que uma indústria X ou Y adapte os seus modelos de negócios à nova realidade (se quiser sobreviver) quando o concorrente é ela mesma. Como dizia o ex presidente da MPAA, Jack Valenti[9], como se pode competir com o que é gratuito? Existe qualquer modelo de negócio capaz de tamanha façanha?

Se o lobby[10] em certa medida contamina os direitos autorais, utilizando-se de ferramentas escusas, então, que ele seja atacado, não os direitos autorais. Estes, nada tem a ver com isso. Particularmente interessante são as recentes incursões do professor americano já citado, Lawrence Lessig, que vem enfrentando de forma bastante assaz o lobby realizado no congresso americano[11]. Todas as críticas que devem ser direcionadas a esses direitos devem partir dos excessos praticados por meios das leis que os embasam, juntamente com a análise da nova dinâmica social. Isso deve servir para que novas leis mais justas sejam editadas. O que é preciso evitar é que as discussões relativas ao tema fiquem entorpecidas por questões que, na realidade, se desenvolvem a margem dos direitos autorais em si. Elas criam, a bem da verdade, um cenário que visa enfraquecer esses direitos pelo fato de terem supostamente sido, como bem pontua José de Oliveira Ascensão[12], apoderados pela indústria. Seguir por essa linha é extremante prejudicial para a discussão do direito fundamental. Isso contribui para que o enfrentamento se resuma, muitas vezes, num embate entre anárquicos e burocratas.

Outro aspecto que merece atenção em relação aos debates obtusos que interferem na discussão referente aos direitos autorais diz respeito à preservação da liberdade de expressão e acesso à cultura. Esses direitos, fundamentais como o são os direitos autorais, vêm sendo tratados como se fossem direitos absolutos. E possui um grande papel nisso a ideologia que envolve a formação da internet, que prega, como já apontado, um ambiente ilusório de mais liberdade do que regras. A partir do momento que se coloca esses direitos num patamar mais elevado do que os direitos autorais, cria-se uma deturpação do sistema. Atualmente, qualquer tentativa de se preservar as medidas que visem resguardar esses direitos é confrontada com a alegação de que aqueles seriam violados. Nota-se, porém, que essa defesa vem sendo utilizada de forma imperiosa, como se ambos os regimes fossem incompatíveis, em razão de uma hipotética relação de hierarquia. O acesso à cultura, por exemplo, é usado como o coringa que justifica o consumo gratuito de entretenimento, tratando todo e qualquer bem intelectual como produto cultural, justificando-se, portanto, a sua disseminação ao público. No cenário apresentado por Vargas Llosa[13] de que se tudo é cultura, nada é cultura, que bases podem sustentar esses argumentos? Será que esse acesso à cultura não está calcado em pilares deveras abstratos?

Não é por outra razão que o direito fundamental que embasa os direitos autorais não é expressamente homenageado nos princípios que norteiam o recente Marco Civil da Internet. Há quem diga que isso não passa de um mero detalhe e que aqueles que foram elencados não excluem os outros previstos no ordenamento nacional (artigo 3º). Não se trata de um mero detalhe. Esse fato reflete, na verdade, essa noção de que ambos os universos não dialogam. De que a defesa de um implica a inobservância do outro. Isso acontece porque o debate está viciado por discursos ideológicos que impedem uma discussão que vise atingir o equilíbrio entre esses princípios. Quer queira, quer não, se existe um direito fundamental que foi violado em larga escala com o advento da internet, é o direito autoral. Isso é um fato. Portanto, se mostra absolutamente incoerente que ele não esteja prestigiado nos princípios do marco civil.

Não se quer dizer, com isso, que o direito autoral não precise ser repensado em certos aspectos. Longe disso. Só que para discuti-lo é necessário partir do seu núcleo, não de suas margens para desmantela-lo. Em outras palavras, é preciso solucionar as controvérsias olhando-se para dentro do sistema, não apenas para fora dele. É necessário localizar um ponto de equilíbrio para defender esse direito, o que não significa defender os maus usos que se fazem dele (isso faz parte da discussão), tendo por escopo manter a sua coerência principiológica, sobretudo, na era da informação. Se outro não for o caminho, iremos destroçar um direito fundamental cuja formação remonta há séculos, num movimento bastante temerário que fere bases primárias de um Estado Democrático de Direito.


[1] VICENTE, Dário Moura. A tutela internacional da propriedade intelectual. Ed. Almedina. Coimbra. 2008. P. 57

[2] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Autorais. 1997. P.5

[3] VICENTE, Dário Moura. A tutela internacional da propriedade intelectual. Ed. Almedina. Coimbra. 2008. P. 57

 

[4] Fischer, William. Promisses to Keep. Technology, Law, and the Future of of Entertainment. Stanford University Press. August 2004. Cap. 6.

[5] LEMOS, Ronaldo. Direito, Tecnologia e Cultura. FGV Editora. 1ª Ed. P. 170.

[6] Para maiores informações consultar http://creativecommons.org/.

 

[7] Nesse sentido, consultar: LESSIG, Lawrence. Cultura Livre. Como a mídia usa a tecnologia e a lei para burrar a criação cultural e controlar a criatividade. P. 21 e ss.

[8] Nesse sentido, consultar: LESSIG, Lawrence. Cultura Livre. Como a mídia usa a tecnologia e a lei para burrar a criação cultural e controlar a criatividade. P. 165.

 

[9] Não que ele tenha sido fomentador de um debate saudável, apesar se estar correto nesse seu argumento. O rigor no tratamento do tema, de alguma forma, auxiliou ao recrudescimento das visões contrárias aos direitos autorais. Segundo ele, em linhas gerais, não existia muita diferença entre o mundo físico e o digital. Não era adepto, sequer, da cópia de backup. Faleceu em 2007.

[10] Sobre esse assunto, recomenda-se o livro Capital Punishiment do ex lobista americano Jack Abramoff.

[11] Nesse sentido, consultar: LESSIG, Lawrence. Republic, Lost. How Money Corrupts Congress – and a Plan to Stop It. 2012.

[12] ASCENSÃO, José de Oliveira. Direitos Autorais. 1997. P.5.

[13] Nesse sentido, consultar: LLOSA, Mario Vargas. A civilização do espetáculo: uma radiografia do nosso tempo e da nossa cultura. Ed. Objetiva. 2013.

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