Diário de Classe

Gestão do futebol brasileiro entre os caminhos da estatização e da privatização

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12 de julho de 2014, 8h00

Spacca
A seleção brasileira chumbou na Copa do Mundo. Perdeu de um jeito que nem o maior secador do escrete canarinho poderia imaginar. Para quem gosta de futebol, mesmo sem entender de esquemas táticos ou da “epistemologia do futebol” (Streck), fica evidente que um placar de 7 a 1, em uma semifinal, é um ponto fora da curva, para usar uma expressão da moda.

Impressionou-me a reação das crianças que estavam no estádio e que choravam copiosamente diante das lentes das câmeras. Lembrei-me das sensações que tive quando da derrota diante da Argentina, na Copa da Itália em 1990. Tinha eu recém completado nove anos e adorava futebol. Meu pai havia incutido em mim o gosto pela coisa. Careca e Romário eram os meus heróis na época. Naquela copa, Romário pouco jogou, em virtude de uma lesão no tornozelo. Em alguma medida, minha frustração por não poder vê-lo jogar em alto nível foi similar àquela sentida pela contusão de Neymar na Copa atual, que o tirou do fatídico jogo frente à seleção alemã.

Claro, o placar em 1990 não foi tão expressivo e massacrante. Ao contrário, um mísero 1 a 0. Mas foi uma derrota nas oitavas. E para a Argentina. A explosão foi da mesma magnitude: uma hecatombe futebolística. Em 1994, quando o Brasil ganhou novamente o Mundial, eu já não me empolgava tanto com o meu herói de outrora. Não que Romário não jogasse um futebol admirável. Na verdade, eu já não era o mesmo. Nem tão ingênuo quanto em 1990, nem mais tão apaixonado por futebol. A essa altura, a música já havia assumido o lugar da bola em meus interesses extraescolares.

Mas, por mais distante que eu ficara, nunca deixei de cultivar certa paixão pelo jogo. Depois, já adulto, descobri em meio aos meus estudos sobre a identidade nacional, inúmeros trabalhos que exploravam o futebol como elemento de conformação de uma espécie de sentimento nacional entre nós (uma discussão interessante sobre o tema pode ser vista neste link). Também ficava claro para mim, cada vez com maior intensidade, a importância política que esse esporte possui, algo que não é, a toda evidência, uma peculiaridade brasileira.

A “derrota acachapante”, como vem sendo chamado o evento da última terça-feira (8/7), trouxe à tona certos fantasmas que vivem entre nós há muito tempo. Eu os vejo assombrar-nos desde aquela eliminação em 1990. Deita-se falação sobre uma pretensa exaustão do futebol brasileiro pelos mais diversos motivos. Necessidade de formação de novos jogadores, reciclagem de técnicos defasados e modificações na gestão do esporte no Brasil. A cada derrota sofrida em uma Copa do Mundo, assiste-se repetidas vezes ao mesmo espetáculo: renovam-se atletas e trocam-se os técnicos.

Por outro lado, uma verdadeira reforma na gestão do futebol no Brasil sempre foi jogada para escanteio. Os grandes marcos legislativos em termos de gestão do esporte por aqui, sem embargos de instrumentos normativos menores e mais específicos, são a Lei 9.615/98, conhecida como “lei Pelé”, e a Lei 10.671/2003, o famigerado Estatuto do Torcedor. Tirante avanços pontuais, tais diplomas legislativos não tiveram força para alterar as estruturas profundamente enraizadas em nosso estamental modelo de gestão esportiva. No ponto específico do futebol, a dificuldade maior talvez esteja na incapacidade que tais textos normativos demonstraram para tornar a CBF efetivamente responsável, diante de seu papel político e social.

Desde 1990 que acompanho o futebol brasileiro. Desde então a CBF sempre se apresentou como um castelo impossível de ser invadido. Cristalizou-se uma argumentação de que a instituição é uma associação privada e, como tal, encontra-se garantida constitucionalmente de interferências estatais em sua gestão.

Uma análise perfunctória sobre as competências e os poderes da CBF na organização de nosso futebol é suficiente para deixar qualquer um arrepiado. A relação dessa instituição com os clubes, que são os grandes protagonistas do futebol nos interregnos entre as copas do mundo, é do tipo parasitária: ela vive daquilo que os clubes produzem (dos atletas). Mas, ela, em si mesmo, não forma jogadores. Ela devolve muito pouco ao clube, além de eventuais acréscimos no valor de mercado dos jogadores. A CBF apenas recebe os jogadores dos clubes e organiza um time para participar de campeonatos mundo afora. Note-se: todo o investimento, financeiro e temporal, para a formação dos jogadores é realizado pelos clubes.

Os clubes, de outra banda, não têm grande voz nessa associação. São, no mais das vezes, caudatários de suas federações estaduais. Essas, por outro lado, estão igualadas no processo de eleição para a presidência. No caso, o voto de cada federação possui igual valor. Assim, o voto da federação paulista, ou da federação gaúcha, ou da federação mineira, possui o mesmo peso que o voto da federação do Amazonas.

Uma análise do histórico recente das eleições para a presidência da entidade, independentemente de qualquer juízo de valor, mostra que tal modelo leva à perpetuação de uma pessoa, ou de um grupo, no comando de suas ações. O antigo presidente ficou no cargo de 1989 até 2012. Esse cidadão apenas deixou a função porque assim o quis: renunciou ao cargo deixando no lugar o seu vice, atual presidente. Esse, por sua vez, já fez o seu substituto, eleito, segundo consta, por aclamação.

Esse modelo eleitoral parece prejudicar, também, a formação de minorias dissidentes. Assim, como o ajuste para a manutenção do establishment parece já estar previamente acertado, oposições e ideias divergentes daquela professada pelo status quo são, de algum modo, abafadas.

Os clubes, ao que tudo indica, vêm-se em uma situação de reféns em dois níveis: no âmbito das federações estaduais e no nível da CBF. Quando tentaram reagir, formando o Clube dos 13, uma queda de braço com o antigo presidente da CBF acabou por esvaziar as propostas daquela entidade.

Além de formar times e treiná-los para a disputa de campeonatos internacionais, a CBF também organiza o calendário do futebol brasileiro. Nesse ponto, há um radical consenso entre especialistas (médicos, fisioterapeutas, fisiologistas etc) que o modo como está organizado o calendário do futebol brasileiro faz com que os atletas atuem no limite de seu corpo, aumentando a probabilidade de lesões e extenuações ao longo do ano. A contusão de um atleta de alto nível representa prejuízo para o clube. O jogador, por sua vez, vê-se em uma situação de estar como que “a um passo” do acidente de trabalho. O quadro é de tal forma preocupante que um grupo de jogadores fundou um movimento,o Bom Senso FC que possui como uma de suas principais bandeiras a melhoria das condições de trabalho.

Por fim, há ainda uma desproporção entre clubes e CBF no que tange à saúde financeira. Tenho a impressão que, à medida que aumenta a agonia dos clubes — que possuem dívidas mastodônticas, que chegam a consumir de 70% a 80% de suas receitas — aumenta, igualmente, arrecadação da CBF. Em 2013, por exemplo, a CBF bateu recorde: entraram em seus cofres um valor aproximado de R$ 430 milhões.

Nenhum clube, no Brasil, chega a triscar esse montante. No mesmo período, o clube brasileiro que gerou maior número de receitas foi o Corinthians, ficando na casa dos R$ 200 milhões. O valor recebido pela CBF, comparado com a arrecadação das federações estaduais, é tão acachapante quanto a goleada sofrida pela seleção brasileira contra a Alemanha: a CBF fica com quase 80% do total arrecadado.

Os números acima são aproximados e não pretendem, de forma alguma, tornar o lucro ou o sucesso financeiro um pecado. Até porque, sei bem, as despesas da CBF são também altíssimas. Inclusive pelos salários astronômicos que paga aos seus dirigentes. O ponto da argumentação é outro: como é possível que os clubes, protagonistas do jogo, serem coadjuvantes quando o assunto é sucesso financeiro? Talvez seja natural uma margem um pouco maior de receita para a CBF. Mas, assim, na proporção da metade, gera certo estranhamento.

Quem recebe o maior calote dos clubes é o Fisco (como INSS, IR e FGTS). A dívida é estratosférica. Já houve quem dissesse que o seu pagamento seria impossível. Nessa linha, há quem defenda a anistia ou o perdão da dívida. Gente ligada aos clubes, claro. Mas há, também, deputados ligados à CBF que defendem tal tese. Ora, houvesse alguma dúvida sobre ser ou não o futebol um assunto político e de interesse público, esse argumento dá conta de dissipá-la.

Desde o final da década de 1990, há uma tentativa por parte de alguns agentes públicos de chamar a CBF à sua responsabilidade. O primeiro grande acontecimento, que acabou em nada, foi a chamada CPI da Nike. Um dos principais argumentos utilizados contra a referida CPI foi o de que, por se tratar de uma associação privada, a entidade estaria fora do campo de atribuições de uma investigação parlamentar.

Uma das vozes a sustentar uma tal posição foi a do atual ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso. Em artigo disponível no site do Planalto, Barroso argumenta que “aspectos da vida privada das pessoas, bem como negócios estritamente particulares, não são passíveis de investigação por comissões parlamentares de inquérito, salvo os casos que tenham direta e relevante ligação com o interesse público. Em abono da tese aqui desenvolvida, vale observar que as entidades desportivas e dentre elas, destacadamente, a CBF, encontram-se resguardadas, por duplo fundamento constitucional [artigo 5o., inciso XVIII e artigo 217, I – acrescentei], de qualquer interferência do Estado em sua organização e funcionamento.”

Mas esse é o ponto: diante de tudo o que foi dito, a questão envolvendo o futebol é “estritamente privada”? Não é, nem um pouquinho que seja, um caso que possui “direta e relevante ligação com o interesse público”? Penso que estamos diante de um caso que envolve um interesse social fortíssimo. E não estou dizendo isso porque “o futebol deixa o povo feliz”. Mas porque existem questões políticas e econômicas que interessam a todos e não apenas aos gestores da CBF.

De todo modo, em sede de reformas legislativas, existem projetos de lei tramitando na Câmara dos Deputados que procuram acirrar as coisas quando o assunto é controle da gestão do futebol. Ainda em 2007, foi proposto o PL 1.429, que pretende/pretendia alterar a Lei Pelé para nela acrescentar dispositivo que transformava a seleção brasileira de futebol em parte integrante do patrimônio cultural brasileiro. Uma tal previsão legislativa teria o condão de submeter os atos da CBF ligados à gestão da seleção a controle pelo ministério público. O projeto, entretanto, ainda aguarda parecer da comissão de cultura da câmara dos deputados.

Sem embargo, os projetos que movimentam maiores debates na casa são os PLs 5.201/2013 e 6.753/2013. No caso, o ponto determinante é o saneamento da dívida dos clubes. Pelo que foi mantido no texto até o momento, descarta-se qualquer anistia ou perdão das dívidas dos clubes. O último relatório prevê, todavia, a unificação de todas as dívidas (com o INSS, o Imposto de Renda, o FGTS, a Timemania e o Banco Central) em um montante único e o prazo de 25 anos para o pagamento. O substitutivo aprovado retirou da unificação os débitos com o Banco Central discutidos em processos judiciais ainda sem o trânsito em julgado e com decisão, parcial, a favor do clube.

Contudo, com relação à CBF, as tentativas de enquadrá-la de forma mais efetiva, retrocederam. A intenção de integrar o futebol nacional — e não apenas a seleção brasileira — ao patrimônio cultural imaterial brasileiro foi, ao menos por enquanto, excluída das negociações.

Definir, no campo da política brasileira, o que é publico e o que é privado não é tarefa fácil. Raymundo Faoro, na década de 1950, já chamava a atenção para o seu caráter patrimonialista. Faoro, que era jurista, narrou em um de seus textos a aventura liberal numa ordem patrimonialista. O patrimonialismo representa um estado de confusão entre o público e o privado. Se, até mesmo na política, confundimos as dimensões, imagine no campo lúdico do futebol.

Não se trata, evidentemente, de pregar a “estatização da CBF”. Ou, pior ainda, não se trata de pregar uma estatização da gestão esportiva. Mas, já é passada a hora de criarmos instrumentos de controle institucional das entidades que administram o esporte no Brasil. Em especial a CBF. O fato é que, da forma como está, não dá para ficar. A ausência de mecanismos de controle e de vias institucionais que coíbam eventuais abusos de poder na administração futebolística estimula arbitrariedades e coloca a incompetência à salvo de qualquer remédio.

O debate, portanto, não pode ser aplacado a partir do argumento de que “enquadrar” a CBF representa “estatização” do futebol. A estrutura atual é que, sem pedir licença à ninguém, privatizou o esporte. Entre um extremo e outro, melhor optar pelo caminho do meio.

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