Diário de Classe

O retorno do Você Decide e a ausência
de fundamentação no tribunal do júri

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5 de julho de 2014, 8h00

Spacca
Quem não conhece pode pensar que Você Decide é um programa da grade da TV Justiça. Com um nome desses, provavelmente faria tanto sucesso quanto o campeão de audiência Saber Direito, voltado ao público concurseiro de todo o Brasil. Para quem não era nascido ou já não se lembra, Você Decide foi o primeiro programa de teledramaturgia interativa da Rede Globo. Na verdade, o programa era uma “evolução” de Caso Especial — este do final da década de 70 —, porém com a participação dos telespectadores.

Durante a apresentação do enredo, o público ligava pelo telefone para votar “sim” ou “não” através de um sistema 0800 e, assim, decidir o final da história narrada, que sempre envolvia um dilema de natureza ética, moral ou jurídica. Entre as celebridades que apresentaram o programa, recordamos de Antonio Fagundes, Tony Ramos, Raul Cortez, Renata Ceribelli e Suzana Werner. O programa esteve no ar por nove temporadas, de 1992 até 2000, contabilizando mais de trezentos episódios sobre os mais variados temas: eutanásia, aborto, homossexualidade, traição, machismo, corrupção, relações familiares, Justiça etc. No baú do túnel do tempo, encontrei alguns episódios para fins de ilustração:

1) Em nome do pai (2/6/1993): após fugir da prisão, um perigoso bandido, acusado de latrocínio, volta para a casa, onde é acolhido por sua esposa. O filho, trabalhador e honesto, rejeita tal situação e se vê diante de um impasse. Ao final, o público “decide” se o filho deve ou não delatar seu pai à polícia?

2) O homem errado (15/9/1993): um milionário atropela uma pessoa na estrada e, para escapar da condenação, propõe ao seu motorista resolver seus problemas financeiros caso ele aceite assumir a culpa. Ocorre que um jornalista investiga o crime e descobre a verdade. Então, o jornalista tenta convencer o motorista a denunciar o criminoso. Ao final, o público decide se o motorista deve aceitar o dinheiro ou incriminar o patrão.

3) Possessão (29/9/94): uma bela e rica mulher mata o marido e alega que estava possuída pelo espírito da menina com a qual ele tivera um caso (antes de se abandonada, tornar-se prostituta e terminar assassinada) e buscava sua vingança. Ao final, o público “decide” se a viúva deve ser punida pelo crime.

Pois, então. Toda esta introdução é porque dizem que o programa voltará ao ar. Desta vez, a produção estaria sendo dirigida por Boninho e já se encontraria em fase bastante adiantada. Em breve, portanto, o povo poderá voltar a “decidir” — novamente em rede nacional — os mais diversos e polêmicos casos, tal qual ocorre no tribunal do júri. Com a mesma dramaturgia (dos fatos), simplificação (de questões complexas) e irresponsabilidade (dos julgadores).

Isto porque, como se sabe, os julgamentos no tribunal do júri não são técnicos, uma vez que a “decisão” é tomada por juízes leigos a partir de sua íntima convicção, dispensando qualquer tipo de fundamentação, em nítida afronta à garantia constitucional expressa na Carta de 1988. Trata-se, portanto, de uma “escolha” – operada a partir do mesmo código “sim” ou “não” –, e não de uma decisão.

Nesse sentido, aliás, a exortação que o magistrado faz aos jurados após a formação do conselho de sentença: “Em nome da lei, concito-vos a examinar esta causa com imparcialidade e a proferir a vossa decisão de acordo com a vossa consciência e os ditames da justiça”.

É por isto, aliás, que alguém como Mersault pode resultar condenado por não ter chorado no enterro de sua mãe, como nos conta Camus (clique aqui para assistir).

No fundo, mais uma vez, estamos diante do problema da discricionariedade judicial e, consequentemente, da diferença existente entre os atos de “escolher” e “decidir”. Como já dito em outras colunas, enquanto a primeira depende da subjetividade, isto é, das preferências do sujeito; a segunda se dá na intersubjetividade, uma vez que toda decisão é antecipada por algo, que é a compreensão daquilo que a comunidade política constrói como direito. 

Eis o paradoxo: no programa televisivo, o povo é convidado a “decidir”, mas, na verdade, “escolhe” o final da história, e sua opção não produze qualquer efeito prático; no tribunal do júri, por sua vez, os jurados são convocados a “decidir”, porém aquilo que deveria ser uma decisão se reduz à “escolha” de uma ou outra cédula, sem qualquer justificação, com a agravante de que efeitos são, muitas vezes, irreversíveis. Resta saber: quanta realidade pode se encontrar nas ficções? E quanta ficção pode conformar nossa realidade? 

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