Segunda Leitura

O clima, o aquecimento global e os trajes na Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

9 de fevereiro de 2014, 7h00

Spacca
O aquecimento global ainda causa polêmica na sociedade, muitos dele duvidam. O alerta dos cientistas, difundido na maior parte dos países por Al Gore, no filme Verdade Inconveniente, vem se impondo mais pelas evidências do que pelo estudos científicos. 

Com efeito, além da elevação do nível do mar, que avança  em diversas cidades do litoral brasileiro, o calor asfixiante deste verão convence os mais resistentes. Em Curitiba, a mais fria das capitais de estados, a população enfrenta 35 graus à sombra. O estoque de ventiladores e aparelhos de ar condicionado esgotou-se nas lojas faz tempo.

Diante desta nova realidade não é de admirar-se que alguns Tribunais tenham flexibilizado o uso de paletó e gravata para os advogados. O site Consultor Jurídico relata que o TJ do Rio de Janeiro liberou paletó e gravata de 21 de janeiro a 21 de março. O TJ  e o TRT do Espírito Santo aboliram o uso, exceto nas audiências (1ª instância) e sessões de julgamento nos tribunais. O TJ de São Paulo seguiu esta mesma linha, mas manteve a obrigatoriedade de calça e camisa social para os homens e “trajes adequados e compatíveis com o decoro judicial, para o sexo feminino” (sic).

São iniciativas tímidas, é verdade. Mas são tímidas exatamente porque todos têm dificuldade em saber qual é a melhor solução. Qual o ponto de equilíbrio.

Com efeito, por um lado o traje formal encontra o desafio do calor que aumenta a cada ano. E não é só isto. Os costumes também mudaram.  A sociedade é mais informal, menos hierárquica. Não existem mais roupas para jovens ou idosos, todos se vestem de forma semelhante. 

Do outro lado da moeda está a dificuldade em saber quais os limites do informalismo. E não apenas para advogados, mas sim para todos os que frequentam os Tribunais, seja qual for a instância. Abre-se mão integralmente da forma de vestir? É adequado o juiz presidir uma audiência de camisa polo? O advogado de jeans e sandália? Uma jovem testemunha de “macaquinho”? De bermuda?  Um perito que compareça para prestar esclarecimentos em audiência de camiseta? E se for regata? Sim? Não?

Evidentemente, estamos diante de uma nova realidade social e temos dificuldade em estabelecer o razoável, a conduta que não desprestigie a Justiça  nem seja um ônus pesado para os que frequentam os foros e tribunais. 

A distribuição de Justiça é exercício de poder e, como tal, não pode ser exercido sem a visualização do papel de cada partícipe de seus atos. O melhor  exemplo disto é o uso do martelo pelo juiz norte-americano, forma de impor silêncio no recinto.

As roupas sempre foram formas de definição do papel de cada um na sociedade. Registra o blog Virtual Memories que "os hábitos talares são conhecidos na cultura da orla mediterrânea desde as primeiras cidades-estado que se foram organizando na Mesopotâmia, Egipto, Povo Hebreu, cidades-estado da Hélade (Grécia) e Império Romano”.  

Observa Lígia Marques que “queiramos ou não, a roupa que usamos é uma forma de código que nos identifica, e aos nossos iguais” (Os sete pecados capitais do mundo corporativo, Vozes, p. 94).

O uso de toga pelos juízes surgiu com a monarquia, como forma de demonstrar o poder em detrimento do feudalismo. Antoine Garapon ensina que “o negro da toga, a ausência de cor, simboliza pois a indiferença perante as cores da vida. É sinônimo de abnegação, de privação e de castidade. Remete para uma ideia de força não  despendida, contida e, consequentemente, disponível” ( Bem Julgar. Ensaio sobre o ritual Judiciário, Instituto Piaget, p. 81). 

Na Justiça do Brasil, os costumes variam conforme a região e também a personalidade dos atores judiciários. Regra geral mas não absoluta, juízes, agentes do MP e advogados usam paletó e gravata. Na segunda instância utilizam-se as togas (juízes) e as becas (MP e advogados). Servidores usam trajes menos formais. Partes e testemunhas vestem-se de acordo com os costumes da região.

Em alguns países encontrou-se boa solução para conciliar clima e roupas adequadas. Na América Central, no Caribe e no México usam-se as “guayaberas”, camisas brancas ou de cor clara, mangas compridas e bolsos grandes. Em cerimônias formais nos Tribunais elas são usadas pelas mais altas autoridades, equivalem a um traje de passeio completo. 

Na China, após a Revolução Comunista de 1949, o traje formal passou a ser uma túnica de mangas compridas, gola Mao e abotoada de cima a baixo. 

No Brasil, a única tentativa neste sentido foi de Jânio Quadros, que na presidência da República usava e determinou aos funcionários do Planalto o uso de slacks no verão. Este era um traje usado pelos ingleses na Índia e na África, consistente em calça e camisa de manga curta, de algodão, muito apropriado para clima quente.

Sintetizando, é possível concluir que os trajes formais, ternos escuros, paletó e gravata, já foram abolidos pela sociedade e permanecem apenas nos órgãos do Poder Judiciário, principalmente nos de cúpula, nos Bancos e no mundo corporativo. E mesmo nestes têm os seus dias contados.

Corretas, assim, as medidas tomadas pelo Poder Judiciário dos três estados do Sudeste, inclusive na forma tímida com que foram introduzidas. A cautela aí não significa temor de mudanças, mas sim um primeiro passo, um teste, para que costumes centenários sejam mudados. Desta prática é que sobrevirão alterações mais profundas, que são inevitáveis.

Afinal, a alteração do uso de trajes nos tribunais não é uma simples questão de aumento da temperatura. Este é o dado objetivo, o mais fácil. Mas há outros, subjetivos, muito mais complexos, envolvidos em dados psicológicos que nos são estranhos. 

Finalmente, este é um tema a ser decidido por tribunais estaduais ou regionais, não sendo recomendável uniformização a partir de Brasília, seja por lei nacional, seja por ato do Conselho Nacional de Justiça. Apesar de a globalização estar uniformizando hábitos e pessoas, o Brasil tem um imenso território e ainda persistem diferenças regionais e climáticas. A tentativa do CNJ uniformizar o horário forense em todo o Brasil foi um fracasso.

Novos tempos, novos costumes. Adaptarmo-nos é o caminho certo, a regra de sobrevivência. O desafio é encontrar um ponto comum que concilie interesses diversos. Chegaremos lá.

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