Revirement jurisprudencial

Mudança de entendimento nas Câmaras Empresariais

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28 de outubro de 2013, 12h30

A harmonia dos precedentes judiciais, além de constituir precioso elemento de confiança no Poder Judiciário, tem enorme repercussão na sociedade, porque uma conduta uniforme de julgar confere estabilidade aos conceitos e às relações jurídicas. Não há conspiração maior contra a previsibilidade e a segurança do direito do que as repentinas e inusitadas alterações da jurisprudência!

A respeito deste crucial problema, o Ministro Humberto Gomes de Barros asseverou, em conhecido pronunciamento, que: “O Superior Tribunal de Justiça foi concebido para um escopo especial: orientar a aplicação da lei federal e unificar-lhe a interpretação, em todo o Brasil. Se assim ocorre, é necessário que sua jurisprudência seja observada, para se manter firme e coerente. Assim sempre ocorreu em relação ao Supremo Tribunal Federal, de quem o Superior Tribunal de Justiça é sucessor, nesse mister. Em verdade, o Poder Judiciário mantém sagrado compromisso com a justiça e a segurança. Se deixarmos que nossa jurisprudência varie ao sabor das convicções pessoais, estaremos prestando um desserviço a nossas instituições. Se nós – os integrantes da Corte – não observarmos as decisões que ajudamos a formar, estaremos dando sinal, para que os demais órgãos judiciários façam o mesmo. Estou certo de que, em acontecendo isso, perde sentido a existência de nossa Corte. Melhor será extingui-la” (Corte Especial, Agr. Reg. nos Emb. Div. no REsp. 228.432-RS).

É evidente, no entanto, que, com o passar do tempo, para atender às novas exigências sociais, o direito evolui, assim como os tribunais de qualquer nação livre são instados a superar os precedentes pretorianos. É o que ocorre, por exemplo, nas cortes de justiça do common law (overruled) e naquelas de civil law (revirement, em França).

Surge, nestas inexoráveis hipóteses, um problema seríssimo, que atinge, de perto, os jurisdicionados em geral e os advogados em particular. Na maioria das vezes, quem litiga em juízo tem prévio conhecimento de suas chances a partir das regras jurídicas e da estabilidade da jurisprudência. O advogado, a seu turno, implementa os possíveis mecanismos de tutela jurisdicional quase sempre pautado pela aceitação de determinadas teses ditadas pelos tribunais. Ao longo do tempo, alterada a orientação pretoriana, modifica-se a estratégia.

Todavia, em determinadas circunstâncias, nova diretriz é introduzida no ordenamento jurídico ou na prática forense. É por esta razão que quase sempre a lei superveniente prevê um período de vacatio legis, para que todos tenham conhecimento de como, no futuro, deverá ser interpretado e aplicado o direito. Ademais, no âmbito do controle direto de constitucionalidade, o art. 27 da Lei 9.868/99 disciplina regra providencial, tendente a modular a eficácia pretérita da declaração de inconstitucionalidade. Ficam, portanto, preservadas situações jurídicas já consolidadas, em benefício da segurança jurídica.

Não obstante, quando a jurisprudência muda, de forma abrupta, determinado entendimento no âmbito do processo, não vêm respeitados, via de regra, os atos processuais já consumados, pouco importando o direito substancial do litigante. Rompe-se aí o pacto social de confiança entre o jurisdicionado e o Poder Judiciário!

Foi exatamente essa situação que se verificou na última sessão do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, ocorrida no dia 24 de outubro. Explico-me: tradicionalmente, depois da alteração do disposto no artigo 527, inciso III, e parágrafo único, do CPC, o posicionamento predominante – praticamente unânime – na Corte de Justiça paulista, preconiza ser incabível agravo interno ou regimental contra decisão monocrática de relator (v., e. g., Ag. Reg. n. 2019552-63.2013.8.26.0000; Ag. Reg. n. 0169134-74.2013.8.26.0000 – ambos com referência a inúmeros precedentes). Assim, como sucede em vários casos, diante de uma quebra decretada em 1º grau, após a interposição do agravo de instrumento, cujo efeito suspensivo não é liminarmente concedido, a parte e, em especial, o seu advogado não têm outra opção, senão a impetração anômala de mandado de segurança, nos velhos moldes, visando a conseguir o desejado efeito suspensivo. E tal praxe, de fato, tem ocorrido com reiterada frequência.

Agora, contudo, em pronunciamento feito na indigitada sessão de julgamento do Grupo de Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, alguns desembargadores se manifestaram, coram populo, no sentido de passar a admitir agravo regimental contra provimento monocrático de relator. O seu ilustre presidente, desembargador Pereira Calças, conclamou os advogados presentes – e eram muitos – a difundir a novel orientação. O eminente desembargador Ênio Zuliani, ao fundamentar o seu ponto de vista convergente, valeu-se de significativo argumento, qual seja a postergação da garantia do juiz natural, uma vez que o mandado de segurança retira do controle do relator sorteado e da própria turma julgadora originária a cognição e julgamento da questão. Tal entendimento, salvo engano, foi expressamente secundado pelos ilustres desembargadores Teixeira Leite e Ricardo Negrão. O eminente desembargador José Reynaldo, com a sua experiência de advogado aguerrido, asseverou que, embora se curvasse à maioria de seus pares, diante da postura do TJ-SP de inadmitir o agravo regimental, louvava a estratégia dos advogados de recorrer ao mandado de segurança.

A partir de hoje, portanto, ao menos nos domínios das duas Câmaras Reservadas de Direito Empresarial, é cabível agravo regimental contra decisão de relator.

Observo, no entanto, com o devido respeito, que o Colendo Grupo, ao alterar aquele posicionamento, não se deu conta de que, assim como se verificou naquela sessão de julgamento, há, neste momento, norteados pela anterior orientação, inúmeros mandados de segurança em processamento, impetrados antes do indigitado revirement. Estes, certamente, não serão conhecidos ou serão denegados, sendo inequívoco que os interessados não puderam interpor agravo regimental!

Ora, abordando este mesmo problema, Frederick Schauer, consagrado professor de filosofia do direito de Harvard, atualmente ensinando na Universidade de Virgínia, escreveu um importante livro intitulado Playing by the Rules (trad. livre Jogando sob as regras), para afirmar que não é admissível mudar as regras quando o jogo já tiver iniciado, exatamente para não prejudicar quem entrou em campo. Nestas hipóteses, o ato processual praticado sob a vigência do anterior posicionamento não pode ser regido pelo novo entendimento.

Ademais, segundo a dogmática que informa a atual ciência processual, nestes casos, deveria conferir-se maior valor ao direito da parte do que ao formalismo processual. Diante, pois, do decantado princípio da instrumentalidade do processo, penso que os mandados de segurança já impetrados, a preservar as situações substanciais em jogo, poderiam ser recebidos a processamento como agravos regimentais, com todos os ajustes formais exigidos, tudo em prol da segurança jurídica e do prestígio da Justiça.

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