Observatório Constitucional

Narrativa histórica e autoridade constitucional

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23 de novembro de 2013, 7h00

Spacca
Nesse momento em que celebramos os 25 anos da Constituição brasileira[1], em meio a todos os eventos em que recontamos histórias sobre a sua promulgação e discutimos seus sucessos e insucessos, é importante ter em mente que por trás da crença na autoridade constitucional há sempre uma história[2]. Há sempre uma narrativa que justifica a legitimidade da supremacia da Constituição sobre as decisões tomadas ordinariamente por maiorias legislativas. Há, enfim, um mito fundacional que sustenta toda uma ordem constitucional.

A relevância desse debate se reflete muitas vezes na ausência de um consenso sobre qual a narrativa mais adequada. Por vezes a narrativa prevalente no momento de fundação é capaz de se sustentar inabalada independentemente do passar do tempo. Por outras, em um mesmo sistema constitucional períodos de consenso são sucessivamente substituídos por períodos de dissenso — alternando-se assim, com o decorrer do tempo, diferentes narrativas dominantes sobre a origem e natureza da ordem constitucional.

No caso brasileiro é possível identificar facilmente pelo menos cinco narrativas diferentes que vêm lutando, no decorrer desses 25 anos, por predominância cultural. Algumas delas foram mais fortes em períodos específicos, outras tiveram particular predominância em meio a certos segmentos da população. Mesmo hoje, em clima geral de merecida celebração da estabilidade institucional conquistada, em que naturalmente prevalecem narrativas positivas sobre a fundação da nossa ordem constitucional, ainda há diferentes versões dessa história lutando por predomínio.

Enquanto fundamentação da autoridade constitucional, cada uma dessas narrativas se materializa nos debates públicos sobre interpretação da Constituição, se relacionando diretamente com discussões sobre as funções e limites do controle de constitucionalidade. Cada uma, apresenta de uma determinada maneira a relação entre Constituição e cidadão, resolvendo a suposta tensão entre constitucionalismo e democracia diferentemente e compreendendo diversamente o projeto de interpretação constitucional.

De tal forma, durante o período da convocação e funcionamento da Assembleia Constituinte lutava por supremacia uma versão que sustentava a natureza derivada do poder constituinte, o qual, tendo sido convocado por meio de uma emenda à Constituição anterior[3], seria por ela limitada. Esse “mito legalista”, por reforçar o respeito ao procedimento legislativo formal, é um mito fundacional apenas no sentido em que nega a própria natureza fundacional da Constituição — sustentando uma narrativa de continuidade, e não de fundação de um nova ordem.

Por sua vez, após a promulgação da Constituição, lutava por supremacia uma narrativa que menosprezava o trabalho da Constituinte. Este “mito de menosprezo” descrevia tal momento como uma oportunidade frustrada, se diferenciando do “mito legalista” por acreditar na existência de um poder constituinte originário que poderia ter dado origem a uma ordem constitucional substancialmente nova, mas se aproximando desse mesmo mito ao também negar a natureza substantivamente fundacional da Constituição.

Cada um desses dois mitos se sustentava na narrativa construída a partir de agentes políticos contemporâneos que se situavam em espectros opostos do debate constituinte. Assim, o primeiro é um produto do esforço de um determinado seguimento em limitar o poder da Assembleia Constituinte durante o seu funcionamento, enquanto o segundo é um produto da frustração de outro seguimento social com uma Constituição considerada pouco transformadora. No entanto, ambos foram capazes de sobreviver para além dos debates específicos que os contextualizam.

Entre esses dois mitos de fundação, situa-se um terceiro, o qual enfatiza a natureza negociada do texto constitucional. Em vez de se focar em limites formais ao potencial transformador da Constituinte — como o primeiro —, ou de negar o aspecto substancialmente transformador da Constituição — como o segundo —, este terceiro mito enfatiza o caráter de “acordo possível” do texto constitucional.

A Constituição seria, assim, o produto de uma luta entre diferentes segmentos sociais representados na Constituinte, os quais teriam sido capazes de vetar reciprocamente demandas uns dos outros, mas também teriam conseguido conquistar certo espaço no produto final da Constituinte.

Tal narrativa não nega o caráter fundacional da Constituição, mas nega a existência de um poder constituinte soberano unívoco. A Constituição seria, assim, um reflexo do Brasil, um produto das lutas entre os diferentes segmentos sociais existentes na nossa sociedade e, portanto, um documento marcado pelas mesmas contradições nela existentes. Em vez de por fim a essa luta, esse documento canalizaria a disputa política, que após sua promulgação se daria em três diferentes frentes:

(i) em torno das leis ordinárias e complementares necessárias para regular os dispositivos constitucionais; (ii) em torno da interpretação das normas constitucionais (seus termos e os aparentes conflitos entre diferentes dispositivos); e (iii) em torno de propostas de emendas constitucionais, onde esses mesmos segmentos (bem como outros) lutariam mais uma vez pela representação de seus interesses no texto constitucional.

Uma quarta narrativa descreve Constituição com um produto de uma manifestação concreta da soberania popular. Esse mito de fundação localiza na excepcional mobilização popular do período — concretizada em grandes manifestações populares, resultados eleitorais e na opinião pública — o fundamento de legitimidade da autoridade constitucional. Haveria assim uma diferença substancial entre as maiorias políticas que geraram a Constituição de 1988 e outras maiorias subseqüentes que legitimaria a supremacia das decisões tomadas nesse período.

Esse mito embasa uma leitura da Constituição, não como o produto de um permanente conflito social, mas como um documento em que contradições da sociedade brasileira foram equacionadas. Assim, a interpretação constitucional seria, não o terreno em que esse conflito permanente se manifesta mais uma vez, mas aquele em que se busca compreender as soluções alcançadas pela manifestação soberana da vontade popular.

Por fim (nessa representação não-exaustiva), uma quinta narrativa enfatiza a maneira como a Constituição se insere no contexto transnacional. Assim, mais do que as peculiaridades do processo político nacional que levou a sua promulgação, o que interessa é a sua semelhança com diversas outras constituições promulgadas no período após o fim da Segunda Guerra Mundial, inserindo-a em um movimento transnacional.

A Constituição brasileira seria mais uma manifestação concreta do desse novo constitucionalismo, caracterizado por constituições rígidas, declarações de direitos fundamentais e controle de constitucionalidade de leis[4].

Segundo tal narrativa, a Constituição é produto de um movimento internacional caracterizado pela valorização da proteção dos direitos humanos — também representados em declarações e tratados internacionais — e pela opção pelo controle de constitucionalidade como mecanismo institucional inerente a democracias contemporâneas. Há, assim, para além da visão da Constituição como o produto de um movimento democrático, a visão da Constituição como representação de uma visão substantiva de democracia.

Essas duas últimas narrativas se assemelham no tom de celebração das conquistas constitucionais, valorizando o momento de fundação como uma etapa transformativa. No entanto, há em uma a preocupação com a particularidade de uma manifestação da soberania popular, e na outra a preocupação com o caráter universal do movimento de que a Constituição é um produto.

Cada uma dessas narrativas se apega a certos fatos históricos e a certos aspectos do desenho institucional da ordem constitucional brasileira para embasar sua reivindicação por supremacia. Mas, para além desses elementos estáticos, é a sua presença nos argumentos justificadores e nas práticas institucionais que determina a predominância de uma ou outra no imaginário popular.

Engana-se quem imagina que tal discussão seja meramente histórica ou teórica. Por todo exercício de poder em uma sociedade democrática exigir um discurso legitimador, cada uma dessas narrativas afeta significativamente a própria autoridade constitucional.

Um exemplo prático dessa conexão pode ser encontrado na relação entre cada uma dessas narrativas e a identificação de uma função para o poder de controle de constitucionalidade. Assim, conforme cada uma dessas narrativas, caberia ao controle de constitucionalidade funções substancialmente diferentes:

Uma narrativa que menospreza a própria fundação é incapaz de justificar a legitimidade de uma maioria pretérita se impor a uma maioria futura.

Já uma narrativa que enfatiza o legalismo da fundação constitucional se compatibiliza com um discurso valorizador do tecnicismo e do formalismo no exercício do controle de constitucionalidade.

Por sua vez, uma narrativa que destaca o caráter negociado do texto constitucional justificaria o exercício dessa função com o objetivo de preservar ou, sendo o caso, revisar esses acordos fundamentais.

Enquanto isso, uma narrativa que sustenta o fundamento da autoridade constitucional em uma manifestação excepcional da soberania constitucional se conecta à ideia de que caberia ao controle de constitucionalidade proteger essa vontade política privilegiada e verificar situações posteriores em que ela tenha manifestado novamente — transformando mais uma vez a ordem constitucional.

Contrariamente, no caso de uma narrativa universalizante, não é a supremacia da vontade popular, mas um movimento transnacional em defesa de direitos humanos e de uma visão substantiva de democracia que embasa o exercício do controle de constitucionalidade, por meio do qual tais valores se concretizariam ao serem aplicados há situações concretas.

Em meio aos embates sobre a correta interpretação da Constituição, conforme diferentes agentes públicos e cidadãos privilegiam uma ou outra dessas narrativas, imagens legitimadoras da autoridade e da natureza do vínculo constitucional são construídas, questionadas, reconstruídas ou reforçadas. Em tal dinâmica, macro-narrativas servem para justificar decisões particulares, e decisões particulares, tomadas muitas vezes sem uma discussão consciente de sua relação com tais macro-narrativas, servem também para posteriormente justificar a sua superioridade.

Nesse processo, discussões sobre história constitucional podem ser mais do que meros debates técnicos entre historiadores — ou juristas metidos a historiadores. Nesses casos, o que está em jogo é o próprio fundamento da autoridade constitucional e, com isso, os seus limites específicos, bem como a natureza do poder de controle de constitucionalidade das leis.

Em exemplo particularmente próximo, a relevância concreta de diferentes narrativas históricas sobre a fundação de nossa ordem constitucional foi demonstrada nos debates sobre propostas de reforma constitucional apresentadas em resposta às recentes manifestações populares. É possível encontrar diferentes mitos fundadores embasando opiniões distintas sobre a possibilidade de se realizar plebiscito convocatório de uma constituinte exclusiva para reforma política; sobre a necessidade e possibilidade de se realizar plebiscitos ou referendos sobre esse tópico; e sobre os limites do poder reformador por meio de emendas constitucionais.

Quanto a isso, não cabe aqui (re)discutir substantivamente tais propostas e os argumentos apresentados contra ou em seu favor, cabe, no entanto, chamar atenção para a maneira como o poder desses diferentes mitos sobre a origem de nossa ordem constitucional foi utilizado de forma eficiente para argumentar em ou outro sentido e, consequentemente, para a relevância e atualidade dessa discussão.


[1] Completados mês passado no dia 5 de outubro de 2013.
[2] Jack M. Balkin. Constitutional Redemption: Political Faith in an Unjust World. Cambridge: Harvard University Press, 2011, p. 2.
[3] Emenda Constitucional 26, de 27 de novembro de 1985.
[4] De 194 países em um recente banco de dados compilado por Alec Stone Sweet e Cristina Andersen, 190 têm constituições escritas, das quais 183 possuem uma declaração de direitos. De 114 constituições escritas desde 1985 (sendo que nem todas duraram), há informação confiável em relação há 106, todas contendo uma declaração de direitos, e 101 prevêem controle de constitucionalidade por uma suprema corte ou uma corte constitucional. Cf. Alec Stone Sweet; Jud Mathews. “Proportionality Balancing and Global Constitutionalism”. In: Columbia Journal of Transnational Law, v. 47, 2009, p. 84.

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