Observatório Constitucional

Questões federativas ainda continuam sem resposta

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16 de novembro de 2013, 9h43

Determinadas questões constitucionais respeitantes à forma federativa de Estado – doravante denominadas simplesmente questões federativas – são facilmente resolvidas tão logo o intérprete coloque-se a procurar-lhes uma resposta no texto da Constituição Federal, tendo em vista que para essas questões o constituinte dedicou um conjunto de preceitos relativamente claros.

Nesse sentido, constituem questões de fácil definição saber: (a) quantos Senadores cada Estado pode eleger por legislatura (art. 46, § 2º, CF); (b) o que acontece com a lei estadual contrária à lei federal superveniente em matéria de legislação concorrente (art. 24, § 4º, CF); (c) se a União pode intervir em Municípios localizados em área de fronteira (art. 35, caput, CF); (d) se o Distrito Federal pode dividir-se em Municípios (art. 32, caput, CF); ou (e) se as leis e atos normativos estaduais podem ser objeto de ação declaratória de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal (art. 102, I, “a”, CF). Para todas essas questões, a Constituição Federal dá plena condição para que o intérprete localize facilmente uma resposta, vez que esta se encontra não apenas expressa, mas também de maneira muito clara no texto constitucional.

Por conta disso, todas essas questões federativas, na medida em que constituem problemas de fácil resposta perante o texto constitucional, podem ser consideradas como sendo “casos fáceis”.

Por outro lado, questões há para as quais a Constituição não oferece qualquer resposta ou, ao menos, não a oferece de maneira clara, embora haja a sensação de que devesse fazê-lo. São exemplos de questões dessa natureza saber: (a) se os Estados-membros podem adotar o instituto da reclamação constitucional; (b) se a União pode isentar tributos dos outros entes federativos quando fizer as vezes de República Federativa do Brasil; (c) se o Distrito Federal deve ser tratado como Estado ou como Município em determinadas questões; (d) se os Municípios podem estabelecer novos direitos fundamentais em sua Lei Orgânica; ou (e) se a União, ao intervir no Distrito Federal, pode fazer as vezes de legislador local.

Tais modalidades de questão, embora sejam relevantes do ponto de vista de uma regulação constitucional, não encontram resposta precisa no texto da Constituição, razão pela qual constumam ser consideradas como típicos “casos difíceis”.

Quando uma determinada questão federativa constitui um “caso difícil”, é cabível considerá-la uma questão federativa sem solução constitucional evidente. E com essa expressão pretende-se abarcar seja os casos afetados pela indeterminabilidade horizontal da Constituição (que dão origem a lacunas normativas), seja os casos afetados pela sua indeterminabilidade vertical (que dão origem a lacunas de indeterminação), uma vez que ambas as categorias, sem distinção, caracterizam-se por serem casos de difícil resolução (os chamados hard cases).

Conforme uma distinção corrente, há situações às quais uma norma seguramente se aplica, ou seja, é pacífico que tais situações recaiam no campo de aplicação da norma, razão pela qual comumente se diz que tais hipóteses dão lugar a “casos fáceis”. Inversamente, existem situações em relação às quais a aplicabilidade de uma certa norma é deveras duvidosa ou controversa, isto é, não se sabe ao certo se tais situações encontram-se no campo de aplicabilidade da norma, razão por que é frequente se afirmar que tais hipoteses dão lugar a “casos difíceis”.[1]

Esmiuçando essas noções, Lorenzetti considera que um caso é fácil quando “não há nenhum inconveniente com a decisão judicial que não possa ser resolvido mediante a aplicação da lei e do método dedutivo”. Por outro lado, o mesmo autor caracteriza os “casos difíceis” como “aqueles em que se detectam dificuldades no elemento normativo (determinação da norma aplicável, interpretação) ou no fático (prova dos fatos) ou na dedução (qualificação)”.[2]

Pelas suas características, situações envolvendo “casos difíceis” demandam decisões (acerca do significado normativo a ser aplicado ao caso em questão) que exigem justificação, devendo, pois, ser devidamente argumentadas.[3]

Com isso em conta, pode-se dizer que uma questão federativa sem solução constitucional evidente é uma questão jurídica que, por envolver um debate sobre a forma federativa, situa-se no âmbito do Direito constitucional, onde não encontra, considerando-se o conjundo conhecido de suas normas, uma solução clara ou evidente.

É inegável que ainda caibam muitas coisas nesse conceito. A despeito disso, a delimitação desse universo já representa um primeiro esforço de demarcação dessas situações, que, certamente, necessita ser aprofundado. Por ora, basta que sejam apontadas situações relacionadas à forma de Estado estampada na Constituição Federal brasileira as quais de maneira inequívoca possam ser consideradas questões federativas sem solução constitucional evidente. Não seria preciso dizer que muitas dessas situações traduzem alguma forma de lacuna.

Uma primeira dificuldade encontra-se logo no artigo inaugural da Constituição de 1988. Ao se afirmar que “[a] República Federativa do Brasil [é] formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal” (art. 1º, CF), é possível que, com a mera leitura desse texto, não se saiba exatamente o lugar do ente federativo central – a União – dentro da estrutura federal brasileira. É certo que um pouco mais adiante se deixa claro que “[a] organização político-administrativa da República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos” (art. 18, CF). Não obstante, nem por isso já é possível concluir daí que a União constitua a própria República Federativa do Brasil, ou se já é um organismo diferente e inferior a esta. Como é notório, a resposta a essa questão é fundamental para se saber tratar-se o Estado federal brasileiro de um modelo de três (União, Estados e Municípios, sendo União o mesmo que República Federativa) ou de quatro níveis (todos aqueles e mais a República Federativa, sendo esta algo diferente da União). Na primeira hipótese (União = República Federativa), as determinantes constitucionais impostas à União no âmbito nacional condicionariam também a atuação da República Federativa no âmbito externo.[4] Já na segunda hipótese (União ≠ República Federativa), não existiria esse condicionamento.[5]

Questão que ainda não foi suficientemente discutida no Brasil, mas que afeta o debate acerca dos direitos fundamentais em outros países, é se as Constituições Estaduais poderiam disciplinar e, mais do que isto, inovar em matéria de direitos fundamentais. Embora muitas o tenham feito, não se encontra uma resposta constitucional evidente para essa questão.

Difíceis também são os casos envolvendo a cláusula constitucional dos poderes remanescentes. Quando o texto constitucional estabelece que “[s]ão reservadas aos Estados as competências que não lhes sejam vedadas por esta Constituição” (art. 25, § 1º, CF), é possível extrair daí ao menos duas interpretações diferentes. Por um lado, pode-se considerar que todas as “matérias” sobre as quais não recaia qualquer vedação podem ser objeto da atuação estadual autônoma; nesse primeiro sentido, poder remanescente significa um conjunto de assuntos que, por não estarem reservados a qualquer outra esfera de competência (nem pública, nem privada), estão à livre disposição dos Estados, respeitados os limites constitucionais pertinentes ao seu exercício. Por outro lado, conforme aquele mesmo texto, também é possível dizer que todas as “possibilidades” de atuação criativa, qualquer que seja o assunto ou a matéria de competência estadual, estão permitidas aos Estados desde que não estejam de algum modo vedadas; nesse segundo sentido, poder remanescente significa um conjunto de poderes de livre exercício por parte dos Estados, respeitados os limites constitucionais correspondentes.

Também no âmbito da repartição de competências não há um consenso acerca do que se deve entender por normas gerais no âmbito da chamada competência concorrente. Nesse sentido, doutrina e jurisprudência variam entre considerar “normas gerais” num sentido objetivo ou num sentido subjetivo. No primeiro caso, a expressão “normas gerais” equivale ao grau de abstração dessas normas, que seriam tomadas, assim, como normas sobre princípios. Num segundo sentido, a mesma expressão “normas gerais” coincidiria com “normas genéricas”, no sentido de normas aplicáveis a todos, independente do seu índice de abstratividade.

Atrelada ao problema anterior, a questão de saber os limites da “competência suplementar” dependerá daquilo que se estabelecer quanto ao significado de normas gerais. Se estas forem apenas normas de princípios, então a competência suplementar versará sobre “questões específicas” – que, por sua vez, é outro termo difícil de se conceituar –, havendo assim de antemão uma estanque, muito embora nem um pouco nítida, linha divisória entre a competência federal para normas gerais e estadual para normas específicas. Se, por outro lado, normas gerais forem normas aplicáveis a todos os entes federativos independentemente do grau de abstração delas, então o poder suplementar não passa de uma competência sobre aquilo que sobejar da disciplina estabelecida em lei federal sobre normas gerais, e desde que jamais contrarie a linha divisória estabelecida nestas.

Outra questão de difícil resposta diz respeito à possibilidade de intervenção do Estado-membro em Municípios localizados em seu território, na hipótese de violação por parte destes dos “princípios indicados na Constituição Estadual” (art. 35, IV, CF). Quantos e quais seriam esses princípios, bem como se os Estados são livres para determiná-los, são questões que não encontram resposta expressa ou clara no texto constitucional. E por não haver essa resposta é que o tema gera perplexidade, ante o risco de, a cada Constituição Estadual, variar o nível de comprometimento da autonomia municipal[6] em razão da quantidade (maior ou menor, a depender do respectivo Estado) desses princípios.

A Constituição Federal também nada diz acerca dos efeitos (erga omnes? inter partes? vinculante?) das decisões proferidas pelos Tribunais de Justiça em ação direta de inconstitucionalidade em face da Constituição Estadual (art. 125, § 2º, CF). Tal silêncio deixa em aberto uma série de questões relevantes, tais como (a) a força dessas decisões sobre o próprio Supremo Tribunal Federal, (b) o cabimento de reclamação perante as Cortes locais por descumprimento dos respectivos julgados em ações diretas, (c) os efeitos do recurso extraordinário contra essas decisões e (d) a consequente necessidade ou não de encaminhamento da decisão no recurso extremo ao Senado Federal para suspensão da lei ou ato normativo declarado eventualmente declarado inconstitucional.

Para não seguir mais longe, mencionem-se ainda estas duas últimas questões: Qual seria, segundo a Constituição Federal, o sistema eleitoral aplicável aos vereadores? Quantos e quais são, para efeitos de limitação da autonomia dos Estados, os “princípios desta Constituição”?

Esse breve inventário visa a demonstrar que importantes questões relativas à forma federativa de Estado, além de não receberem um tratamento constitucional claro e específico, ainda continuam sem resolução no Direito constitucional pátrio. Isso faz reacender o debate em torno do Estado federal no Brasil, que, ao menos na perspectiva do Direito, continua seriamente carecido de reflexão e de novas abordagens.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Clique aqui para acessar o portal do OJC.


* Doutor em Direito do Estado pela USP.

[1] Riccardo Guastini, Le fonti del diritto e l’interpretazione, Milano: Giuffrè, 1993, p. 326-7.

[2] Luis Ricardo Lorenzetti, Teoria da decisão judicial: fundamentos de direito, tradução de Bruno Miragem, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 158.

[3] Riccardo Guastini, Le fonti del diritto…, cit., p. 327.

[4] Sendo assim, em matéria tributária, por exemplo, também a República Federativa estaria submetida à seguinte cláusula vedatória da Constituição Federal: “Art. 151. É vedado à União: III – instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios”.

[5] Após reconhecer a distinção entre União e República Federativa, o Supremo Tribunal Federal finalmente concluiu: “O âmbito de aplicação do art. 151, da CF, em todos os seus incisos, é o das relações das entidades federadas, entre si. Não tem por objeto a União Federal [sic] quando esta se apresenta como a República Federativa do Brasil, na ordem externa” (ADI 1600, Rel. p/ o acórdão Min. Nelson Jobim, Tribunal Pleno, Ementário n. 2115-9, j. 26/11/2001, p. 1854). O mesmo entendimento, exposto de forma mais contundente, pode ser encontrado também no RE 543943-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, j. 30.11.2010, Ementário n. 2464-02, p. 469.

[6] A autonomia municipal mesmo, um princípio de observância obrigatória pelos Estados, sob pena de intervenção federal (art. 34, VII, “c”, CF)

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