Observatório Constitucional

Limites da interpretação conforme a Constituição no STF

Autor

  • Marina Corrêa Xavier

    é mestre em Direito Constitucional pela USP membro do conselho editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional e coordenadora da assessoria em matéria constitucional do procurador-geral da República.

18 de maio de 2013, 8h00

Historicamente, o Supremo Tribunal Federal tem reconhecido tanto o sentido literal quanto a vontade do legislador como limites à utilização da interpretação conforme a Constituição. Nesse sentido, no julgamento da Representação 1.417, o Plenário optou por não aplicar a técnica, sob pena de atuar como legislador positivo ao ultrapassar o sentido literal do texto normativo e a vontade hipotética do legislador. Naquela oportunidade, afirmou-se que, “se a única interpretação possível para compatibilizar a norma com a Constituição contrariar o sentido inequívoco que o Poder Legislativo lhe pretendeu dar, não se pode aplicar o princípio da interpretação conforme a Constituição, que implicaria, em verdade, criação de norma jurídica, o que é privativo do legislador positivo”[1].

Não por coincidência, a postura restritiva, cautelosa, adotada pela Corte em um primeiro momento, é verificada também em outro julgamento da relatoria do ministro Moreira Alves. Na ementa da Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI-MC) 1.344, consignou-se a “impossibilidade, na espécie, de se dar interpretação conforme a Constituição, pois essa técnica só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como sucede no caso presente”[2].

Com o passar do tempo, a postura adotada inicialmente foi, aos poucos, sendo relativizada. É difícil apontar as razões que levaram à mudança, mas nota-se uma contemporaneidade com a assunção, pela Corte, de um papel mais ativista no cenário político brasileiro.

Assim, adentrando-se brevemente aqui no perigoso campo das suposições, verificam-se na jurisprudência do Tribunal controvérsias em que a “Corte Moreira Alves”[3] provavelmente afastaria a aplicação da interpretação conforme e que foram solucionadas justamente com base nesse mecanismo.

É o que se infere, por exemplo, do julgamento da ADI 1.194[4], dirigida contra diversos dispositivos do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil, entre eles os artigos 21 e 24, parágrafo 3º, assim redigidos:

“Art. 21. Nas causas em que for parte o empregador, ou pessoa por este representada, os honorários de sucumbência são devidos aos advogados empregados. Parágrafo único. Os honorários de sucumbência, percebidos por advogado empregado de sociedade de advogados são partilhados entre ele e a empregadora, na forma estabelecida em acordo”

“Art. 24. (…) § 3º. É nula qualquer disposição, cláusula, regulamento ou convenção individual ou coletiva que retire do advogado o direito ao recebimento dos honorários de sucumbência”

Na decisão proferida, o Supremo Tribunal Federal adicionou ao artigo 21 exceção inexistente ao fixar-lhe interpretação conforme no sentido de que a disposição “deve ser entendida com a ressalva de que é possível haver disposição contratual em contrário, ou seguida da expressão salvo disposição contratual em sentido contrário” (folha 14 do voto do relator). Incluiu-se implicitamente na disposição a norma segundo a qual “o advogado da parte vencedora poderá negociar a verba honorária da sucumbência com seu constituinte”.

A norma criada pela Corte derivaria, em tese, do disposto no artigo 5º, inciso II, da Constituição, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Ocorre que é a própria lei que limita, no caso, o acordo entre empregador e advogado empregado acerca dos honorários sucumbenciais.

Vê-se, assim, que, calcada no princípio infraconstitucional da autonomia da liberdade contratual, a decisão implicou a criação de norma implícita em sentido amplo, contrária à disposição da qual supostamente derivada e, também, ao disposto no artigo 24, parágrafo 3º, o qual, por essa razão, teve declarada a sua inconstitucionalidade.

No mesmo sentido, há também a decisão proferida na ADI-MC 4.389, em que a interpretação conforme serviu como mecanismo para criação de norma contrária ao parâmetro constitucional e às disposições interpretadas.

Eram contestados, no caso, o artigo 1º, caput e parágrafo 2º da LC 116/2003 e o subitem 13.05 da lista de serviços do ISS. Na ocasião, a partir do disposto nos artigos 155, inciso II, e 156, inciso III, da Constituição, a Corte conferiu aos dispositivos questionados interpretação conforme para “reconhecer que o ISS não incide sobre operações de industrialização por encomenda de embalagens, destinadas à integração ou utilização direta em processo subsequente de industrialização ou de circulação de mercadoria. Presentes os requisitos constitucionais e legais, incidirá o ICMS”.

Ao assim proceder, o STF criou norma segundo a qual, ainda que se trate de serviço constante da Lista do ISS, sobre a impressão gráfica, quando realizada em embalagens vendidas por encomenda que se destinem a armazenar mercadorias que serão colocadas em circulação, incide o ICMS e não o ISS.

Ocorre que a norma criada não pode ser extraída nem dos preceitos constitucionais utilizados como parâmetro nem das disposições objeto da ação direta, inclusive por contrariá-los. Explica-se. A Constituição é clara ao atribuir aos municípios a instituição do Imposto Sobre Serviços de qualquer natureza, desde que (a) não compreendidos no artigo 155, inciso II, e (b) definidos em lei complementar. Em relação ao ponto (a), o artigo 155, inciso II, refere-se apenas aos serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação. Quanto ao ponto (b), a União editou a Lei Complementar 116/2003, que lista os serviços sujeitos ao ISS, e entre eles está a composição gráfica.

A Constituição define, ainda, em seu artigo 146, inciso I, que cabe a Lei Complementar dispor sobre conflitos de competência, em matéria tributária, entre os entes federados. Em cumprimento ao preceito, a LC 116/2003 dispõe em seu artigo 1º, parágrafo 2º, que, para evitar conflitos, os serviços constantes da lista, salvo exceções expressas, não se sujeitam ao ICMS, ainda que sua prestação envolva fornecimento de mercadorias. É justamente esse o caso da impressão gráfica em embalagens produzidas sob encomenda para posterior comercialização de outros produtos. Vê-se, portanto, que o novo comando cria hipótese de incidência do ICMS e afasta a incidência do ISS.

Esses exemplos apontam, mais uma vez, o caráter fluido e subjetivo dos limites à interpretação conforme. A análise dos precedentes da Suprema Corte mostra que, com o passar do tempo, talvez por influência das muitas mudanças na sua composição nas últimas duas décadas, ainda que tenham sido mantidos os mesmos limites ao instituto, verifica-se uma jurisprudência bastante contraditória sobre o tema.

O próprio cabimento da interpretação conforme enquanto pedido formulado em ação direta já foi objeto de debate na Corte, por ocasião da ADI 3.026 (relator ministro Eros Grau, Diário da Justiça de 29 de setembro de 2006). No caso, o Procurador-Geral da República pedia fosse dada interpretação conforme ao artigo 37, inciso II, da Constituição ao caput do artigo 79 da Lei 8.906/1994, no sentido de entender-se cabível a exigência de concurso público para admissão dos contratados sob o regime trabalhista pela OAB. O dispositivo então impugnado está assim redigido: “aos servidores da OAB, aplica-se o regime trabalhista”.

Nos debates travados, o Plenário estabeleceu a existência de ambiguidade como pressuposto necessário ao cabimento do pedido de interpretação conforme. Ainda que se abandone momentaneamente a premissa de que toda disposição admite várias interpretações, não se pode deixar de observar que a verificação da satisfação de tal requisito confunde-se com a identificação dos limites de aplicação da técnica.

Ao examinar a disposição impugnada a fim de constatar a existência, ou não, de ambiguidade, a Corte necessariamente procede à sua interpretação, extraindo-lhe o(s) significado(s) possível(is) a partir dos vários elementos do processo interpretativo. Delineia, assim, a moldura dentro da qual o intérprete há de se manter para que a interpretação conforme não adquira contornos de revisão ou integração normativa.

Ressalte-se que a identificação de todos os significados possíveis de um preceito legal é uma tarefa inviável. Portanto, a moldura a que se alude é construída e aperfeiçoada pelo intérprete — no caso o Supremo Tribunal Federal — a todo momento, à medida que se desenvolve o processo de interpretação.

Na ADI 3.026, o relator, ministro Eros Grau, a partir de uma interpretação sistemática do dispositivo, focada no caráter autônomo e independente da OAB e em suas finalidades constitucionais, considerou inadmissível o sentido proposto pelo requerente e rejeitou o pedido. Destacou o aparente sentido unívoco da disposição, razão pela qual não haveria, “no caso, como se apontar uma entre várias interpretações que constitucionalmente possa ser considerada apropriada. Aqui não há mais de uma interpretação possível, mais de uma norma a ser extraída do texto”[5].

Apesar de afirmar a univocidade da disposição questionada, decorrente do regime de Direito privado a que submetida a OAB — razão pela qual seria inadmissível cogitar-se de concurso público para admissão em seus quadros —, o voto deixa de analisar questão fulcral para sustentar os argumentos expostos. É que a disposição então questionada faz expressa menção aos “servidores da OAB” e, segundo o próprio relator, “o regime estatutário disciplina as relações entre servidores públicos e a Administração Pública, não sendo extensivo a outras entidades tão somente porque a criação destas últimas decorreu de lei”[6] (grifou-se). A mesma consideração é feita pelo ministro Carlos Velloso para sustentar, em sentido oposto, a ambiguidade do dispositivo, ao asseverar que “a Constituição Federal não admite ingresso de servidor a não ser por concurso público”[7]. Já nesse ponto verifica-se a satisfação do requisito da “ambiguidade”.

Ao analisar mais detidamente a questão, o ministro Cezar Peluso é categórico ao dizer que “há dúvida, e esta nasce exatamente da fundamentação, que a suscita sobre a natureza jurídica da OAB, ensejando duas interpretações: uma, que a OAB é entidade de Direito Privado, e a outra, que seria de Direito Público”. Assim, chega à conclusão de que “no primeiro caso, não se exigiria concurso público para preenchimento do cargo; e, na segunda hipótese, exigir-se-ia, a despeito de o regime de pessoal ser celetista”[8].

No mesmo sentido é o posicionamento do ministro Gilmar Mendes, que identifica, no caso, “uma disposição e duas possíveis normas: a primeira, que admite a contratação livre num regime tipicamente privado, e, a segunda, que submete essa contratação a um regime público, por meio de realização de concurso público”[9].

Discussões como essa, acerca do cabimento da interpretação conforme e do respeito aos seus limites, não são muito frequentes nos acórdãos proferidos pelo Supremo Tribunal Federal. De fato, são poucos os debates em que se discorre sobre o tema. O que se vê mais comumente são breves objeções de um ou outro ministro à utilização do mecanismo, as quais são superadas sem maiores discussões.

Nesse sentido, no julgamento da ADI 3.096, a aplicação da interpretação conforme foi questionada pelo ministro Marco Aurélio nos seguintes termos: “Tenho pela dificuldade em não concluir, pura e simplesmente, pela inconstitucionalidade do preceito, sob pena de passar-se a atuar como legislador positivo”. A resposta, tão breve quanto a indagação, veio do ministro Ayres Britto: “Não. Mas a serventia da interpretação conforme é para isso”.

Conforme se observa pelos precedentes colacionados, a interpretação conforme a Constituição, apesar do seu já considerável tempo de incorporação ao Direito Constitucional brasileiro, ainda não conta com um uso uniforme e consolidado na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que muitas vezes acaba por proceder a revisões ou mesmo integrações normativas nos preceitos legais interpretados. Faz-se necessário, portanto, que o tema continue sendo objeto de análise e discussão, não apenas pela doutrina, mas, principalmente, pela Corte, que tem na referida técnica, quando utilizada adequadamente, um importante limite democrático ao exercício da jurisdição constitucional.


[1] Rp. 1.417, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 15.4.1988, voto do relator.
[2] ADI-MC 1.344, Rel. Min. Moreira Alves, DJ 19.4.1996.
Para chegar a essa conclusão, o Ministro afirmou em seu voto:
“Em face do que se acentuou na parte inicial desse voto, é relevante a fundamentação jurídica da arguição de inconstitucionalidade desse dispositivo no tocante às gratificações, existentes na data da publicação dessa lei Complementar estadual, que não têm o caráter de vantagens pessoais, como as gratificações pelo exercício de função gratificada, pelo exercício de cargo em comissão, de produtividade, e de representação.
Tendo em vista, porém, que é inequívoca a mens legis no sentido de que esse preceito visa a alcançar indistintamente todas as vantagens e gratificações de qualquer natureza que excedam ao teto nele referido, não é possível dar-se-lhe outra interpretação, para reduzir o seu alcance, e, assim, torná-lo conforme à Constituição Federal, porque a técnica da interpretação conforme só é utilizável quando a norma impugnada admite, dentre as várias interpretações possíveis, uma que a compatibilize com a Carta Magna, e não quando o sentido da norma é unívoco, como sucede no caso presente.”
[3] Ao falar-se em “Corte Moreira Alves”, toma-se emprestada terminologia comum do constitucionalismo norte-americano.
[4] ADI 1.194, Rel. p/ o acórdão Min. Cármen Lúcia, DJe 171, de 10.9.2009.
[5] ADI 3.026, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.9.2006, fl. 490.
[6] ADI 3.026, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.9.2006, fl. 490.
[7] ADI 3.026, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.9.2006, fl. 496.
[8] ADI 3.026, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.9.2006, fl. 511.
[9] ADI 3.026, Rel. Min. Eros Grau, DJ 29.9.2006, fl. 536.

Autores

  • é mestre em Direito do Estado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e assessora coordenadora da assessoria em matéria constitucional do Procurador-Geral da República.

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