Direito Comparado

Portugal analisa constitucionalidade de lei de arbitragem

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

15 de maio de 2013, 21h03

O Brasil é internacionalmente conhecido como o país do futebol. Essa condição tem reflexos amplos em diversos setores da vida social, o que se comprova pela inserção no texto constitucional de 1988 do artigo 217, que declara, em seu caput, que é “dever do Estado fomentar práticas desportivas formais e não-formais, como direito de cada um”. Em seu inciso I, enuncia-se o importante principio da “autonomia das entidades desportivas dirigentes e associações, quanto a sua organização e funcionamento”. O prévio esgotamento de instância na justiça desportiva é outro princípio expressamente reconhecido no parágrafo 1º do artigo 217: “O Poder Judiciário só admitirá ações relativas à disciplina e às competições desportivas após esgotarem-se as instâncias da justiça desportiva, regulada em lei”.

Essa norma é muito discutida no âmbito do Direito Constitucional. De acordo com o inventário levado a efeito por Rafael Teixeira Ramos, é possível estabelecer as seguintes posições a respeito do parágrafo 1º do artigo 217, da Constituição Federal: a) é uma “exceção escandalosa” a hipótese de esgotamento de instância na justiça desportiva, dada a ausência, na Constituição, da figura do contencioso administrativo independente (Manoel Gonçalves Ferreira Filho), o que implicaria a inexistência de se respeitar esse prévio exaurimento administrativo e, com isso, não se manteria o óbice ao acesso imediato ao Poder Judiciário (Alexandre de Moraes); b) não há incompatibilidade entre o artigo 217, parágrafo 2º, e o artigo 5º, inciso XXXV, ambos da CF, o que determina o reconhecimento da relação norma geral/norma especial, resolvendo-se o conflito aparente de dispositivos constitucionais pelo critério hermenêutico que faz prevalecer a especialidade (Paulo Schimitt e Alexandre Quadros). Cuidou-se de uma opção legítima do constituinte que deixou de lado o exaurimento de instância em face de outros plexos do contencioso administrativo e tributário, reservando essa excepcionalidade à justiça desportiva (Gilmar Ferreira Mendes).[1]

Outros autores também se colocam favoravelmente à tese da validez da opção do constituinte por um modelo de excepcionalidade da atuação da justiça desportiva, como é o caso de Carlos Eduardo Ambiel [2] e Nelson Nery Costa.[3]

Em reforço a essa posição de defesa do caráter excepcional do parágrafo 1º do artigo 217, da CF, o ministro Gilmar Mendes, em voto proferido no julgamento da ADI 2.937, de relatoria do ministro Cezar Peluso, em 23 de fevereiro de 2012, assentou que: “No plano interno, é interessante verificar que essa organização também se faz de maneira efetiva, tanto é que repudia-nos a ideia — e o próprio texto constitucional valida isso — de uma certa intervenção do Estado em algumas searas da atividade desportiva, na medida em que o texto clama alguma intervenção, mas, ao mesmo tempo, também limita”. Em complemento, o ministro Gilmar Mendes foi enfático ao considerar que “salvo engano, talvez seja o único ponto no texto constitucional em que expressamente se faz uma ressalva àquela disposição quanto à proteção judicial de caráter universal. É um exemplo típico para, realmente, destacar a autonomia. E nós, de qualquer forma, incorporamos um pouco esse sentimento, tanto é que consideramos como um jogo não muito fair o recurso à Justiça para essas questões de anulação das punições dos tribunais desportivo”.

Esse interessante problema da autonomia das decisões da justiça desportiva foi objeto de recente julgado do Tribunal Constitucional português, nos autos do Processo 279/2013, relatado pelo conselheiro Carlos Fernandes Cadilha, tendo por base um pedido de apreciação preventiva de constitucionalidade de norma (segunda parte do n.º 1 do artigo 8º do Anexo do Decreto nº 128/XII, combinado com os artigos 4º e 5º do citado Anexo), provocado pelo Presidente da República.

O Decreto 128/XII, que foi baixado pela Assembleia da República Portuguesa, criou o Tribunal Arbitral do Desporto (TAD). Nos termos do nº 1 do artigo 1º do Anexo desse decreto, o TAD é definido como “uma entidade jurisdicional de natureza arbitral e independente, nomeadamente, da Administração Pública e dos organismos do sistema desportivo, atribuindo-lhe o nº 2 do mesmo preceito competência específica para administrar litígios que relevam do ordenamento jurídico desportivo ou que se relacionem com a prática do desporto”. A competência do TAD abrange o julgamento de litígios submetidos a “um regime de arbitragem necessária (artigos 4° e 5°)”, além de “outros litígios que as partes decidam submeter-lhe em sede de arbitragem voluntária e que sejam, nos termos legais, passíveis de decisão arbitral (artigos 6° e 7°)”.[4]

O decreto ressalva a possibilidade de recurso direto ao Tribunal Constitucional e a impugnação da decisão do TAD, nos termos de legislação portuguesa específica sobre a arbitragem voluntária. No entanto, “a norma prevista na terceira parte do nº 1 do mesmo artigo determina que ‘as decisões proferidas, em única ou última instância, pelo TAD são insuscetíveis de recurso’”.[5]

Ao examinar o caso, o relator apresentou os seguintes fundamentos:

a) A jurisprudência constitucional portuguesa sempre entendeu que os tribunais arbitrais são detentores de parcela da função jurisdicional, cujo exercício não é necessariamente privativo dos juízes dos plexos estatais.

b) Em idêntico alinhamento à jurisprudência do Tribunal Constitucional, o relator anotou que, nos termos do Acórdão n° 52/1992, a Constituição, “para o efeito da admissibilidade de instâncias arbitrais, ‘não distingue, expressamente, entre tribunais arbitrais voluntários e tribunais arbitrais necessários’”. Dessa mercê, “a submissão legal de certos litígios de natureza administrativa à arbitragem necessária resulta ser constitucionalmente admissível desde que observadas certas garantias inseparáveis na natureza obrigatória de maior vertente publicista deste tipo de arbitragem, já que se estará perante uma lei que, restringindo a autonomia privada de pessoas individuais e coletivas, impõe às partes a submissão dos referidos litígios a um ‘exercício privado da função jurisdicional’ do qual resulta o afastamento, a título imediato, da competência dos tribunais estaduais (Ac nº 230/86)”.[6]

c) O acesso à função jurisdicional, previsto no nº 1 do artigo 20º da Constituição de Portugal, integra o rol dos “direitos, liberdades e garantias” (equivalentes aos “direitos fundamentais” da Constituição brasileira). No entanto, esse direito não açambarca o duplo grau de jurisdição, exceto em matéria penal e, de modo excepcional, em sede de sancionamento disciplinar.

d) No entanto, a liberdade de conformação do legislador para instituir o duplo grau nos juízos dos tribunais estatais não abrange os juízos arbitrais. Em relação à arbitragem voluntária, ditada pela autonomia privada, as partes podem dispor quanto à impossibilidade de recurso. Mas, se for uma arbitragem necessária, como se dá na previsão dos litígios submetidos ao TAD, o quadro é diverso e não se pode admitir restrições excessivas a um direito, liberdade e garantia, ao estilo do acesso à tutela jurisdicional.

e) As federações desportivas, a despeito de sua natureza de pessoas jurídicas de direito privado, “na medida em que dispusessem do estatuto de utilidade pública, beneficiavam de prerrogativas de autoridade no exercício de uma missão de serviço público, de tal modo que os atos unilaterais que praticassem nessa qualidade, fossem individuais ou normativos, assumiam a natureza de atos administrativos, sendo contenciosamente impugnáveis junto da jurisdição administrativa”.[7]

f) O TAD, como um plexo da jurisdição desportiva, dotado da natureza de um tribunal arbitral necessário, “assume-se como uma forma de jurisdição privada, que se caracteriza pela sua natureza imperativa. O Estado, ao instituir uma entidade jurisdicional independente para administrar a justiça no domínio do ordenamento jurídico desportivo, renuncia ao exercício primário da função jurisdicional pública relativamente a esse tipo de litígios. O que se discute é se a garantia de acesso aos tribunais pode ser satisfeita através de uma jurisdição arbitral de modo a ficar sempre excluído um reexame judicial por um tribunal estadual, independentemente da natureza dos direitos e interesses que estejam em causa.”[8]

g) No caso desse tribunal da justiça desportiva, operou-se uma autêntica delegação de poderes públicos a uma entidade privada, o que conduziu a uma “privatização orgânica da Administração relativamente ao exercício de uma certa tarefa pública, e simultaneamente renuncie também a qualquer controlo jurisdicional de mérito, através de tribunais estaduais, quanto às decisões administrativas que sejam praticadas no quadro jurídico dessa delegação de competências.” De tal forma, “ainda que os tribunais arbitrais constituam uma categoria de tribunais e exerçam a função jurisdicional, não pode perder-se de vista que essa é uma forma de jurisdição privada, que, no caso do Tribunal Arbitral do Desporto, é imposta obrigatoriamente aos potenciais lesados por decisões unilaterais praticadas por entidades desportivas no exercício de poderes de autoridade.”

h) A previsão da irrecorribilidade das decisões arbitrais do TAD é ofensiva ao direito de acesso aos tribunais. E, com isso, haveria uma “insuficiência dos mecanismos de acesso à justiça estadual, na medida em que não se contempla um mecanismo de reexame perante um órgão judicial do Estado relativamente às situações comuns em que o particular pretenda discutir a decisão que se pronuncia sobre o fundo da causa ou que ponha termo ao processo”.[9]

O relator concluiu seu voto pelo reconhecimento da inconstitucionalidade dos dispositivos impugnados sob a invocação da ofensa aos princípios da proporcionalidade e da tutela jurisdicional efetiva. Não foi necessário o cotejo com o primado da igualdade.

A conselheira Maria João Antunes votou vencida e discordou do relator “por entender que o direito de acesso aos tribunais (artigo 20º, nº 1, da CRP), direito fundamental correlacionado com a reserva da função jurisdicional, não é garantido apenas através do acesso aos tribunais do Estado”. Por uma questão de coerência, dever-se-ia radicalizar a ideia da atuação jurisdicional desses tribunais e, com isso, dispensá-los do duplo grau. Nesse ponto, a conselheira dissidente invocou o ensinamento de Jorge Miranda, em ordem a se reconhecer que, no ordenamento português, “há diferentes categorias de tribunais ou de ordens de jurisdição” (Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional, tomo IV, Coimbra Editora, p. 325, e Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, tomo I, 2ª edição, Wolters Kluwer/Coimbra Editora, anotação ao artigo 20º, ponto X. E, ainda, tomo III, anotação ao artigo 202º, ponto III).[10]

Segundo Maria João Antunes, a ordem constitucional portuguesa não confere prestígio ao princípio do monopólio estadual da função jurisdicional. Em tal ordem de ideias, “o TAD não é um tribunal estadual, mas porque surge em virtude de um ato legislativo e não como resultado de um negócio jurídico privado de direito privado, é irrecusável o seu carácter tipicamente publicístico (Acórdão do Tribunal Constitucional nº 52/92, disponível em www.tribunalconstitucional.pt) e a marca da criação estadual.”[11]

Esse acórdão do Tribunal Constitucional português é muito importante para se cotejar as soluções ali desenvolvidas e o estado atual da visão pretoriana sobre a arbitragem e sobre a jurisdição esportiva no Brasil. Quanto a esse último aspecto, o contributo desse acórdão interessará mais especificamente os estudiosos do Direito Desportivo e as teses inerentes à natureza e à competência da justiça referida no artigo 217, parágrafo 2º, CF/1988. No que se refere à arbitragem, que atualmente se encontra com uma comissão instaurada no Senado Federal para rever as normas em vigor, é fundamental o confronto com as dicções do Tribunal português. Note-se a afirmação explícita de que a arbitragem reveste-se de natureza jurisdicional não estatal pura, algo que ainda é objeto de polêmica no Direito brasileiro e que mereceu a pioneira contribuição do falecido professor titular da Universidade Federal do Ceará, José de Albuquerque Rocha.[12]


[1] RAMOS, Rafael Teixeira. Justiça desportiva brasileira : natureza, relação com o poder judiciário e os métodos extrajudiciais de resolução de conflitos. Revista brasileira de direito desportivo, n. 13, p. 27-49, jan./jun. 2008.
[2] AMBIEL, Carlos Eduardo. Art. 217. BONAVIDES, Paulo; MIRANDA, Jorge; AGRA, Walber de Moura; RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz; PINTO FILHO, Francisco Bilac (Coords). Comentários à Constituição federal de 1988. Rio de Janeiro : Forense, 2009. p. 2303.
[3] COSTA, Nelson Nery. Constituição federal anotada e explicada. 5. ed., rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro : Forense, 2012. p. 725.
[4] Excertos entre aspas foram extraídos do voto do conselheiro-relator do Processo n.º 279/2013, disponível em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20130230.html. Acesso em 14-5-2013.
[5] Excertos do voto do conselheiro-relator.
[6] Excertos do voto do conselheiro-relator.
[7] Excertos do voto do conselheiro-relator.
[8] Excertos do voto do conselheiro-relator.
[9] Excertos do voto do relator.
[10] Excertos do voto dissidente.
[11] Excertos do voto dissidente.
[12] ROCHA, José de Albuquerque. Lei de arbitragem : uma avaliação crítica. São Paulo : Atlas, 2008.

Autores

  • Brave

    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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