Observatório Constitucional

Suspensão de trâmite de PL não deveria surpreender

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11 de maio de 2013, 8h01

Em 23 de abril de 2013, a Câmara dos Deputados aprovou, em regime de urgência, o Projeto de Lei 4.470, de 2012, que restringiu o acesso de novos partidos políticos ao tempo de propaganda eleitoral gratuita e aos recursos financeiros do fundo partidário. Aparentemente, o conteúdo do projeto violava direitos políticos individuais e coletivos previstos no artigo 17 da Constituição Federal, considerados cláusulas pétreas.

Apoiando-se em construção jurisprudencial, um senador impetrou um writ requerendo a suspensão do trâmite do PL 4.470, a esta altura já renomeado PLC 14/2013, em virtude de sua passagem ao Senado Federal. O ministro Gilmar Mendes, designado relator, deferiu “o pedido de liminar para suspender a tramitação do projeto, até o julgamento de mérito do presente mandado de segurança”, por entender que a alegação era plausível. Essa decisão causou certa controvérsia nos meios jurídicos e políticos.

Ocorre que, para o bem ou para o mal, a decisão em questão não tem nenhuma novidade. A liminar se apoia em um conjunto de técnicas e instrumentos típicos do mais clássico Direito Constitucional europeu ou americano, ou da tradição constitucionalista brasileira.

As cláusulas pétreas
A maioria das constituições contém limitações procedimentais ou materiais ao poder constituinte derivado, como a dos EUA, da Irlanda, da Alemanha, da Áustria, de Portugal, da Espanha e até do Brasil[1]. Em geral, essas limitações são de cunho procedimental. Já a existência de limitações materiais, isto é, de dispositivos ou princípios irrevogáveis na Constituição, é menos comum. Trata-se das famosas cláusulas pétreas — limites materiais ao poder constituinte derivado.

No Brasil, no entanto, as cláusulas pétreas possuem peculiaridades locais. Na nossa Constituição, elas são limites materiais com efeitos procedimentais. É que o artigo 60, parágrafo 4º, declara a limitação ao poder de deliberar, que é parte do processo legislativo[2]. Trata-se de restrição material ao poder constituinte derivado, mas que incide sobre a tramitação da PEC. Ou seja, nossas cláusulas pétreas não são uma enumeração taxativa de matérias que, se transformadas em emendas, conteriam vício material. Elas são, antes de tudo, uma enumeração ilustrativa, porquanto há cláusulas pétreas implícitas[3], de matérias que impõem paralisações ao processo legislativo, incidindo diretamente no funcionamento interno das duas casas do Congresso Nacional.

Assim, na configuração constitucional das nossas cláusulas pétreas, o que fica impedido é a colocação em discussão e debate, o processamento, o andamento de uma proposição que viola o núcleo essencial da Constituição. Segundo decisão do Supremo Tribunal Federal de 1980, “a vedação constitucional se dirige ao próprio processamento da lei ou da emenda”, “a inconstitucionalidade diz respeito ao próprio andamento do processo legislativo, e isso porque a Constituição não quer — em face da gravidade dessas deliberações, se consumadas — que sequer se chegue a deliberação, proibindo-a taxativamente”[4].

O cabimento de mandado de segurança
Com base nessa configuração das cláusulas pétreas no nosso artigo 60, parágrafo 4º, o STF construiu um remédio constitucional que controla o próprio processo legislativo, impedindo que ele se desenrole quando o conteúdo da proposta de emenda violar nossas cláusulas pétreas. Essa construção começou com o voto do ministro Moreira Alves no julgamento do Mandado de Segurança 20.257. O eixo de seu raciocínio foi o direito público subjetivo do parlamentar de não deliberar sobre matéria cujo processo legislativo é vedado pela Constituição. Tal direito se tornaria líquido e certo em face da incidência de uma cláusula pétrea no fato do processo legislativo, enquanto o ato coator seria a tramitação da proposição como um todo.

Desde então, essa construção teórico-constitucionalista foi se firmando, até o Mandado de Segurança tornar-se um autêntico remédio protetivo do direito de oposição, ou do direito das minorias, que se insere indiscutivelmente no princípio democrático. São tantos os casos em que o Supremo concedeu ordem para suspender o processo legislativo violador das cláusulas pétreas, que não se pode fazer uma lista exaustiva.

Em 1996, o ministro Marco Aurélio concedeu liminar suspendendo o trâmite da PEC 33-A/95, a Reforma da Previdência. A liminar havia sido requerida pelos deputados federais Jandira Feghalli, Humberto Costa, Aldo Rebelo, Agnelo Queiroz, Miro Teixeira, entre outros[5]. Já em 1999, o ministro Néri da Silveira reconheceu o cabimento do mandado de segurança impetrado pelo deputado federal José Genoíno pedindo a suspensão da PEC 1/88, que instituía a pena de morte no Brasil. Apesar de reconhecido o cabimento, o pedido foi julgado prejudicado[6].

Note-se que, nesses dois casos, os impetrantes eram membros da minoria parlamentar e encontraram na atuação do STF a proteção a seu direito de oposição. Outras decisões reconheceram o cabimento do mandado de segurança para proteger direito líquido e certo do parlamentar, concedendo ou não a ordem ou medida liminar. Citamos, ilustrativamente, o MS 24.642 (relator Ministro Carlos Velloso), o MS 26.441 (relator ministro Celso de Mello); e o MS 22.442 (relator ministro Sydney Sanches).

A configuração das nossas limitações materiais/procedimentais ao poder constituinte derivado fundamenta, corretamente, o uso do mandado de segurança para sustar o trâmite legislativo de proposta de emenda à Constituição cujo conteúdo seja tendente a abolir cláusula pétrea. E se a proposta de emenda pode ser sustada, com mais razão pode ser sustado um projeto de lei. É que os limites materiais ao poder constituinte derivado devem, necessariamente, limitar o poder legislativo, caso contrário, autorizaríamos o legislador a alterar a Constituição por meio de norma ordinária, contrariando uma das afirmações fundadoras do controle de constitucionalidade no mundo[7]. Diante disso, cabe mandado de segurança também contra a tramitação de projeto de lei tendente a abolir cláusula pétrea.

O conteúdo do PL 4.470
A natureza dúplice, de limitação material/procedimental, das nossas cláusulas pétreas impõe ao julgador de um mandado de segurança impetrado contra tramitação de PEC inconstitucional uma análise de fundo do texto do projeto de lei para decidir sobre a possível inconstitucionalidade da tramitação. Não há como, nesse caso, verificar se houve violação ao artigo 60, parágrafo 4º sem comparar o conteúdo da PEC com o da Constituição. É aqui que a previsão constitucional das cláusulas pétreas cruza o controle da constitucionalidade material do texto com o controle de constitucionalidade formal do processo legislativo. Foi, talvez, por desconsiderar essa peculiaridade do constitucionalismo brasileiro que, em recente artigo, o professor Virgílio Afonso da Silva[8], da Universidade de São Paulo, estranhou o deferimento de liminar no MS 32.033.

Partindo desse princípio, tomemos o PL 4.470, objeto do MS 32.033, para verificar se o seu conteúdo justificaria suspender o seu trâmite via mandado de segurança. O Projeto de Lei 4.470 altera os artigos 29, parágrafo 6º, e 41-A, da Lei 9.096/95, e insere o parágrafo 7º no artigo 47 da Lei 9.504/97, com o objetivo de alterar a interpretação dada ao parágrafo 2º, inciso II, do mesmo artigo.

Em resumo, a redação atual desses dispositivos diz o seguinte: os partidos com representação na Câmara dos Deputados entrarão no rateio de 95% dos recursos do Fundo Partidário e na distribuição de dois terços do tempo de propaganda gratuita na TV e no rádio. Esses partidos receberão parcelas proporcionais aos votos obtidos nas últimas eleições. Já os partidos sem representação na Câmara recebem apenas uma parcela ínfima dos 5% restantes do Fundo Partidário e do um terço restante do tempo de TV e rádio[9]. Segundo a redação atual das duas leis, os deputados que mudassem de partido não levariam para o partido destinatário, os votos que obtiveram na última eleição. Dito de outra forma, a contagem de votos para os efeitos da distribuição de tempo e recursos aos partidos é feita logo após as eleições e se conserva a mesma até as eleições seguintes.

Ocorre que, conforme interpretação do STF veiculada na ADI 4.430, de relatoria do Ministro Dias Toffoli, essa distribuição restritiva dos recursos do Fundo Partidário e do tempo de rádio e TV não se aplica aos partidos criados, fundidos ou incorporados após as últimas eleições. Em outras palavras, os deputados que aderirem a um partido novo, criado após as últimas eleições, transferem para esse partido os votos que obtiveram naquele pleito[10].

Ao fixar essa interpretação para o artigo 47, parágrafo 2º, inciso II da Lei 9.504, o STF o fez com base em dois valores protegidos pela Constituição Federal: o pluripartidarismo, de que a livre criação de partidos é uma consequência natural (artigo 1º, inciso V, e artigo 17, caput, e parágrafo 3º, da Constituição); e a representatividade dos partidos políticos no sistema dos direitos políticos e de cidadania, no qual a filiação partidária é condição de elegibilidade (artigo 14, caput, e parágrafo 3º, inciso V e artigo 17, caput, da Constituição). Esses valores estão inseridos em dois princípios fundamentais. O primeiro, no pluralismo político. O segundo, na soberania popular. Ambos são fundamentos da República Federativa do Brasil, previstos no artigo 1º, inciso V, e parágrafo único.

Ora, o PL pretende alterar essas leis justamente para afastar a interpretação que o STF lhes deu naquela ocasião. Em relação à Lei 9.096, a redação dos artigos 29, parágrafo 6º, e 41-A passaria a ser assim:

“Art.29 (…)
§ 6º Havendo fusão ou incorporação, devem ser somados exclusivamente os votos dos partidos fundidos ou incorporados, obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados, para efeito da distribuição dos recursos do Fundo Partidário e do acesso gratuito ao rádio e à televisão.”

“Art. 41-A. Do total do Fundo Partidário:
I – 5% (cinco por cento) serão destacados para entrega, em partes iguais, a todos os partidos que tenham seus estatutos registrados no Tribunal Superior Eleitoral; e
II – 95% (noventa e cinco por cento) serão distribuídos aos partidos na proporção dos votos obtidos na última eleição geral para a Câmara dos Deputados.
Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II, serão desconsideradas as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto no § 6º do art. 29.” (destacamos)

Já em relação à Lei 9.504, a alteração consistiria em adicionar um parágrafo 7º ao inciso II, parágrafo 2º do artigo 47, que trata da distribuição do tempo de rádio e TV. Esse novo parágrafo teria a seguinte redação:

§7º Para efeito do disposto no inciso II do § 2º, serão desconsideradas as mudanças de filiação partidária, em quaisquer hipóteses, ressalvado o disposto no § 6º do art. 29 da Lei nº 9.096, de 19 de setembro de 1995. (destacamos)

Ora, fica evidente que as alterações previstas pelo PL visam justamente a devolver às Leis 9.096/95 e 9.504/97, o sentido que o STF havia afastado e declarado inconstitucional por violação aos fundamentos da República. Os dispositivos mais importantes do PL são, na verdade, normas interpretativas, isto é, normas que fixam uma interpretação para outra norma, no caso, o parágrafo 6º, do artigo 29 e o artigo 41-A, da Lei 9.096, e o inciso II do parágrafo 2º do artigo 47 da Lei 9.504. Coincidentemente ou não, o entendimento que o PL pretende fixar é diametralmente oposto àquele que o STF entendeu ser conforme à Constituição.

Ocorre que o Supremo já decidiu que norma cujo objetivo imediato seja superar prévia interpretação do STF é inconstitucional[11]. Esse precedente foi mencionado pela decisão que concedeu a liminar no MS 32.033.

A situação ficou, então, nos seguintes termos. O STF declarou na ADI 4.430 que a mesma interpretação que o PL 4.470 quer dar às Leis 9.096 e 9.504 é inconstitucional e viola dois fundamentos da República. O PL 4.470 pretende devolver àquelas leis a interpretação afastada. Diante disso, é no mínimo provável, em face do pronunciamento naquela ADI, que a interpretação veiculada no PL 4.470 seja considerada tendente a abolir cláusulas pétreas.

Logo, não é só o seu conteúdo que é inconstitucional, mas o trâmite do projeto de lei em si. Como, no nosso constitucionalismo o uso do Mandado de Segurança para suspender trâmites inconstitucionais já é uma tradição que se incorporou às relações entre os poderes, nada mais natural que um parlamentar faça uso dessa garantia, que visa a proteger seu direito líquido e certo de não deliberar sobre proposição tendente a abolir cláusula pétrea.

Note-se que a continuidade da tramitação do PL 4.470 atinge negativamente diversas forças políticas, produzindo um efeito desmobilizador de vários setores político-ideológicos que estão empenhados em uma reacomodação ou reconfiguração do campo partidário brasileiro. Esses setores, antevendo a entrada em vigor da vedação imposta pelo PL 4.470, poderiam ver-se desestimulados a empreender essa reorganização partidária e simplesmente desistir de disputar as próximas eleições.

Se isso acontecesse, mesmo uma eventual correção do vício de constitucionalidade daquele projeto de lei por meio de ação direta de inconstitucionalidade, não seria suficiente para reparar o dano causado às forças políticas, aos partidos e até aos eventuais eleitores, cujos candidatos preferenciais seriam impedidos de disputar competitivamente as próximas eleições nacionais. Portanto, a concessão de liminar em mandado de segurança nesse caso justifica-se, tendo em vista a relevância da matéria e o grau de risco que ela representa para a democracia e o pluralismo.

Não deveria haver, por consequência, surpresa nem na impetração nem na decisão liminar, que, aliás, não declarou de pronto que o trâmite do projeto de lei é inconstitucional, mas apenas que é plausível a alegação. Conforme sustentamos, tanto a impetração quanto a decisão inserem-se perfeitamente na tradição constitucionalista brasileira.


[1] A. Barak, “Unconstitutional constitutional amendments” in Israel Law Review, vol. 44:321, 2011, p. 327-328 e 331; J. J. Canotilho, op. cit., p. 1030 – ver art. 288 da Constituição da República Portuguesa.
[2] “§4º Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: I – a forma federativa de Estado; II – o voto direto, secreto, universal e periódico; III – a separação de poderes; IV – os direitos e garantias individuais.”
[3] Por exemplo, o art. 1º, da Constituição.
[4] MS n. 20.257, 08.10.1980.
[5] MS 22.503 MC, 12.4.1996.
[6] MS 21.311, 13.05.1999.
[7] V. Marbury v Madison.
[9] O texto das leis pode ser encontrado em http://www2.planalto.gov.br/presidencia/legislacao.
[10] ADI 4.4230, 29/6/2012:
“i) declarar a inconstitucionalidade da expressão “e representação na Câmara dos Deputados” contida na cabeça do § 2º do art. 47 da Lei nº 9.504/97;
ii) dar interpretação conforme à Constituição Federal ao inciso II do § 2º do art. 47 da mesma lei, para assegurar aos partidos novos, criados após a realização de eleições para a Câmara dos Deputados, o direito de acesso proporcional aos dois terços do tempo destinado à propaganda eleitoral no rádio e na televisão, considerada a representação dos deputados federais que migrarem diretamente dos partidos pelos quais foram eleitos para a nova legenda na sua criação.”
[11] ADI 2.797, 15.9.2005.
 

Autores

  • é advogado, professor de Direito do Centro Universitário de Brasília (UNICEUB) e doutorando em Direito pela École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), de Paris.

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