Saulo Ramos e Paulo Vanzolini morreram
3 de maio de 2013, 13h44
Saulo Ramos veio de Brodowski. Montou praça em Santos. Foi-se em 28 de abril deste ano aos oitenta e três. Já era grandinho enquanto eu ainda chapinhava os pés à beira do mar, nas manhãs quentes de verão. Saulo virou secretário de jornal (A Tribuna, de Santos, centenário órgão de imprensa). Ele escrevia muito bem. Diziam-no “o poeta do café”. Seis anos mais velho do que eu, tinha fama de conquistador. E era. Virou advogado mais tarde. Muito bom no Direito. Quem usa bem a caneta sempre é bom em qualquer coisa. Deu-se amigavelmente com Jânio Quadros. Se não ganhava pelo contexto, vencia no estilo. Ali começou, pelas beiradas, a carreira política. Irmanou-se com Sarney. Virou consultor-geral da República. Não quis o Supremo. Se quisesse teria, pois José Sarney, ainda sobrevivo, devolve os carinhos que recebe. E recebeu. Saulo foi ministro da Justiça. O depois presidente se livrou, pela pena do defensor-poeta, de um pepino sério, nas lonjuras.
Sem saber da morte de Saulo Ramos, meti no toca-fitas do carro, enganando o trânsito, um disco achado no porta-luvas. Jessé. Morreu moço, lá atrás, muito atrás, num desastre. Ia fazer um espetáculo no Paraná. Era brega? Nunca o foi, porque perenizado na voz de Elis Regina. Guardei o pedaço de uma música: “Cuidado. Meu coração é um campo minado, muito cuidado, ele pode explodir”.
Paulo Vanzolini é meu jurista preferido. Foi-se também, no começo da semana. Ainda não faz sete dias. Cansado das firulas maçantes do Direito Penal do Inimigo, comecei a usar trechos das suas músicas para justificar sustentações orais. Foi bom, pois juízes e juízas costumam dormir depois do almoço. Paulo Brossard é comprovação absoluta da afirmativa. Tirava, enquanto ministro do Supremo, belas mas embaraçosas sonecas. O metabolismo cai, pois a digestão exige mais do corpo. Assim, Vanzolini se tornou um antídoto contra o sono, entranhando-se em todas as teses da Parte Geral do Código repressivo. Deu grandes lições sobre amor, ódio, legítima defesa, inveja, imoralidade e desespero. Eu, de minha parte, sempre gostei de alguns refrões. Por exemplo, sobre a delação. “Ninguém vai longe com trinta dinheiros”. Outra frase: “Mulher que não ri não precisa ter dentes. Mulher que se vira pro outro lado tá convocando a suplente”. Ou então: “Cheguei na boca da noite e saí de madrugada, eu não disse que ficava, nem você perguntou nada”. Por último, em livre interpretação: “Alberto foi morar na casa da sogra e não deu certo. Alberto era bom demais”. Pra quem não sabe, Alberto, o personagem, era uma espécie de Vadinho, bastando lembrar de Dona Flor e seus dois maridos. É uma história comprida, a música. O gajo não perdoava ninguém, desde a empregada à mulher do delegado de polícia. Deixo de comentar a canção universal da dor-de-cotovelo, Ronda. Deixo coisa alguma. Aquilo vale, inclusive, como primeiras declarações de Gadelha, advogado que aos setenta e quatro anos, faz poucos dias, num acesso de ciúme ou coisa parecida, matou a amante bem mais moça, coisa que hoje não mais se faz, aquela pura privação de sentidos que levou Evandro Lins e Silva, Américo Marco Antônio, Dante Delmanto, José Roberto Batochio, Tales Castelo Branco, Waldir Troncoso Peres, Márcio Thomaz Bastos (vá lá, fico de bem com ele) e tantos outros, mais eu mesmo, à absolvição de muito velho desgraçado pela paixão.
Já se vê como é fácil embolar dois mortos no mesmo sudário. Um, o jurista-poeta. O outro, o poeta-jurista. Vanzolini ia fazer o último show, meses atrás, num pequeno teatro ao lado da Casa de Portugal, em São Paulo. Suspenderam-no. Já não dava mais. Estava rondando a cidade, nos devaneios que antecedem a derradeira morada. Cazzo! Que coisa chata. Depois de moço, chorei uma só vez na vida. Agora, na velhice, posso chorar uma segunda. La nave va.
Encontrou um erro? Avise nossa equipe!