STJ aplica 'direito ao esquecimento' pela primeira vez
5 de junho de 2013, 9h32
As pessoas têm o direito de serem esquecidas pela opinião pública e até pela imprensa. Os atos que praticaram no passado distante não podem ecoar para sempre, como se fossem punições eternas. A tese do direito ao esquecimento foi assegurada na semana passada em dois recursos especiais julgado pela 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça. As decisões, unânimes, marcam a primeira vez que uma corte superior discute o tema no Brasil.
Foram dois recursos ajuizados contra reportagens da TV Globo, um deles por um dos acusados — mais tarde absolvidos — pelo episódio que ficou conhecido como a Chacina da Candelária, no Rio de Janeiro. O outro, pela família de Aída Curi, estuprada e morta em 1958 por um grupo de jovens. Os casos foram à Justiça porque os personagens das notícias — no caso de Aída, os familiares — sentiram que não havia necessidade de resgatar suas histórias, já que aconteceram há muitos anos e não faziam mais parte do conhecimento comum da população.
O direito ao esquecimento não é recente na doutrina do Direito, mas entrou na pauta jurisdicional com mais contundência desde a edição do Enunciado 531, da VI Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (CJF). O texto, uma orientação doutrinária baseada na interpretação do Código Civil, elenca o direito de ser esquecido entre um dos direitos da personalidade. A questão defendida é que ninguém é obrigado a conviver para sempre com erros pretéritos.
A grande dificuldade da discussão do direito ao esquecimento é que não se pode falar em regras, ou em tese. São sempre debates principiológicos que dependem muito da análise do caso concreto. Mas, em linhas gerais, o que o Enunciado 531 diz é que ninguém é obrigado a conviver para sempre com o passado.
É nessa linha que argumenta o ministro Luis Felipe Salomão, relator dos dois recursos especiais que discutiram a tese no STJ. “Não se pode, pois, nestes casos, permitir a eternização da informação. Especificamente no que concerne ao confronto entre o direito de informação e o direito ao esquecimento dos condenados e dos absolvidos em processo criminal, a doutrina não vacila em dar prevalência, em regra, ao último”, escreveu.
Liberdade de imprensa
Salomão discorre que a questão é uma das decorrências do conflito entre a liberdade de imprensa e o direito à intimidade. Ao mesmo tempo em que a Constituição assegura que a imprensa é incensurável e goza de total liberdade, encontra barreiras em princípios como a inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas.
“E é por isso que a liberdade de imprensa há de ser analisada a partir de dois paradigmas jurídicos bem distantes um do outro. O primeiro, de completo menosprezo tanto da dignidade da pessoa humana quanto da liberdade de imprensa; e o segundo, o atual, de dupla tutela constitucional de ambos os valores”, afirma o ministro.
Mas Salomão pondera que “a história da sociedade é patrimônio imaterial do povo” e o registro dos fatos, portanto, é um direito da sociedade. O registro de crimes, continua o ministro, é uma forma de a sociedade analisar a evolução de seus próprios costumes e de deixar para as futuras gerações marcas de como se comportava.
Candelária
No caso do acusado de ter participado da Chacina da Candelária, a 4ª Turma do STJ condenou a Globo a pagar R$ 50 mil de indenização por danos morais. Entendeu que a menção de seu nome como um dos partícipes do crime, mesmo esclarecendo que ele foi absolvido, causou danos à sua honra, já que ele teve o direito de ser esquecido reconhecido.
A Chacina da Candelária aconteceu em 1993 no Rio de Janeiro, em frente à Igreja da Candelária. Numa madrugada de julho, policiais à paisana abriram fogo contra as cerca de 70 crianças e adolescentes que dormiam nas escadarias da igreja. Várias ficaram feridas e oito morreram. Três policiais foram condenados pelo crime e dois foram absolvidos.
O tempo
Um dos grandes argumentos contra a aplicação da tese do direito ao esquecimento em casos concretos é que, se um fato é lícito quando aconteceu, o passar do tempo não pode torná-lo ilícito. Fosse assim, argumentam os opositores, fatos históricos prescreveriam.
Mas o ministro Luis Felipe Salomão afirma que “a assertiva de que uma notícia lícita não se transforma em ilícita com o simples passar do tempo não tem nenhuma base jurídica”. Ele explica que a passagem do tempo, no campo do Direito, é o que permite a “estabilização do passado”, “mostrando-se ilícito sim reagitar o que a lei pretende sepultar”.
Salomão empresta a tese da prescrição no Direito Penal para explicar por que fatos antigos perdem o interesse da sociedade: “Ao crime, por si só, subjaz um natural interesse público, caso contrário nem seria crime. E esse interesse público, que é, em alguma medida, satisfeito pela publicidade do processo penal, finca raízes essencialmente na fiscalização social da resposta estatal que será dada ao fato”.
Ele explica que “o interesse público que orbita o fenômeno criminal tende a desaparecer na medida em que também se esgota a resposta penal conferida ao fato criminoso, a qual, certamente, encontra seu último suspiro, com a extinção da pena ou com a absolvição, ambas irreversivelmente consumadas”.
Esquecimento para todos
No caso de Aída Curi, Salomão também reconheceu o direito ao esquecimento dos familiares. Concordou com as alegações de que a reportagem da Globo trouxe de volta antigos sentimentos de angústia, revolta e dor diante do crime, que aconteceu quase 60 anos atrás.
Portanto, o ministro reconhece o direito à família de Aída de não ver o caso ser lembrado pela imprensa, ainda que dentro do contexto histórico. Mas no caso de um crime que se fez notável pelo nome da vítima — caso de Aída Curi e também, por exemplo, da missionária Doroty Stang ou do jornalista Vladimir Herzog —, não há outra solução a não ser falar no nome dos envolvidos.
As decisões das instâncias anteriores afirmaram que a reportagem só mostrou imagens originais de Aída uma vez, usando sempre de dramatizações. O foco foi, segundo o voto do ministro, no crime e não na vítima. Sendo assim, não se poderia falar em dano moral.
Salomão também afirmou que, se o tempo se encarregou de tirar o caso da memória do povo, também fez o trabalho de abrandar seus efeitos sobre a honra e a dignidade dos familiares. “No caso de familiares de vítimas de crimes passados, que só querem esquecer a dor pela qual passaram em determinado momento da vida, há uma infeliz constatação: na medida em que o tempo passa e vai se adquirindo um ‘direito ao esquecimento’, na contramão, a dor vai diminuindo, de modo que, relembrar o fato trágico da vida, a depender do tempo transcorrido, embora possa gerar desconforto, não causa o mesmo abalo de antes”, afirmou.
Clique aqui para ler o acórdão o caso da Chacina da Candelária.
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