Corrupção como crime hediondo não resolve o problema
1 de julho de 2013, 14h15
Na última semana o Senado aprovou o projeto de lei de torna da corrupção crime hediondo, aumentando suas penas e dificultando a concessão de benefícios para os condenados. Porém, para o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, só esta medida não resultará no combate à impunidade. “Já criamos outros crimes hediondos, até por iniciativa popular, e tudo mais, mas isso não resulta claramente no combate à impunidade, porque nós estamos muitas vezes a falar da funcionalidade do sistema, vamos chamar assim, de Justiça criminal, que envolve polícia, envolve Ministério Público e envolve a própria Justiça. Então, talvez, aqui um pacto contra a impunidade, inclusive contra os casos de corrupção, devia se exatamente focar nesse amplo aparato. Maior especialização dessas áreas, em suma, dedicação, prioridade. Como o CNJ já vem fazendo, por exemplo, nos chamados crimes de improbidade administrativa ou atos de improbidade administrativa”, explica o ministro ao ser entrevistado no programa Poder e Política, do jornal Folha de S.Paulo e portal UOL.
O ministro também falou sobre a reforma política no Brasil. Gilmar Mendes questionou a opção da presidente Dilma Rousseff de realizar um plebiscito devido a dificuldade de execução e afirmou que o governo está correndo atrás para dar atenção a um tema que não fora tratado. Essa pressa causa preocupação em Gilmar Mendes, que relembra o caso da Ficha Limpa. “Nós vimos no caso da Lei da Ficha Limpa. Hoje apontam-se muitos problemas na sua execução. Por quê? Porque se queria correr para aprovar antes de entrarmos no período eleitoral, aquele da anualidade, do artigo 16. Então acabam ocorrendo imperfeições.”
Questionado sobre as vantagens que os magistrados possuem, como férias de 60 dias, Gilmar Mendes deixou claro que é a favor de uma revisão e propõe um período que o juiz trabalhasse na vara, sem expediente externo. “Há algo de heterodoxo, de errado, nesse sistema. Poder-se-ia pensar, talvez, num período em que o Judiciário trabalhasse para se organizar. Isso ocorre conosco no Supremo Tribunal Federal”, explica o ministro, informando que durante seu período de férias trabalha aproximadamente um mês em seu gabinete. O ministro também se posicionou contrário à decisão do CNJ de levar vantagens dadas ao Ministério Público para os juízes. “Na verdade, as vantagens do Ministério Público é que deveriam ter sido supressas e não se fazer extensão ao Judiciário”.
Gilmar Mendes falou ainda sobre o processo do mensalão. “Eu já disse em outra oportunidade, acho que eu concordo com outros colegas, o Tribunal não pode ficar refém do processo do mensalão. É preciso virar essa página. O Judiciário precisa cuidar de outros temas”, disse o ministro, que crê no encerramento desta ação penal ainda este ano.
Leia a entrevista:
O Brasil assiste já há duas semanas muitas manifestações de rua protestando contra muitas coisas. O sr. acha que o Supremo Tribunal Federal e o Poder Judiciário também são, em certa medida, alvos destes protestos?
Eu tenho a impressão de que todo o poder constituído de alguma forma está tendo a atenção chamada por conta destes protestos. Quando as pessoas gritam contra a corrupção, de certa forma estão em relação ao Legislativo, ao Executivo, mas também em relação ao Judiciário porque pelo menos é o Judiciário que julga esses processos, quando não é alvo da própria acusação. E nós temos, realmente, temos uma grande falha no sistema de justiça criminal. A toda hora, nós noticiamos que um evento como aquele do Carandiru foi julgado 20 anos depois. Em suma, temos um grande problema nessa área. Embora que eu tenho até dito que um lance importante hoje no procedimento da reforma do Judiciário seria dar atenção específica à justiça criminal. Eu tenho impressão que também o Judiciário está tendo a atenção chamada neste momento.
Sabe que, a propósito disso, o ex-ministro agora Cezar Peluso defendia uma reforma que reduzisse o número de instâncias recursais. Teria que ser uma emenda constitucional. Havia dúvidas se era constitucional ou não fazer isso. Qual a sua opinião sobre isso para abreviar o tempo entre o processo e os diversos julgamentos e o cumprimento da pena?
Eu tenho a impressão que nós caímos numa cilada. Inicialmente, acho que foi até o próprio ministro Peluso como relator que consagrou a tese, que era questionada no Supremo Tribunal Federal, a propósito da necessidade de que houvesse trânsito em julgado para mandar alguém ao presídio. Essa foi a tese por ele sustentada em razão dos múltiplos abusos que se perpetravam e deixou alguma válvula de escape para aqueles casos em que, com a sentença, já se justificasse a prisão provisória nos casos de crimes organizados, casos de continuidade delitiva etc. Mas foi ele mesmo que defendeu essa tese. O Tribunal a sufragou. Creio que por uma ampla maioria. Depois se viu que isso estava se resultando no final num quadro de impunidade porque as pessoas recorrem e passam a recorrer abusivamente agora para o STJ e depois para o Supremo Tribunal Federal. Eu tenho a impressão de que a resposta pode se dar no próprio plano legislativo e até no plano jurisprudencial.
Como assim?
Podemos tanto dizer que a partir do 2º grau já pode ocorrer a prisão se o juiz assim avaliar, se o Tribunal assim avaliar. Vamos estar consoantes com todas as declarações de direito, inclusive com a Convenção Interamericana de Direitos. Portanto, não acredito que haja aqui tantos problemas.
Mas não é necessário fazer uma emenda constitucional para…
Não. Não é necessário fazer uma emenda. E aquela emenda, que foi chamada "PEC Peluso" tinha ainda um problema porque ela dizia que quase todas as decisões — e aí não era só na esfera penal, mas também na esfera civil em geral — já teriam força executória com a decisão de 2º grau. E aí nós teríamos uma grande insegurança por quê? Porque as decisões do Supremo e do STJ virariam algo lítero-poético-recreativo, não é? Com todos problemas que nós dizemos. Acabou se atirando no que vira e acertando no que não vira. Em suma, não foi uma boa proposta. Eu acho que vale como metáfora. Quer dizer, nós precisamos melhorar a justiça criminal. E eu acho que nesse ponto a mensagem da PEC Peluso é interessante. Acho que isso tem que ser prioridade mesmo.
Mas teria que ser feito no âmbito do próprio Judiciário?
No âmbito do próprio Judiciário e também… Quer dizer, pode-se fazer uma revisão ou assentar isso em regras de processo penal. Não é preciso, portanto, uma emenda constitucional para isso.
Mas para que um leigo entenda, seria necessário que talvez uma súmula vinculante, alguma decisão…
Dizer que em caso tais, em 2º grau e com a condenação já se cumpra [a pena]. Ontem, por exemplo, nós tivemos aquele caso de um deputado de Rondônia [Natan Donadon] já nos segundos embargos de declaração. Tecnicamente, não houve trânsito em julgado, mas o Tribunal disse: "Agora já é abusivo. Vamos considerar, portanto, fictamente que já transitou em julgado." Manda-se executar a decisão. Não é mais passível de recursos. Então, talvez nós tenhamos que ter algum tipo de referencial a partir do 2º grau e deixar o Tribunal avaliar se é o caso de fazer-se logo o decreto de prisão.
O sr. mencionou o caso do deputado Natan Donadon, do PMDB de Rondônia. Ele foi condenado já no Supremo Tribunal Federal no ano de 2010 a 13 anos de reclusão por formação de quadrilha e peculato. Em 2010. Nós estamos em 2013. Nesse caso o sr. acha que o Supremo poderia, talvez, antes ter tomado a decisão que tomou nesta semana?
Isso é um aprendizado, Fernando. Nós agora que estamos tendo a oportunidade de chegar ao fim de um julgamento penal. Porque antes — como se sabe, embora tenha se alardeado que o Supremo não julgava, não gostava — na verdade, não havia licença para que os processos fossem submetidos, uma vez que os processos dependiam de licenças da Câmara ou do Senado. Nós estamos nesse aprendizado. E o Tribunal é muito cioso na observância — e tem que ser — dos direitos e garantias individuais porque a decisão reflete não somente no caso, mas também tem um efeito irradiador para todo o sistema jurídico, jurídico-penal, se for o caso. Mas esse é um bom exemplo. Eu tenho a impressão que no futuro nós teremos que, decidindo um caso em matéria criminal, teremos que expedir logo a ordem de prisão e não ficarmos a esperar embargos de declaração, que saiam embargos infringentes ou embargos para Deus. Em suma, não faz sentido.
O sr. acha que o momento pelo qual passa o país ajudou o Supremo a refletir nesse caso do Donadon e tomar essa decisão nessa semana?
Não. O Tribunal vem refletindo já há muito tempo a propósito do assunto. Eu tenho a impressão que já na gestão, por exemplo, da ministra Ellen [Gracie], se criou uma secretaria para gerenciar os processos criminais. Depois houve uma série de ajustes nas várias gestões no sentido de dar prioridade aos processos, evitar as prescrições, que eram muito comuns no âmbito do Supremo Tribunal Federal especialmente com esse vai e volta de processos entre o Supremo, Procuradoria-Geral, Polícia Federal. Os próprios inquéritos acabavam tendo um caso de prescrição, afinal… Em suma, nós temos aprimorado a partir da consciência que se teve de que o Tribunal tinha que julgar sim processos criminais.
No caso do Donadon em específico, o sr. acha que foi uma coincidência, então, o fato de ter sido nesta semana? Depois de duas semanas de protestos do país contra a impunidade.
Eu acho que, se nós olharmos, esse processo, salvo engano, a ministra Cármen Lúcia já tinha colocado em pauta algumas vezes. Mas aí também a nossa pauta está tumultuada, não é? Tivemos esse caso, por exemplo, dos partidos políticos, toda essa discussão a propósito da reforma e isso atrasou também a pauta do Supremo. Então, eu tenho a impressão que não está associada a isso. Pelo contrário. Eu acho que a própria relatora já vinha fazendo um esforço enorme de colocar o processo em pauta o mais rápido possível segundo os embargos de declaração.
O seu colega, o ministro Dias Toffoli, disse aqui que o processo do mensalão, que terminou o julgamento no ano passado (2012), talvez ainda dure mais um ou dois anos até de fato estar transitado em julgado. É isso mesmo?
Eu tenho a expectativa de que nós encaminhemos esse assunto agora no 2º semestre. Eu tenho a impressão de que com esse aprendizado institucional que todos nós estamos experimento, haurindo, eu creio que vamos fazer um esforço para encerrar esse assunto. Eu já disse em outra oportunidade, acho que eu concordo com outros colegas, o Tribunal não pode ficar refém do processo do mensalão. É preciso virar essa página. O Judiciário precisa cuidar de outros temas. E eu tenho a impressão de que muitos colegas estão imbuídos deste propósito.
Agora do ponto de vista objetivo. Não são muitos réus. Muitos entraram com os chamados embargos de declaração que devem ser apreciados no 2º semestre, como já disse o presidente do Supremo, Joaquim Barbosa. O sr., com a sua experiência no Supremo, acha que os embargos de declaração podem ser apreciados todos e julgados no 2º semestre?
Eu tenho a impressão que sim. Acho que sim.
Ao longo do 2º semestre?
Ao longo do 2º semestre.
Aí, em seguida, ou ainda antes, porque um já entrou, com o embargo infringente. O Supremo vai ser confrontado sobre se aceita ou não esse tipo de recurso. O sr. tem opinião formada e conhecida já?
Não. Nós temos que discutir essa questão tendo em vista não só a competência do Supremo Tribunal Federal, mas todas as regras de processo hoje existentes e que balizam outras cortes, os tribunais de justiça, o STJ [Superior Tribunal de Justiça], e temos que levar isso em conta.
Qual é a sua posição?
Eu, em princípio, sou crítico dessa possibilidade, mas vamos examinar os argumentos porque a mim parece que o sistema, todo ele, já foi disciplinado a partir da própria legislação penal nova, após 88. Mas é um tema que precisa ser discutido. Há argumentos num e noutro sentido. O próprio ministro Celso [de Mello] havia chamado atenção para essa norma do regimento. Nós temos várias normas regimentais que conflitam com as normas legais existentes. Precisamos, então, nos pronunciar de novo. É um experimento porque, como nós não nos pronunciávamos sobre a questão criminal ao fim, tínhamos então essa situação.
Por que eu estou perguntando isso? Porque é compreensível que o 2º semestre seja tomado para o julgamento dos embargos de declaração no caso do mensalão. Se houver a possibilidade dos embargos infringentes, certamente, então entraríamos no ano de 2014. Não é isso?
Pode ser. Mas o prognóstico só depois do jogo.
E eu pergunto isso também tomando como métrica o caso do deputado Natan Donadon. Ele foi condenado em 2010, com 2011, 2012 e 2013… Cerca de três anos até o cumprimento. O sr. acha que isso é uma espécie de máxima? Essa métrica pode ser usada para o mensalão? Ou não?
Eu tenho a impressão, como tentei dizer antes, que nós estamos aprimorando essa tecnologia de gestão de processo. A rigor, o que se passa num caso como este mostra toda irrazoabilidade e a irracionalidade do procedimento. Não é razoável que, condenado em 2010, só agora tenha a conclusão do julgamento. Evidente que isso diz respeito também a outras matérias submetidas ao Supremo Tribunal Federal de modo que nós temos que melhorar a gestão. Evidente que é compreensível. Todos nós estamos sobrecarregados. As secretarias do Tribunal estão também sobrecarregadas. Mas, realmente, nós precisamos aprimorar para evitar essa delonga. Qualquer recurso que se coloque num tribunal, e no caso de justiça penal, acaba tendo esse efeito dilatório. Por quê? Porque, burocraticamente, ele vai ser tratado e só depois vai chegar à mesa do juiz para ser encaminhado, pauta… Em suma, por isso há um convite, quase, para essas manobras dilatórias ou protelatórias.
Mas, então, estou entendo que essa métrica que foi usado para o caso Donadon — três anos entre a condenação e execução da pena — deve ser eventualmente evitada a partir de agora pelo Supremo e isso se aplica ao mensalão.
Veja que isso já ocorreu em relação ao mensalão quanto à publicação do acórdão, considerando a complexidade do caso. Nós tivemos uma publicação de acórdão, bastante célere, bastante rápida, o que está permitindo já apreciar os embargos de declaração. Acredito que aqui haverá uma gestão mais adequada…
O sr. sente que dentro do Tribunal, do Supremo, há um desejo de tentar, como o sr. diz, virar a página do mensalão e encerrar e expedir os mandados de cumprimento neste ano ainda?
Não vou falar sobre os mandados ou cumprimento de pena. Mas eu tenho a impressão que há um ânimo, pelo menos na maioria dos ministros, de encerrar essa página, de virar essa página.
Mas encerrar é mandar cumprir a pena, não é?
Sim. Nós estamos dizendo em encerrar esse processo.
E a sua expectativa é isso talvez seja possível no 2º semestre?
Acho que sim.
O Poder Executivo tem feito várias propostas para a sociedade, para o Congresso, por conta das manifestações de rua… Tem proposto pactos. O Poder Judiciário deveria ter sido ouvido na hora em que a presidente, que é a comandante-em-chefe do país, apresentou esses pactos?
A expressão pacto, Fernando, você sabe, é um tanto quanto surrada na nossa tradição política institucional. De modo que ela precisa inclusive ser explicitada quando seja lançada. Eu tenho impressão que, considerando a complexidade das propostas, quando as logra entender, eu tenho impressão de que todos os setores que têm responsabilidade institucional teriam que ser ouvidos previamente. Acredito até que isso evitasse alguns equívocos na própria abordagem das propostas…
O sr. enxergou alguns equívocos no que foi mostrado até agora?
Já na apresentação me pareceu que havia quase que impulsos… Por exemplo, no que diz respeito ao combate à corrupção. Ah, transformar em crime hediondo. Em que isso resulta?
O Senado acabou de aprovar um projeto que vai para Câmara [e que transforma corrupção em crime hediondo]…
Sim, não há nenhum problema. Pode-se tratar [dessa forma]. Mas veja que nós já criamos outros crimes hediondos, até por iniciativa popular, e tudo mais, mas isso não resulta claramente no combate à impunidade, porque nós estamos muitas vezes a falar da funcionalidade do sistema, vamos chamar assim, de Justiça criminal, que envolve polícia, envolve Ministério Público e envolve a própria Justiça. Então, talvez, aqui um pacto contra a impunidade, inclusive contra os casos de corrupção, devia se exatamente focar nesse amplo aparato. Maior especialização dessas áreas, em suma, dedicação, prioridade. Como o CNJ [Conselho Nacional de Justiça] já vem fazendo, por exemplo, nos chamados crimes de improbidade administrativa ou atos de improbidade administrativa. Então, esse é um ponto para o qual eu chamaria atenção. No que diz respeito também ao tema do processo constituinte, como foi chamado, a partir de um plebiscito, a meu ver esse erro é rotundo, extremamente grave. Porque no atual modelo institucional que nós desenhamos na Constituição de 88 não há espaço para essa aventura.
Parece que a presidente já recuou sobre convocar uma Constituinte, exclusiva ou não, por meio de, ou junto com um plebiscito…
Até porque ela não pode. O Congresso não pode. O Supremo não pode. A rigor, não há espaço para isso. Mas digo: esse erro poderia ter sido evitado.
A presidente foi induzida a esse erro? O que aconteceu?
Não tenho condições de avaliar. Certamente atribuiu gravidade aos movimentos e foi aconselhada a dar uma resposta. Mas para problemas complexos, às vezes há soluções simples… E erradas. E esse acho que foi o caso. É evidente que a resposta é absolutamente equivocada. E lança o país que está comorando 25 anos de normalidade institucional sob a Constituição de 88 num quadro de insegurança jurídica brutal. Porque se nós podemos chamar um processo constituinte para resolver a reforma política, seja lá o que venha a ser isso, por que também não chamar para fazer a reforma administrativa? A reforma da Conab [Companhia Nacional de Abastecimento]? A reforma da Funai [Fundação Nacional do Índio]? Ou qualquer outra?
Sobre o plebiscito para fazer a reforma política. Qual é sua impressão sobre esse método?
Estou também um pouco em dúvida sobre como vai operacionalizar. Nós temos a autorização no texto constitucional para esse modelo de democracia direta ou semidireta. Iniciativa popular, que vem sendo bem usada, temos tido bons exemplos aí de iniciativa, inclusive com a OAB, CNBB liderando projetos importantes na área eleitoral, captação de sufrágio, ficha limpa. Nós temos também a experiência com o modelo de referendo como aconteceu com a lei de porte de armas, em que houve um grande debate em torno disso. Eu tenho dúvida sobre como se vai fazer um plebiscito e que perguntas vão ser dirigidas à população, que terá de decidir sobre temas que têm perfil bastante técnico. Por exemplo, vai se colocar… Vai se adotar no Brasil o sistema alemão misto distrital e proporcional…? E a população saberá distinguir? E, depois, quando essa resposta vier ao Congresso, o Congresso vai executar como, uma vez que há muitas nuances nos próprios sistemas políticos eleitorais? Em suma, tenho a impressão de que haverá uma série de dificuldades operacionais. Ou será um referendo e não um plebiscito?
Parece que a presidente deseja que seja um plebiscito…
Sim, então eu imagino que haverá um catálogo de questões de difícil escolha, múltiplas escolhas por parte das pessoas, que depois também vai gerar perplexidade, já na sua elaboração, já na sua apresentação na Justiça Eleitoral, já na contagem dos votos. E depois na sua tradução em vontade no Congresso Nacional.
Estou entendendo que o sr. acha temerário esse processo? É isso?
Parece que sim. Parece que sim. É de difícil exequibilidade. Eu tenho a impressão de que nós estamos vivendo um momento muito peculiar. Descuidamos de questões importantes, não cuidamos de questões importantes na esfera administrativa e agora queremos correr para eventualmente dar atenção a temas que até agora não forma tratados.
O governo não cuidou da gestão propriamente e estaria indo atrás de outras questões? Seria isso?
Eu tenho a impressão de que a questão da reforma política, você visita esse tema constantemente, é um tema que sempre esteve na agenda. Mas os próprios governos tiveram muita dificuldade de gerenciá-lo uma vez que ele acabava bloqueando outras pautas. Na medida em que o Congresso se concentrasse no tema da reforma política deixaria de dar atenção a outras reformas. E os governos, creio, acabaram por não priorizar [a reforma política]. Mas neste momento de crise, talvez fosse o caso de ter chamado o presidente da Câmara, do Senado, o presidente do Supremo, a própria presidente do TSE, as lideranças partidárias para dizer: nós precisamos priorizar a reforma política. Nós precisamos fazer uma agenda com esse foco. Por quê? Porque as ruas estão dizendo que há uma distância muito grande entre representados e representantes. É preciso pensar nesse modelo. Mas não sei se vai funcionar a partir de perguntas que vão ser dirigidas às pessoas — e que são perguntas inevitavelmente de perfil bastante técnico.
Agora, uma coisa é certa: por conta dessas manifestações nas ruas, muitas manifestações foram tomadas nos últimos dias pelo Congresso, pelo Executivo também, algumas propostas foram feitas. Vou citar aí, para o bem ou para mal, o caso do crime de corrupção. O Senado rapidamente aprovou o projeto de lei que o transforma em crime hediondo. Isso é um exemplo de que, número um, o Congresso ou as instituições em geral, quando pressionadas, trabalham mais rápido? E, dois, às vezes, pressionadas, trabalhando de forma mais rápida, podem não tomar a melhor decisão?
Pode não tomar a melhor decisão. Tenho absoluta convicção. Nós vimos no caso da Lei da Ficha Limpa. Hoje apontam-se muitos problemas na sua execução. Por quê? Porque se queria correr para aprovar antes de entrarmos no…
… período eleitoral…
… no período eleitoral, aquele da anualidade, do artigo 16. Então acabam ocorrendo imperfeições. Mas eu sinto, eu já tinha conversado sobre isso com o presidente [do Senado] Renan [Calheiros], e também com o presidente [da Câmara] Henrique [Alves], e com outros líderes, com o ex-presidente [José] Sarney: falta uma agenda para o Congresso. Independentemente da agenda governamental, das reformas que vêm sendo conduzidas, muitas delas por medida provisórias, e tudo o mais, a mim me parece que há um espaço de discussão, das reformas na legislação. Na legislação penal, na legislação processual penal. E eu não estou falando de Código [Penal]. Eu sou até refratário a essa coisa de [reforma de] Código. Porque isso vira, às vezes, uma matéria de marketing político-jurídico. Estou dizendo de coisas pontuais e importantes. Por exemplo, o país… E acho que foi uma reforma bem sucedida patrocinada pelo governo foi a Lei de Acesso à Informação. Agora, por exemplo, o país se ressente de uma lei de abuso de autoridade. Nós temos um catálogo de abuso de autoridade, de A a Z. O cidadão tem a toda hora os seus direitos vilipendiados por uma autoridade, do guarda de trânsito ao juiz, ao promotor, ao delegado. E nós não temos até hoje uma lei de abuso de autoridade. A última lei foi votada no governo Castello Branco [de 15 de abril de 1964 a 15 de março de 1967], patrocinada por Milton Campos, o famoso ministro da Justiça. Em suma, há uma agenda que precisa ser vitalizada. Veja esse instituto importante do mandado de injunção, que permite que direitos sejam exercidos em razão da omissão inconstitucional. Ironia suprema: até hoje não há uma lei do mandado de injunção. Então, estamos falando de coisas mais ou menos óbvias. Importantes? Claro. A questão do combate à corrupção se precisa modernizar a legislação. Recentemente ela foi modernizada. Tanto é que nós temos uma das polêmicas colocadas nesses embargos de declaração do mensalão: saber qual era o momento que deveria ser…
Por que a presidente da República neste momento não faz esse tipo de proposta? Por que ela poderia fazer. O Poder Executivo é muito forte no Brasil…
… E muito organizado. E tem uma assessoria muito grande. Dispersa por todos os ministérios. Teria condições de ter, talvez… Nós tínhamos isso em outro momento. Por exemplo, no governo Fernando Henrique tínhamos um arsenal de propostas que depois iam sendo submetidas ao Congresso Nacional.
Por que será que… O que sr. achou do conjunto desses cinco pactos [apresentados por Dilma Rousseff], vamos dizer assim? O que sr. achou, olhando assim…?
Eu tenho a impressão que a iniciativa política é importante. Acho pouco importa que haja retardo. É importante que haja a discussão. Hoje, por exemplo, eu diria que nós já estamos atrasados no chamado pacto federativo. Se nós olharmos o quadro em 88 e agora, nós vemos o quê? Que a União está concentrando recursos. E os Estados e os municípios estão muito mais débeis nessa relação.
Quem tem de liderar esse processo?
Eu tenho impressão que o Senado deveria ter um papel importante com a chamada Casa da Federação. Os próprios governadores… Mas veja que nós só temos impasses. Hoje nós temos um impasse no Congresso sobre o FPE [Fundo de Participação dos Estados]. Nós temos um impasse sobre a guerra fiscal. Nós temos esse impasse sobre os royalties [do petróleo da camada do pré-sal]. Estou falando de três temas que estão ligados à questão federativa. E aparentemente o governo federal não arrebita, não contribui para o desate dessas questões – até aqui, pelo menos- em razão de considerar que talvez venha a pagar parte da conta, seja chamado a fazer algum fundo compensatório. E acaba então…
… Fica omisso…
… Fica omisso nesse tema. Então, o que está acontecendo hoje? É uma briga entre as unidades [da Federação]. Veja o impasse do FPE. O Supremo já decidiu há quatro anos que a lei como ela foi concebida em 89 seria inconstitucional. E até agora não conseguiu se produzir um novo modelo. O mesmo ocorreu com a guerra fiscal.
Há um gigantismo muito grande do Poder Executivo em relação aos demais no Brasil. A gente sabe que o equilíbrio não tão perfeito como talvez fosse desejável. E quando esse poder que é tão grande, tão poderoso, fica omisso, como nós estamos concluindo aqui, abre-se um vácuo aí e criam-se impasses e nada anda? É isso o que acontece?
Eu tenho impressão, porque pelo menos nessa temática é perceptível essa nota…
No que diz respeito à relação aos entes federados?
… Aos entes federados. Isso é fundamental porque hoje também a União transfere uma série de responsabilidades, e é natural, para os Estados e para os municípios. Veja o que acontece no sistema SUS [Sistema Único de Saúde]. Que é um dos temas que está na mídia, na discussão sobre a qualidade do serviço. Ou a questão da educação. Veja que os Estados estão no Supremo Tribunal Federal impugnando a lei que fixou o piso salarial para os professores, dizendo que eles não têm condições de pagar.
Agora, ministro, o Senado, com 81 integrantes, tem um poder dividido aí entre os seus três senadores para cada unidade da Federação… Se o Senado não toma a frente, ele que deveria representar os Estados… quem deveria fazer isso?
Pois é. Esse é um ponto. Eu já estive no…
Quem deveria liderar?
Acho que os governadores, mas eles também estão muito dependentes. Eles estão colocando a questão da revisão [do limite e condições de pagamento] da dívida. E estão muito dependentes dessa relação com a União. Talvez também não tenham coordenação. Dependem dos repasses de verbas. Em suma… Mas eu tenho a impressão de que os próprios governadores poderiam liderar esse processo. É quase que incompreensível, como tem acontecido, acho que há também uma discussão na Câmara sobre uma PEC a propósito de salário de policial, e que o Congresso, sobretudo o Senado, aprove medidas que vão sobreonerar os Estados e que depois os Estados tenham de ir ao Supremo Tribunal Federal para tentar limitar o impacto dessas medidas. Quer dizer, há algo de patológico nesse modelo. As instituições não estão funcionando nesse sistema de ‘checks and balances’ [freios e contrapesos].
Em que medida a conta desse problema todo pode ser debitada do Palácio do Planalto? Da Presidência da República?
Eu tenho a impressão de que em alguns temas tem havido um certo voluntarismo. Por exemplo, suponho, nessa questão dos professores talvez tenha havido um certo voluntarismo…
… por parte?
Por parte do próprio Executivo para aprovar uma medida que era necessária, vamos dizer. Que era um piso salarial. Agora, acabou-se talvez produzindo uma distorção, faltou gradação, faltou medida política. E faltou político nessa história. O que prova o seguinte: que quando o Executivo se engaja, ele aprova. Isso tem sido, de certa forma, a rotina. Por isso que falar que o Congresso é quem está em déficit, que o Congresso está em débito, também tem de ser visto ‘cum grano salis’ [ponderação]. Porque, muitas vezes, essa omissão decorre da falta de articulação por parte do próprio Executivo — que tem, como nós sabemos hoje, o mais amplo apoio, pelo menos, em tese, a mais ampla bancada que já se formou em apoio a um governo nesses últimos anos.
Ou seja, o Poder Executivo teria de exercer o poder que tem…
… E arbitrar essas relações com competência, com método, com racionalidade.
Queria voltar um pouco para a reforma política. O presidente do Supremo Tribunal Federal, Joaquim Barbosa, nesta semana defendeu, entre outros itens, a instituição do recall para político e candidaturas avulsas. Ou seja, cidadãos que se candidatariam a cargos públicos não estando filiados a partidos políticos. Qual é a sua opinião sobre essas duas propostas?
Olha, eu tenho a impressão de que nós não devemos enfraquecer os partidos políticos. Nós devemos fortalecê-los. E fortalecer, inclusive, a democracia interna dos partidos. Talvez fazer legislação para evitar que grupos oligárquicos tomem conta dos partidos.
Que, em geral, é o que acontece.
Que é o que, em geral, acontece. Partidos que são carregados numa pasta. Então, eu acho que os modelos que nós temos hoje… Os partidos políticos continuam a ser mediadores dessa relação entre o indivíduo e o Estado. Eu acho que é importante não perder essa percepção. Mas, se houve propostas consistentes de algum outro experimento institucional, pode-se discutir. Agora, é preciso que se apresente isso com algum tipo de método. Não basta apenas dizer como isso vai se dar. Porque, afinal, nós estamos falando de temas que exigem uma sintonia fina. Nós temos que observar a questão da representatividade, mas nós não podemos perder de vista a governança, não é? A governabilidade. E precisamos observar se vamos produzir um sistema adequado em relação a isso. Também em relação ao recall. A rigor, isso existe no modelo americano. Recentemente, foi praticado na Califórnia, não é? Não sei se os resultados são tão espetaculares que permitam sobrescrever como uma fórmula ou como um método. Mas, em suma, como um instituto de reserva, vamos chamar assim, uma reserva de competência para dizer: "Olha, em caso de estado de necessidade, nós podemos lançar…" Não pode ser uma matéria para a farmácia de todo dia. Em 2006, o Supremo Tribunal Federal declarou inconstitucional um trecho da lei que tratava da cláusula de desempenho, alguns classificam de cláusula de barreira, que passou então a não existir mais. De 2006, ela iria entrar em vigor. Não entrou em vigor. Seria possível introduzir algum conceito de cláusula de desempenho na política brasileira por meio de alguma lei ou é necessário que seja por emenda constitucional? No meu voto, se você olhar nesse julgamento, eu sustento essa possibilidade. A rigor, nós já temos uma cláusula de desempenho…
É. Uma já. Mas ela é muito frouxa
… que é o quociente eleitoral.
Isso.
E temos um problema que é esse modelo proporcional com coligação. Tanto é que uma das discussões óbvias seria, simplesmente, suprimir a possibilidade de coligação e, com isso, haveria enxugamento…
Para as eleições proporcionais?
Para as eleições proporcionais. E, com isso, haveria um enxugamento das siglas partidárias no âmbito do Congresso Nacional. Mas essa é uma questão de opção política. Isso não depende de emenda constitucional.
Agora, naquele caso, eu disse: "É inconstitucional porque, a rigor, nós optamos matar os partidos por inanição, retirando-lhes prerrogativas, tempo de TV, fundo partidário". Os partidos que não alcançaram aquele percentual. Eu diria que seria constitucional se nós tivéssemos estabelecido em lei que o partido que não atingisse um dado percentual não teria representação no Congresso, como tem a cláusula de barreira famosa do direito alemão, a cláusula dos 5%.
Mas, no caso do Brasil, a cláusula de desempenho daquela época… Aliás, esse nome nem existe naquela lei, nem tinha. Chamava-se de cláusula de barreira e dá a impressão de que, de fato, iria-se barrar partidos. Na realidade, os partidos continuariam a existir. Teriam menos acesso ao fundo partidário, ao tempo de rádio e TV e a prerrogativa de funcionamento interno dentro do Congresso. Mas os deputados iriam tomar posse, iriam votar, iriam estar lá eventualmente. Que tipo de dispositivo deveria ser feito, se fosse por meio de lei, para que esse tipo de restrição pudesse existir? Ou não? Na sua opinião, tem que ir para a Constituição?
Não, não. Estou dizendo que pode ser por lei.
Mas naquela lei, qual que era o defeito?
Ela, na verdade, poderia ter estabelecido que se o partido não tivesse atingido um determinado desempenho, ele não seria representado no Congresso, não haveria mandato. Essa seria a fórmula adequada a meu ver.
O sr. acha que teria que excluí-lo inclusive do Congresso?
Sim, sim. Como acontece [na Alemanha].
O sr. queria que ela fosse mais dura ainda do que ela era?
Sim, sim, sim. Acho que essa era a fórmula adequada. Agora, o que você não poderia era dar o mandato, reconhecer o mandato, reconhecer o partido e dizer: "Você vai morrer de inanição porque você já não terá mais tempo de TV, você já não terá mais tempo…".
Não. Teria um tempo de TV pequeno.
Sim. Reduzidíssimo.
Exato.
Agora, o grande erro que eu acho que a gente pode apontar naquele caso de responsabilidade do Supremo foi ter indeferido a liminar logo que a lei foi aprovada e vir a julgar 10 anos depois. E aí, julgou no sentido da inconstitucionalidade. Em suma, isso me parece que foi o grande erro do ponto de vista de política judicial. Por quê? Porque a impressão de todo o sistema político é que o Supremo tinha dado aval sim à lei. E agora, então, nós perdemos uma grande oportunidade de fazer a reforma.
O sr. acha que a composição do Supremo Tribunal Federal hoje poderia aceitar, portanto, quem sabe, uma nova cláusula de desempenho para partidos políticos por meio de lei?
Tenho a impressão de que sim. Acho que…
Porque no Congresso criou-se o mito de que agora não podemos mais fazer nada, tem que ser por emenda constitucional.
Não acredito que seja. Acho que é possível e acho que há vários votos — teríamos que fazer uma contabilidade — naquele julgamento que indicavam essa possibilidade. A rigor, o próprio quociente eleitoral já é uma cláusula de barreira, não é?
Já é. É verdade. Então, o sr. acha que essa seria uma medida infraconstitucional que o Congresso poderia tomar e que, certamente, teria um efeito profilático no sistema?
Com certeza.
O sr., então, não é contrário à existência de algum tipo de cláusula de desempenho?
Não. Pelo contrário, no meu voto eu disse que esse modelo que dissesse claramente que, ao lado do quociente eleitoral, exigisse que os partidos tivessem um dado desempenho para estarem representados no Congresso Nacional seria plenamente constitucional. Estou falando a partir do plano infraconstitucional.
O sr. acha que a reforma política… Imaginar que ela possa ser feita de uma maneira ampla, como agora está se dizendo, é exequível no Brasil ou desejável? Ou o ideal seria escolher dois, três itens e tentar adotá-los e, a partir deles, aperfeiçoar o sistema?
Eu tenho a impressão de que não é uma reforma muito fácil por conta da dificuldade de produzir um consenso básico uma vez que nós estamos tentando consertar o avião em pleno voo. Os atores estão aí e participando da vida política. E fazendo os seus cálculos. Qual é o sistema eleitoral mais adequado para a minha agremiação, para o meu partido? Então, por isso que em geral, pelo menos no que a gente tem visto na experiência constitucional de outros países, essas reformas são feitas de forma gradual, com modelo de transição, de implementação deferida no tempo. Em suma, é preciso, então, que nós levemos isso em conta. Eu tenho a impressão de que quando se diz "ah! Agora nós vamos reformar o mundo de uma vez por toda", a gente já começa a errar.
Tem um projeto de lei que está em debate no Congresso no momento, no Senado, que foi alvo de análise pelo Supremo Tribunal Federal, que é uma lei que inibe, em certa medida, a formação de novos partidos. O sr. foi o autor que concedeu a linear para a interrupção do processo de mensalão. Agora, ele voltou a tramitar. O sr. acha que esse projeto, como muitos deram a entender, seus colegas no Supremo, se aprovado como está, será declarado inconstitucional?
Eu teria a impressão de que sim. Pelo menos para a aplicação na atual legislatura. O debate em torno dessa questão nunca esteve associado à aplicação para outras eleições, mas para aplicação agora, uma vez que o próprio Supremo Tribunal Federal, apreciando o contexto da lei dos partidos, disse que os partidos que fossem formados por essa agregação de parlamentares, teriam também contabilizado o tempo de TV, fundo partidário e tudo mais. Então, nós estaríamos criando um duplo standard neste momento. Daí ter se falado com muita ênfase em casuísmo.
Entendi. O sr. acha que esse projeto de lei, ainda, se fosse redefinido para valer a partir de uma determinada data num próximo ciclo político, ou seja, após a próxima eleição poderia ser considerado constitucional por meio de lei?
Eu tenho a impressão de que sim. Acho que sem maiores dificuldades. Creio que até no meu voto isso se resulta claro.
Não se trata, portanto, de uma mudança que requereria alteração constitucional?
Não. Não.
É só um reposicionamento da data de validade no tempo?
Da data de validade no tempo. Tendo em vista que o próprio Congresso passou a reconhecer as prerrogativas de determinados partidos que se formaram dessa forma especial.
O governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, tem defendido já há alguns anos que exista uma mudança na forma de punição de menores de idade que cometem crimes. O sr. tem simpatia ou gosta dessa proposta?
Eu acho que vi essa proposta e creio que ela está materializada, inclusive. Apresentada acho que no Senado para alongar o tempo de internação em determinados casos. Eu não vejo nenhum problema de inconstitucionalidade aqui. Outra questão que pode suscitar debate no próprio Supremo Tribunal Federal, claro, será a discussão sobre a chamada redução da maioridade penal. Nesse caso, certamente, vamos ter um debate agudo a propósito de cláusula pétrea, se a emenda constitucional que viesse a ser aprovada, lesaria uma garantia, uma cláusula pétrea. Agora, essa solução legal parece de difícil objeção. Eu acho que não seria questionável.
Manter por um período mais longo menores infratores que têm continuidade delitiva nos crimes…
Exatamente. Envolvidos em infrações mais graves, não é?
Ministro, no começo da nossa conversa falamos sobre os protestos de rua, sobre as instituições todas questionadas. Há uma impressão geral da população ruim sobre as instituições. Isso recai também sobre o Judiciário. Qual o sr. acha que é o aspecto mais imagético para a população que o Judiciário deveria tratar para ter a sua imagem resgatada para população?
Eu tenho a impressão de que continua a ser a tardança no processo decisório. Os atrasos e as não providências num tempo socialmente adequado. Daí, quando estive à frente do CNJ, ter liderado não só os mutirões carcerários, mas também aqueles cumprimentos de metas para trazer os processos que não foram decididos até 2005, 2006, a fim de que nós estabelecêssemos um outro paradigma.
A população, além do atraso que ela enxerga no Judiciário quando há um julgamento que demora muito, também vê, às vezes no Judiciário — isso está nas pesquisas —, certos privilégios que não deveriam existir segundo ela, a população. Por exemplo, os juízes no Brasil têm férias de 60 dias. O sr. acha que esse tipo de benefício poderia ser alterado e ajudaria a melhorar a imagem do Judiciário?
Eu não pensaria nessa linha de melhorar a imagem do Judiciário. Eu já tinha feito essa proposta e já tinha discutido com alguns colegas a possibilidade de alguma revisão desse modelo.
Mas por que isso não é feito?
Porque há uma série de dificuldades…
É justo existir esse sistema?
Eu tenho a impressão que hoje, tendo em visto até mesmo a funcionalidade do sistema… Vamos pensar um pequeno Estado, como Alagoas, que tem dificuldade de manter o seu Judiciário. Se ele dá férias de dois meses para os seus juízes, obviamente que ele tem lacunas de atendimento, falta juiz substituto. Certa vez alguém me disse que, em São Paulo, nós estamos falando 360 desembargadores. Portanto, todo mês teríamos 60 desembargadores em férias. Em suma, há algo de heterodoxo, de errado, nesse sistema. Poder-se-ia pensar, talvez, num período em que o Judiciário trabalhasse para se organizar. Isso ocorre conosco no Supremo Tribunal Federal. Nós temos esse período, recesso e férias, mas, em geral, quem tem o gabinete mais ou menos organizado fica durante pelo menos um mês trabalhando. E, em suma, eu tenho a impressão que nós temos que rever isso. Eu estou absolutamente convencido que isso não se sustenta. E agora temos aí muitas discussões. Essa coisa de auxílio-alimentação que foi decidido pelo CNJ e para trazer vantagens do Ministério Público. Eu já tive oportunidade dizer isso até no plenário do Supremo. Na verdade, as vantagens do Ministério Público é que deveriam ter sido supressas e não se fazer extensão ao Judiciário.
Em resumo, o sr. é a favor de reduzir de 60 para 30 dias o período oficial de férias?
De uma revisão desse sistema. Fazer um ajuste para que o juiz, por exemplo, não tivesse expediente externo num dado período, mas que trabalhasse na vara. Mas eu sou a favor da revisão do modelo.
O sistema de nomeação de ministros para o Supremo Tribunal Federal. Nosso sistema é muito parecido com o americano, onde o presidente da República indica, o Senado aprova e o nomeado vai para o Supremo. Mas há muitos questionamentos sobre esse modelo. O sr. acha que ele deve ser mantido ou alterado?
Eu tenho a impressão de que modelos, a rigor, revelam cultura constitucional. Então, a gente tem que contemplar não apenas como uma fórmula abstrata, mas como ele funciona. E eu tenho a impressão de que, se nós fizermos uma análise do produto, das consequências, nós podemos dizer que o modelo tem funcionado relativamente bem no sistema brasileiro com a escolha pelo presidente e a aprovação pelo Senado, com os debates que ocorrem. Alguém dirá: "Ah, mas não ocorrem rejeições como no sistema americano". Mas, de qualquer forma, hoje o processo é bastante público e leva o presidente a fazer ponderações prévias. Não faz muito, um senador me contava que na gestão do presidente Lula, ele mesmo se dirigiu ao presidente Lula para avisar que determinado nome, se fosse submetido, seria rejeitado pelo Senado. São coisas que nós não sabemos. Que vocês também não publicam na imprensa. Mas veja que é um tipo de controle prévio que ocorre de diálogo alto entre as instituições. Então, eu tenho a impressão de que esse sistema funciona bem.
O ministro Luiz Fux recentemente, há alguns meses, deu uma longa entrevista relatando como foi o processo de nomeação dele e como ele fez campanha de fato aberta para ser nomeado para o Supremo. Esse tipo de campanha de candidatos ao Supremo é desejável?
Não. Acredito que não. Eu venho de uma experiência, toda ela, muito especial. Posso falar. Mas é claro que alguém dirá também que é privilegiada. Eu fui assessor de governo, advogado-geral da União. Um dia, eu fui chamado pelo presidente da República dizendo "vou indicá-lo para o Supremo Tribunal Federal". Portanto, não fiz campanha. Posso dizer por mim. E conheço também outros casos, vários, de pessoas que passaram pelo processo de indicação da minha época que também não fizeram campanha. Pelo menos no sentido que nós estamos a falar.
Então, como evitar isso?
Eu tenho a impressão de que isso depende muito do estamento político, do establishment num dado momento histórico. Eu tenho a impressão que o processo de seleção deve mudar de presidência para presidência. No governo Fernando Henrique, eu imagino não era possível cogitar-se nesse modelo de campanha.
Esse é o modelo errado na sua opinião?
Eu considero equivocado.
O sr. foi advogado-geral da União e, daí, o presidente Fernando Henrique Cardoso… Enfim, entre outros cargos, foi advogado-geral da União. O presidente Fernando Henrique Cardoso o nomeou. O ministro Dias Toffoli, do Supremo, seu colega, também foi advogado-geral da União. O presidente Lula o nomeou. Essa participação de alguns integrantes de um governo e depois indicado para o Supremo, nesse caso, o sr. acha que não há problema?
Eu não vejo nenhum problema.
Porque eu me lembro que houve muitas críticas quando o sr. foi indicado por parte da oposição, dizendo: "Ah, o presidente Fernando Henrique está indicando alguém que o representa no Supremo". Quando o presidente Lula indicou o ministro Toffoli, a mesma coisa. "O presidente Lula está indicando alguém para representá-lo no Supremo". Essas inferências não são ruins para a instituição?
Eu tenho a impressão de que as questões têm que ser vista no devido contexto. Quando eu fui escolhido, obviamente eu vinha da posição de advogado-geral da União e de serviços também na assessoria jurídica do governo, mas já com uma longa militância acadêmica, com livros publicados aqui e na Alemanha, com doutorado. Portanto, as pessoas sabiam o que eu pensava, qual era o meu posicionamento. E, às vezes, até me combatiam por isso. Por exemplo: "Defensor do contrato abstrato de normas. Nós não gostamos do controle abstrato de normas ou coisa do tipo. Quer transformar o Supremo numa corte constitucional". Em suma, eu representava um tipo de pensamento. E, obviamente, tanto é que eu disse isso claramente: "Essas posições eu vou defender no Supremo Tribunal Federal. Eu não vou lá para defender a União". Mas entendo que é importante que se tenha noções, como sempre defendi, que se tenha noções de responsabilidade fiscal. Mas isso era claro nos meus posicionamentos. Então, que se combatesse por conta das minhas posições. Aí eu acho absolutamente normal. Pode-se pegar um professor. Veja o caso dos Estados Unidos na recusa de [Robert] Bork porque ele representava a defesa do originalismo, uma radicalização num dado tipo de interpretação constitucional. Esse debate é absolutamente normal. Quer dizer, o presidente pode indicar alguém da assessoria, como alguém pode indicar… Agora, eu acho que uma pessoa não pode ser indicada por ser assessor. Isso não pode ser. Quer dizer, ter sido advogado-geral da União, acredito, não qualifica alguém para ser ministro do Supremo. Ou ter sido procurador-geral da República.
A relação dos juízes, dos magistrados, com o restante da sociedade. O sr., inclusive, foi alvo de, em 2011 — eu estava lendo aqui —, um pedido de impeachment por alguém — que, evidentemente, depois foi arquivado no Supremo — que dizia: "Ah, o ministro recebeu presentes de um advogado que é amigo dele, Sérgio Bermudes". Que tipo de relação deve ser normatizada entre juízes, seus amigos e advogados? Ou isso já existe e é seguido?
Eu tenho a impressão de que, no meu caso, eu sigo as regras hoje existentes. Não vejo nenhuma dificuldade também de se fazer normatização. Receber ou não receber alguém. Por exemplo, quem me pede audiência… Eu posso até retardar, mas qualquer advogado que me peça audiência será recebido. Essa é a orientação que eu tenho no gabinete. Independentemente de ser um grande advogado ou um advogado de província, um advogado modesto. Quer dizer, o fato de o sujeito ser um advogado importante, não lhe dá privilégio. Eu tenho a impressão de que essa é um pouco a regra no Supremo Tribunal Federal. Agora, sempre haverá essas acusações. "Ah, fui ao jogo da seleção e a CBF me ofereceu tíquetes". Aí se discute como se alguém fosse julgar um caso da CBF porque recebeu, eventualmente, um tíquete para ter acesso a um dado Estado. Aí me parece, realmente, algo um tanto quanto desproporcional.
Ainda que seja desproporcional, não é aquele velho caso da história da mulher de César [que além de honesta precisa parecer honesta]?
Eu não vejo que eu teria, talvez, então que recusar o almoço que muitas vezes, gentilmente, o Otavio Frias [Filho] [diretor de Redação da Folha] me oferece na Folha. E imaginar que eu vou julgar um caso da Folha porque é favorável à Folha, porque eu fui recebido em almoço, me parece um tanto ingênuo. É rebaixar demais as relações. É não conhecer minimamente o funcionamento das instituições.
Entendi. Outro dado do Supremo sobre a imagem que as pessoas têm de benefícios dos magistrados, dos juízes. Dados das viagens dos ministros ao exterior, ou aos seus Estados às vezes, gastos que são pagos pelo Supremo e pagos também para as suas mulheres, nos casos dos ministros. O sr. acha que esse tipo de gasto é apropriado?
Olha, em relação a viagem ao exterior, há sempre muito debate. Em relação também às viagens no Brasil. No caso do Supremo, isso é absolutamente transparente. Se dizer que há um número de passagens por ano e eu tenho a impressão de que essa é uma prática ocorrente em todos os demais tribunais e também acho que no âmbito do Legislativo. E os ministros usam essa cota dentro desses limites. Viagem para o exterior, em geral, está associado a algum tipo de evento. Eu me lembro, por exemplo, que nós participamos de muitos eventos no exterior na minha gestão. Parece óbvio que, quando havia a participação, a viagem de representação com a participação da esposa do anfitrião num dado país, que a mulher fosse, a rigor, por conta dos cofres públicos. Eu estive, por exemplo, na embaixada em Washington e lá estava o juiz [John Glover] Roberts [então presidente daquele Tribunal] com a sua esposa num evento que nós participamos. O ministro Peluso estava com a sua esposa, absolutamente normal. Não vejo aí nenhum problema e nenhum abuso. E isso não é escondido. Isso está em norma regulamentada nas normas do Tribunal. Acho que tem que se dizer isso à população. Explicar que isso faz parte das relações. Nós trabalhamos, por exemplo, hoje naquilo que a ministra Ellen chamava de diplomacia no âmbito judicial. Nós trouxemos, por exemplo, para o Brasil, em 2011, a Conferência Mundial de Cortes Constitucionais em função desses contatos, dessas visitas, desses trabalhos que são trabalhos de representação que a presidência exerce. Não vejo aí nenhum problema.
Ministro, para concluir, esse momento pelo qual o país passa, com tantas manifestações de rua. O sr. acha que o país necessariamente vai emergir melhor de tudo isso?
Eu tenho justo a expectativa de que isso vai sensibilizar os segmentos políticos de que é necessário ter uma approach mais ativo no sentido das reformas. Isso diz respeito a todos os poderes. Diz respeito ao Legislativo, diz respeito ao Executivo, diz respeito ao Judiciário. Não vamos nos iludir. Acredito que a população, de alguma forma no seu grito um tanto quanto difuso, no protesto um tanto quanto aberto, no fundo está apontando problemas em todas as áreas, não é? Muitas vezes, eles não indicam claramente, não relacionam causa e efeito, mas é preciso, então, que nós nos debrucemos sobre todo esse modelo para dar a devida atenção.
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