Direito Comparado

Magistrado não pode atuar como um "juiz do povo"

Autor

  • Otavio Luiz Rodrigues Junior

    é professor doutor de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e doutor em Direito Civil (USP) com estágios pós-doutorais na Universidade de Lisboa e no Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht (Hamburgo). Acompanhe-o em sua página.

9 de janeiro de 2013, 7h00

Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido. Essa fórmula sintetiza o princípio da soberania popular. Na Constituição de 1988, ela aparece no parágrafo único do artigo 1o, com uma redação peculiar: o poder nasce do povo, mas poderá ser exercido “por meio de representantes eleitos ou diretamente”, conforme as previsões constitucionais. O “recurso ao povo”, como fundamento último da soberania, tem seu marco histórico na subversão do Antigo Regime, mais propriamente com o surgimento da teoria do sistema representativo, que “só se completa com a obra dos constituintes franceses de 1791, que, ao declararem representativa a Constituição francesa, inscreveram na carta revolucionária o corpo legislativo e o rei como representantes da soberania nacional. É o que se lê no número 2 do título III sôbre ‘Podêres Públicos’ da referida Constituição”.[1]

Por influência de Hans Kelsen, o artigo 1o da Constituição da República da Áustria contém a solene afirmação de que “a Áustria é uma república democrática. Seu direito emana do povo” (“Österreich ist eine demokratische Republik. Ihr Recht geht vom Volk aus”). Esse famoso artigo, de que tanto se orgulhava Kelsen, é continente do princípio democrático (“demokratische Prinzip”), cuja concretização se dá pelo reconhecimento do sufrágio universal; da existência de órgãos legislativos eleitos; da realização de consultas diretas ao povo, sob a forma de plebiscitos e referendos, e, finalmente, do direito de formação de partidos políticos.

O povo também foi invocado pelos antigos romanos para legitimar o poder. A República era simbolizada por quatro letras: SPQR. Os pretores e, mesmo nos tempos imperiais, as legiões levavam consigo tabuletas com esse acrônimo, que significa “o Senado e o Povo de Roma” (Senatus Populusque Romanus). Cada ato administrativo, decisão judicial ou ação militar realizavam-se em nome do Senado e do povo de Roma.

No constitucionalismo liberal do século XIX, algumas monarquias buscaram a conciliação entre a fundamentação teocrática e a popular. Fórmulas híbridas, que invocavam a vontade divina e a vontade geral (ou, de modo mais moderno, a vontade popular), passaram a ser utilizadas. O caso brasileiro é especialmente representativo da maneira como os pais fundadores da nação conceberam a monarquia como o símbolo visível (e indispensável) à continuidade do imenso império deixado por Portugal no subcontinente americano. As leis imperiais, e o Código Comercial de 1850 que é uma bela reminiscência desse tempo, possuíam, em seu preâmbulo, a seguinte frase: “D. Pedro II, por Graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpétuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos súditos que a Assembléia Geral Decretou e Nós Queremos a Lei seguinte”. Deus e o povo eram a fonte do poder.

Na Itália, as decisões de sua Corte Constitucional iniciam-se com a expressão “em nome do povo italiano”, da mesma forma que, na monarquia, as decisões eram dadas “em nome do rei da Itália”. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional abre os acórdãos das reclamações com a fórmula “em nome do povo”.

Se não há mais dúvidas quanto ao caráter axiomático da democracia e do Estado de Direito, é igualmente desnecessário justificar que o poder (ou, como pretendia Kelsen, o direito) emana do povo. Assim está muito bom. Mas, esse esquema parece esgotado quando se observa que o Poder Judiciário ou, de modo mais específico, as cortes constitucionais abandonaram o papel de legislador negativo e avançaram pelas veredas incertas e perigosas da mutação constitucional, das sentenças aditivas e de um verdadeiro compartilhamento das responsabilidades da gestão estatal e da elaboração das normas.

Não se pretende aqui enfrentar problemas como o ativismo, a judicialização ou o fim da tripartição dos poderes. O enfoque é diferente, conquanto haja alguns pontos de contato com esses intrigantes temas de nossa época. A correlação entre o fundamento democrático do poder e a atuação judicial permite que se examinem alguns tópicos de grande interesse:

1. Os antigos monarcas absolutos não admitiam a interposição de uma folha de papel (rectius, a Constituição) entre suas consciências e a vontade de Deus. Somente ao Todo-Poderoso eles deveriam prestar contas de seus atos. Narra a História que o último czar da Rússia, Nicolau II, pouco antes de estourar a Revolução de Outubro (de 1917), recebeu o embaixador britânico, que estava alarmado com os rumores de uma (posteriormente confirmada) sublevação contra a monarquia. O diplomata aconselhou Nicolau II a “recuperar a confiança que o povo parecia haver perdido em sua pessoa”. Em resposta, o czar afirmou que ele é quem esperava recuperar a confiança em seu povo. Sua miopia política chocou o embaixador, que, em um telegrama a Londres, revelou sua desesperança com a salvação do regime. Nicolau seria fuzilado, juntamente com sua família, meses depois por ordem dos revolucionários comunistas.

Ao saírem da zona de conforto de meros agentes “cassadores de normas inconstitucionais”, conforme o célebre debate entre Kelsen e Schmitt, os juízes (constitucionais) colocaram-se no centro do dilema sobre o fundamento de “seus” poderes.[2] Em relação ao presidente da República ou ao Congresso, a resposta é notória: eleições livres, diretas e periódicas legitimam a investidura desses agentes. Para Jean-Jacques Rousseau, dever-se-ia aditar ainda a legitimidade de exercício e a fidelidade estrita dos parlamentares às ordens do povo. Eles não teriam vontade, mas seriam meros “procuradores” (no sentido próprio do Direito Civil, de mandatários) do povo. Não é sem razão que, na Constituinte de 1823, os deputados eram chamados de “procuradores” à Assembleia.

Mas, e o juiz? A Constituição de 1988 prevê a investidura por concurso público. O quinto constitucional e a indicação livre pelo presidente da República, no caso de alguns tribunais, são exceções que não rompem, ao menos de maneira a arruiná-lo, com o princípio do concurso público. É possível falar em “legitimidade” do poder dos juízes?

Nos Estados Unidos, esse problema não se coloca ante a prevalência da eletividade dos cargos jurisdicionais, com exceções que também não invalidam a regra. Recentemente, o Estado Plurinacional da Bolívia, em sua nova Constituição, adotou a escolha dos magistrados por critérios democráticos.[3] O Brasil, que segue a tradição do modelo administrativo francês, a despeito da contaminação ocorrida nos anos 1990, com a entrada de elementos anglo-saxônicos (vide as agências reguladoras), o concurso público é o padrão e, ao menos pelos próximos anos, causa repugnância a substituição desse modo de investidura. No caso brasileiro, alguns princípios do regime monárquico permanecem: existe a vitaliciedade; o critério da promoção por antiguidade (paradoxalmente muito elogiado, pois impediria o subjetivismo na ascensão do magistrado) e a eleição sem caráter universal para os órgãos diretivos dos tribunais.

Considerada a realidade do modelo constitucional de 1988, é possível identificar alguns fundamentos para a legitimidade do Poder Judiciário:

1.1. A legitimidade do Poder Judiciário decorre da Constituição, logo, ele é tão legítimo quanto os demais poderes do Estado. Essa é uma tese muito cara a alguns constitucionalistas, especialmente aqueles vinculados ao conceito de “patriotismo constitucional” (Verfassungspatriotismus).

1.2. A legitimidade do Poder Judiciário existe e limita-se ao cumprimento da lei. Ele será tão legítimo quanto se revelar um cumpridor e fiel executor da vontade popular contida na lei.[4] Nesse aspecto, há uma forte ligação dessa tese com a ideia de um poder cassatório, controlador e limitador dos outros poderes. Embora ainda tecnicamente sólida essa explicação, ela se mostra incompleta quando posta diante de problemas constitucionais contemporâneos advindos da crise do Parlamento como função estatal.

1.3. A legitimidade do Poder Judiciário não se radica na vontade popular, ao menos diretamente. Dito de outro modo, há um déficit de legitimidade democrática congênito no Judiciário. Sem eleições periódicas, sem recall, os juízes (vitalícios) são agentes do Estado, integrantes da burocracia estatal, e não se devem atrever a afrontar as prerrogativas dos poderes democraticamente eleitos, salvo quando autorizados pela Constituição.[5] Embora ideologicamente antípodas, as posições 1.2 e 1.3 unem-se quanto a seus resultados.

Há, evidentemente, outras teorias (ou meras explicações) para o problema colocado no tópico 1 na dogmática constitucional. Considerados os limites desta coluna, convém uma tomada de posição, o que se dará no tópico 2.

2. A fundamentação democrática do Direito, uma espécie do gênero fundamentação contratualista, exige que a soberania descanse na vontade popular. Evidentemente que há fórmulas de compromisso, como nas monarquias constitucionais contemporâneas, sendo a britânica o exemplo perfeito, nas quais coexistem elementos aristocráticos com outros preponderantemente democráticos. Essa circunstância não embota a natureza popular do poder (ou, como cunhou Kelsen no texto austríaco, do direito), ainda que persistam assembleias não eleitas (como a Câmara dos Lordes) e líderes hereditários (como os soberanos). Razões históricas, culturais e políticas são menos importantes que as pragmáticas: esse modelo funciona e não se tem cogitado de sua extinção nos países que o adotam. A monarquia britânica representou, como nenhum outro regime no mundo, os valores democráticos contra o governo eleito (também democraticamente) de Adolf Hitler na II Guerra Mundial.

Se a legitimidade democrática pressupõe a vontade popular na escolha dos dirigentes executivos e dos parlamentares, se não há o sufrágio para respaldar a eleição dos juízes, não parece adequado confundir “legitimidade democrática” com a “legitimidade constitucional” da magistratura. É claro que essa é uma afirmação bastante polêmica e muitas objeções podem-lhe ser lançadas. Mas, essa distinção possui diversas vantagens:

2.1. O juiz é um servo da Constituição, que, por sua vez, expressa a vontade popular. Se a legitimidade da investidura eletiva é-lhe negada, ao menos ele terá a seu favor o reconhecimento de que sua instituição — a magistratura — existe “em nome do povo”.

2.2. O magistrado não pode ser um “juiz do povo”. Se o deputado presta conta de seus atos políticos a seus eleitores, o titular da jurisdição é dispensado de fazê-lo. Constituir-se-á o juiz em um “déspota togado”? Jamais. Ele “prestará contas por seus atos” nas esferas criminal, correicional e administrativa. O Conselho Nacional de Justiça é uma prova da efetividade desse controle. Mas, ele não deve ser um comissário, um delegado, um procurador ou um mandatário do povo. Muito menos de quem se afirma como porta-voz ou divulgador da opinião pública. Decidirá o juiz “conforme sua consciência”? Esse também é outro equívoco, outra manifestação da “praga do solipsismo”, denunciada por Lenio Luiz Streck.[6]

Essa figura — o “juiz do povo” — não é recente. Sobre ele já escreveu Carlos Maximiliano, ao dedicar um parágrafo ao “bom juiz Magnaud”, responsável por medidas que se tornaram muito populares a seu tempo: “Tomava atitudes de tribuno; usava de linguagem de orador ou panfletário; empregava apenas argumentos humanos sociais, e concluía do alto, dando razão a este ou àquele sem se preocupar com os textos. Era um vidente, um apóstolo, evangelizador temerário, deslocado no pretório. Achou depois o seu lugar — a Câmara dos Deputados; teve a natural corte de admiradores incondicionais — os teóricos da anarquia. Os socialistas não iam tão longe; seguiam-no a distância, com as necessárias reservas expressas”.[7]

Os favores do povo, ou, da opinião pública, são voláteis e caprichosos. Os políticos bem o sabem. Winston Churchill, para quem não existia opinião pública e sim opinião publicada, conheceu os píncaros da glória com a derrota alemã em 1945 e, poucas semanas depois, foi devolvido à planície dos comuns, vencido nas urnas pelo Partido Trabalhista. A ingratidão popular é a outra face de seu aplauso.


[1] BONAVIDES, Paulo. O regime representativo e a democracia. Revista de Direito Público, v. 1, n. 3, p. 99-104, jan./mar. 1968.

[2] Sobre o tema, recomenda-se o excelente artigo de Gabriel Nogueira Dias: “Legislador negativo” na obra de Hans Kelsen : origem, fundamento e limitações à luz da própria  “Reine Rechtslehre”. Revista Brasileira de Estudos Constitucionais – RBEC, v. 4, n. 15, p. 91-116, jul./set. 2010.

[3] Os membros do Tribunal Constitucional, do Tribunal Supremo de Justiça e dos Tribunais Agroambientais serão eleitos por sufrágio universal (arts. 191, 197 e 207 da Constituição da Bolívia).

[4] “CARREIRA E PODER POPULAR. Se ‘carreria’, como resolver a questão democrática do art. 1o, parágrafo único: todo poder emana do povo? (…) E os integrantes do Poder Judiciário que ingressam na carreira por concurso público (art. 93, I) ou são nomeados para os tribunais? A única saída está na concepção do Estado de Direito, ou do governo das leis. Os juízes exercem o poder que emana do povo, porque estão sujeitos às leis, não podendo julgar contra elas. Aplicam a lei em conformidade com o direito. Como a lei e o direito provêm do povo…! Cai, porém, a alternatividade de o juiz julgar contra a lei” (POLETTI, Ronaldo. Constituição anotada. Rio de Janeiro: Forense,  2009. pp. 228 e 8).

[5] “Com isto, surgem os inevitáveis riscos de uma ‘ditadura da toga’, a qual residiria fundamentalmente no fato de que os valores e os princípios são dotados de uma ductibilidade inerente ao Direito de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. No limite máximo dessa concepção, pode-se dizer que a Constituição é o que o Tribunal Constitucional diz que é, costumando-se apontar, além da arbitrariedade, o déficit democrático do Judiciário. E, de fato, embora haja esforço para que os juízes e tribunais se valham cada vez mais de instrumentos como o amicus curiae e audiências públicas, não se pode confundir isso com a sujeição dos Tribunais à vontade do povo – tão oportunista quanto os grupos de pressão. O Judiciário deve estar comprometido com o princípio contra majoritário, integrante da própria noção de democracia, e que visa justamente cuidar para que a reprodução dos fatores reais de poder não implique a ditadura da maioria – o que não é democracia” (CAMBI, Eduardo; NASSIF, Diego. Expansão da jurisdição constitucional e separação de poderes : uma análise sistêmica à luz da cidadania. Revista dos Tribunais, São Paulo, v. 101, n. 916, p. 249-264, fev. 2012). 

[6] STRECK, Lenio Luiz. O que é isto – Decido conforme minha consciência? 2. ed. rev. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010. p. 103.

[7] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 19 ed., 12 tiragem. Rio de Janeiro: Forense, 2007. parágrafo 87.

Autores

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    é advogado da União, pós-doutor (Universidade de Lisboa) e doutor em Direito Civil (USP); membro da Association Henri Capitant des Amis de la Culture Juridique Française (Paris, França) e da Asociación Iberoamericana de Derecho Romano (Oviedo, Espanha).

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