Competência para julgar

Decisão do STF sobre modulação precisa amadurecer

Autor

  • Fábio Martins de Andrade

    é advogado doutor em Direito Público pela UERJ e autor da obra “Modulação em Matéria Tributária: O argumento pragmático ou consequencialista de cunho econômico e as decisões do STF”.

27 de fevereiro de 2013, 7h27

Em 20 de fevereiro de 2012 o Plenário do Supremo Tribunal Federal decidiu, no mérito, que cabe à Justiça comum (e não à Justiça do Trabalho) processar e julgar os casos decorrentes de contrato de previdência complementar privada. O fundamento foi de que não há relação trabalhista entre o beneficiário e a entidade fechada de previdência complementar. A relação entre o associado e a referida entidade é disciplinada no regulamento de cada instituição. No recurso extraordinário em julgamento estava em foco a violação aos artigos 114 e 202, parágrafo 2º, ambos da Constituição da República. A matéria teve repercussão geral reconhecida.

A tese vencedora foi levantada pela relatora, Ministra Ellen Gracie, tendo sido acompanhada pelos ministros Dias Toffoli, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Celso de Mello. Essa orientação atendeu ao anseio manifestado pela maioria dos ministros, no sentido de que o pronunciamento definitivo do STF deveria contemplar uma solução (objetiva) adequada in abstrato à questão jurídica. Essa corrente, que se sagrou vencedora no julgamento, contrapôs-se a outra vertente. O Ministro Marco Aurélio também deu provimento ao recurso, mas por fundamento diverso.

Pela corrente minoritária (e vencida), inaugurada pelo ministro Cezar Peluso, a competência seria da Justiça do Trabalho para julgar os casos de complementação de aposentadoria no âmbito da previdência privada quando a relação jurídica decorrer do contrato de trabalho. Consoante esse entendimento, caberia ao juiz da causa avaliar se o caso tramitaria junto a Justiça do Trabalho, se fosse decorrente de contrato de trabalho, ou na Justiça Comum, se não houvesse qualquer relação de trabalho envolvida. Essa orientação foi acompanhada pela ministra Cármen Lúcia e pelo presidente, ministro Joaquim Barbosa (cf. RREE 586.453 e 583.050). Estava ausente justificadamente o ministro Ricardo Lewandowski e havia a vaga de uma cadeira no STF (em razão da aposentadoria compulsória do ministro Ayres Britto, em 2012).

A modulação
Além da decisão referente ao mérito da questão jurídica submetida ao exame da Suprema Corte, restou também decidido, em questão de ordem, pela necessidade da maioria de dois terços dos votos (oito) — quorum qualificado, conforme previsto no art. 27 da Lei nº 9.868/99 — para a modulação dos efeitos de decisões em recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida, consoante os votos prolatados pelos ministros Teori Zavascki, Rosa Weber, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Joaquim Barbosa.

Nesse ponto específico, ficaram vencidos os ministros Luiz Fux, Dias Toffoli, Gilmar Mendes e Celso de Mello, os quais entenderam ser possível a modulação, nesses casos, por maioria absoluta do STF (seis votos).

No caso concreto, o Pleno também decidiu pela modulação dos efeitos dessa decisão, com a definição de que permanecerão na Justiça do Trabalho todos os processos que já tiverem sentença de mérito julgada até o dia 20 de fevereiro de 2012 — data do julgamento do caso pelo STF. Assim, todos os processos que tramitam na Justiça do Trabalho e que ainda não tenham tido sentença de mérito prolatada, a partir de agora deverão ser remetidos à Justiça Comum.

A decisão foi por maioria, vencido o ministro Marco Aurélio, que foi o único divergente nesse ponto, porque votou contra a modulação.

Comentários
Foi interessante o debate travado entre os Ministros acerca da questão de ordem suscitada sobre o quorum aplicável para a hipótese de recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida: maioria absoluta (seis) ou dois terços (oito)? Ou ainda, maioria simples?

Cabe registrar que não houve voto no sentido de que bastaria a maioria simples para que fosse possível aplicar a modulação temporal dos efeitos de decisão em caso julgado pelo Pleno do STF. Contudo, a decisão que reconheceu a necessidade de dois terços dos votos favoráveis para que possa ocorrer a modulação nos recursos extraordinários com a repercussão geral reconhecida, tal como preconiza o artigo 27 da Lei nº 9.868/99 (para as ações diretas no modelo de controle concentrado de constitucionalidade), foi adotada pela maioria simples (de cinco ministros, contra apenas quatro, que votaram no sentido de que bastaria a maioria absoluta).

Parece que a definição expressa pelo STF diz respeito à questão constitucional submetida ao seu exame, isto é, quando a decisão constituir um importante precedente (leading case). O entendimento contrário permitiria sustentar a hipótese absurda de que se o caso fosse submetido ao Pleno do STF por qualquer meio (que não fosse recurso extraordinário), então não caberia falar do referido quorum qualificado de dois terços (oito votos).

De igual modo, se a matéria versada no caso submetido a julgamento não tiver a sua repercussão geral expressamente reconhecida, poderia parecer ao incauto que bastaria o quorum da maioria absoluta (seis votos).

Todavia, a decisão parecer ter seguido em outro sentido. De fato, resolvida a questão jurídica submetida ao julgamento, com o pronunciamento definitivo da Suprema Corte, como guardião máximo da Constituição da República, então cabe verificar a necessidade ou não de aplicar a modulação temporal dos efeitos de tal decisão.

Superada essa preliminar foi resolvida a questão de ordem, no sentido de aplicar a modulação temporal dos efeitos da decisão na situação então submetida a julgamento, isto é, pela manutenção da competência nos casos em que as sentenças foram prolatadas no âmbito da Justiça do Trabalho (até a data do julgamento). Essa decisão foi tomada pelo quorum qualificado de dois terços e contou com os oito votos necessários, ficando vencido somente o ministro Marco Aurélio.

Quanto ao quorum necessário, parece que ainda há bastante confusão conceitual, inclusive no âmbito do próprio STF, quanto às diferentes espécies de possíveis hipóteses de modulação temporal dos efeitos da decisão, das quais são exemplos:

a) a declaração de inconstitucionalidade, quando julgada procedente a ação direta de inconstitucionalidade, na forma do artigo 27 da Lei nº 9.868/99;

b) o reconhecimento da constitucionalidade, seja pela improcedência da ação direta de inconstitucionalidade, seja pela procedência da ação declaratória de constitucionalidade, com a aplicação analógica do referido artigo 27, que se limita a regulamentar a decisão em ação direta de inconstitucionalidade; e

c) a mutação jurisprudencial, consistente na reforma repentina de certa orientação da jurisprudência anteriormente consolidada.

Em princípio, pode-se dizer, com relativa segurança, que nas hipóteses (a) e (b) seria necessário atingir o quorum qualificado de dois terços (oito votos), seja em razão da aplicação do artigo 27, seja pela sua aplicação analógica. Todavia, cuidando-se da hipótese (c) não há qualquer razão que justifique a manutenção de tal quorum, razão pela qual seria possível a sua flexibilização para a maioria absoluta de votos (seis).

Levando em consideração que o instituto da modulação temporal dos efeitos das decisões do STF já vigora na ordem jurídico-constitucional brasileira desde 1999, torna-se cada vez mais necessário balizar os seus contornos de modo mais claro e objetivo com o amadurecimento da jurisprudência da Suprema Corte, sob pena de se tornar um instituto incontrolável e profundamente subjetivo, capaz de servir tão somente aos superficiais propósitos de mitigar decisões difíceis em casos complexos (hard cases).

Dentre os argumentos levantados durante o debate travado no Plenário, cabe registrar a interessante ideia suscitada pelo ministro Dias Toffoli. Com efeito, o seu voto foi no sentido de que se a decisão do STF vinculasse apenas e tão somente os demais órgãos do Poder Judiciário, verticalmente vinculados à Suprema Corte, então nos recursos extraordinários com repercussão geral reconhecida bastaria a maioria absoluta (seis votos) para a modulação temporal dos efeitos de suas decisões.

Todavia, se a vinculação alcançasse outros órgãos de diferentes esferas, como a Administração Pública (Poder Executivo), por exemplo, além do próprio Poder Judiciário, então seria necessária a maioria qualificada de dois terços (oito votos) para a modulação temporal dos efeitos de suas decisões. Contudo, tal doutrina foi rechaçada pela maioria dos seus pares e restou vencida, a despeito de sua habilidosa formulação.

Em conclusão, foi salutar assistir os ministros no Plenário da Suprema Corte discutindo sobre a função constitucional e institucional do STF, inclusive com questão de ordem de tal jaez (o quorum necessário para aplicar a modulação temporal dos efeitos de sua decisão em recurso extraordinário com repercussão geral reconhecida, maioria absoluta de seis ou qualificada de oito votos).

Contudo, levando em conta que o instituto da modulação está positivado no nosso ordenamento jurídico-constitucional desde 1999, então se torna urgente o amadurecimento da incipiente jurisprudência do STF acerca das suas balizas e dos seus contornos, sob pena de transformá-lo em instituto incontrolável, capaz de servir apenas aos superficiais propósitos de mitigar decisões difíceis em casos complexos (hard cases) ao alvedrio subjetivo que cada situação supostamente exigir.

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