Processo Novo

Afinal de contas, o que é um princípio jurídico?

Autor

  • José Miguel Garcia Medina

    é doutor e mestre em Direito professor titular na Universidade Paranaense e professor associado na UEM ex-visiting scholar na Columbia Law School em Nova York ex-integrante da Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015 advogado árbitro e diretor do núcleo de atuação estratégica nos tribunais superiores do escritório Medina Guimarães Advogados.

26 de agosto de 2013, 8h37

Spacca
Caricatura José Miguel Garcia Medina - 30/07/13 [Spacca]Na coluna desta semana, gostaria de dar início a um debate sobre princípios jurídicos. Dar início porque, evidentemente, esse é daqueles temas sobre os quais devemos tratar compassadamente. Há temas de que tratamos em uma primeira conversa, mas se sabe que a ele não podemos voltar, senão depois de boa meditação. Princípios jurídicos, a meu ver, é tema que se insere nesse rol.

Minha intenção, também, é dar início a um debate. Não espero que aqueles que se afeiçoam ou que são contrários ao que eu disser nesta e nas próximas colunas aqui compareçam, para confirmar ou infirmar algo. Sendo honesto com o leitor, uso a expressão “debate”, aqui, porque considero que o estudo dos princípios é aporético. Considero imprescindível tratar do tema sob variadas perspectivas.

Quando, pela primeira vez, me coloquei a estudar o tema, fiz referência a um sem-número de opiniões.[1] Não tinha a pretensão, à época, de apresentar uma “teoria dos princípios”. Aliás, não tenho essa aspiração nem mesmo hoje. Afinal, não me considero “teórico” ou “filósofo” do direito. Sou professor e advogado, estudioso e aprendiz do Direito. Sou, sobretudo, preocupado com o que tem sido feito com os princípios e em nome dos princípios, entre nós.

Já que minha preocupação gira em torno do que tem sido feito, partirei de problemas,[2] pois.

A primeira questão que logo se coloca diz respeito ao seguinte: estamos falando, eu e você, do mesmo assunto? Quero dizer, com isso, que quando uso a palavra “princípio”, pode ser que eu esteja falando de algo diferente do que você esteja esperando que eu fale. Posso estar me referindo, por exemplo, a um tipo especial de norma que tem estrutura de princípio — desse modo, por exemplo, se costuma referir à teoria de Robert Alexy. Sendo assim, aludo a um direito fundamental como a um princípio, mas — note-se bem! — não se trata de um “princípio jurídico”, mas de um direito que, confrontado com outro de semelhante estatura, com o qual entra em colisão, pode ou não ceder, conforme o caso. Assim, costuma-se dizer que a liberdade de expressão pode ceder em relação à proteção à intimidade, ou vice-versa. Afirma-se, seguindo essa linha, que se está diante de conflito de princípios, que deve ser resolvido de modo diferente do de um conflito de regras… Mas, é correto dizer que a liberdade de expressão é um princípio, que poderíamos chamar de “princípio da liberdade de expressão”?

Que dizer do princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III, da Constituição)? De difícil definição, esse princípio merece um cuidado especial, pois é a base dos direitos fundamentais. Ganhou destaque com a Constituição de 1998, mas só recentemente tem servido, de modo significativo, de base às decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal — o mesmo sucedendo com o Superior Tribunal de Justiça.

O fato é que, em nome do princípio da dignidade da pessoa humana, tem-se decidido sobre os mais variados temas, e em qualquer sentido possível. Invoca-se a dignidade da pessoa humana para se justificar qualquer tomada de posição, como se o argumento funcionasse como uma licença para se decidir livremente. Algo parecido sucede com o “princípio da função social da empresa”, que vem se tornando lugar-comum e sendo usado para se decidir em qualquer sentido.

Chama-se de princípio, da mesma forma, a proporcionalidade. Mas, também aqui, parece que se usa a expressão “princípio” com outro significado. Proporcionalidade é considerada, por muitos, como critério de sopesamento entre direitos (que teriam estrutura de princípios). Logo, não é princípio, em nenhum dos sentidos antes mencionados.

Algo diferente se passa, ainda, quando alguém se refere ao princípio da nulla executio sine titulo. Aqui não há um direito a ser “sopesado” em relação a outro. Quando se afirma que o ordenamento processual civil observa tal princípio, isso significa que a tutela executiva é condicionada à apresentação de um título, que é, como se diz em conhecida fórmula, condição estabelecida definida lei como necessária e suficiente para a execução. Revela-se, assim, uma opção do legislador, que restringe os poderes do magistrado, em relação aos fatos que podem autorizar a realização de medidas executivas. Algo parecido se pode dizer, por exemplo, do princípio da taxatividade dos recursos, da unicidade (ou unirrecorribilidade) recursal etc. Assim considerados, os princípios revelam características de um dado campo do direito – algo que Boulanger chamou de “princípios de organização técnica”. Sabendo que um determinado princípio impera, e entendendo-se seu significado, pode-se compreender o funcionamento do respectivo sistema.

Em outros casos, chamamos de princípios algo que não se insere em nada do que se disse antes. Pense-se, por exemplo, no princípio do contraditório. É certo que o contraditório encontra-se no rol de direitos fundamentais (artigo 5º, inciso LV) e saber que ele informa o sistema permite ao intérprete extrair uma série importantíssima de consequências — pense-se, por exemplo, em tudo o que se pode dizer a respeito de temas como direito à influência, proibição de prolação de decisão judicial “com surpresa” para a parte etc. Mas é fácil entrever que do contraditório extrai-se, sobretudo, uma regra: à parte deve ser dada ciência e a parte deve ser ouvida. Pode haver alguma discrepância sobre o modo ou o tempo em que tal contraditório deve ocorrer. Não se desconhece, porém, que deve ocorrer, sob pena de não se reputar válido o que suceder, no processo.

Também é comumente referida como princípio a boa-fé objetiva. O Código Civil brasileiro a ela se refere no artigo 113, em relação à interpretação dos contratos, e, no artigo 422, quanto à imposição de deveres às partes, “na conclusão do contrato, como em sua execução”. O espectro de abrangência da boa fé objetiva, entre nós, é amplíssimo. A partir do ideal de conduta conforme a boa-fé, podem-se deduzir os mais variados comportamentos que a contrariam, e que, assim sendo, devem ser reprimidos. Não se admite, por exemplo, comportamento contraditório (venire contra factum proprium). Mas costuma-se dizer que a boa-fé objetiva atua também como limitação ao exercício de direitos, o que nos remete à figura prevista no artigo 187 do Código Civil. No ponto, o Direito brasileiro seguiu critério objetivo: mais importante que a intenção do sujeito é a constatação de que o direito foi exercido de modo contrário à sua finalidade econômica ou social.[3]

Note-se que, em casos como o da boa-fé objetiva, talvez falemos de “princípio” em razão de seu alto grau de generalidade. Mas, ao menos na hipótese prevista no art. 187 do Código Civil, é de regra que se trata. Algo parecido pode ser dito à respeito do dever de cooperação, também muitas vezes chamado de princípio. Há que se encontrar, tal como sucede com a boa-fé objetiva — que, penso, está na base do dever de cooperação — o que disciplina a lei, a respeito. Por exemplo, tem o executado faculdade ou dever de cooperar, em relação à identificação de bens penhoráveis? A resposta a essa pergunta deve ser extraída do que dispõem as regras processuais, sobre o tema.

Por fim, há também a tendência de se chamar um valor não transposto para o Direito de princípio. Não me refiro aos princípios oriundos do direito natural — afinal, creio que pouco ou nada sobrou de direito natural que tenha ficado fora do âmbito normativo. Aludo, aqui, por exemplo, a valores pessoais do intérprete/aplicador do Direito. Embora essa postura nem sempre (ou quase nunca) seja assumida, parece ser possível entrever que, entre nós, ainda que de modo dissimulado, impera a ideia de que princípios são preferências pessoais. Também lidamos com os princípios como se fossem valores quando procuramos conhecer o ethos de um grupo social, para, daí, definir, à luz dos valores supostamente mais importantes numa comunidade, o que devemos entender, por exemplo, por moralidade administrativa (artigo 37, caput, da Constituição). A questão aqui, reside em saber se tais valores podem ser levados em consideração (sejam ou não chamados de princípios), para se resolver questões.

Apresentei alguns exemplos de fenômenos que chamamos de princípios, mas que não pertencem, necessariamente, a uma mesma categoria jurídica. Dependendo da perspectiva que se adote, alguns sequer deveriam ser chamados de princípios. O que quero destacar, hoje, é que dignidade da pessoa humana, proporcionalidade, contraditório, nulla executio sine titulo… etc. não pertencem a uma mesma categoria de “princípios”, e que nem tudo – eu arriscaria dizer, praticamente nada — do que chamamos de princípio acabará se sujeitando a um mesmo regime jurídico. Assim, por exemplo, caso se aceite a tese de Robert Alexy — que, hoje, não desejo discutir — não se permite “ponderar” entre “princípios” de categorias distintas, apenas pelo fato de os chamarmos de “princípios”.

Minha maior preocupação está na prática, que vem se tornando bastante difundida, consistente em atribuir a algo a natureza de princípio para ponderá-lo com outro (?) princípio. Segundo esse modo de proceder, bastaria, no início de uma argumentação, chamar, v.g., preclusão de princípio, e, pronto!, isso autorizaria a “ponderação” do “princípio da preclusão” com outros “princípios”… Essa é uma atitude perigosa, pois pode ser usada como estratégia para se decidir contrariamente ao Direito.

Essa será minha maior preocupação, nos textos dedicados à análise de problemas referentes a princípios. Teremos, pois, que identificar se algo é princípio, ou não; se as variadas figuras chamadas de princípios se sujeitam a uma mesma disciplina; se o que se chama de princípio não seria, na verdade, uma regra, ou um valor…

Não espere o eventual leitor desta coluna, pois, uma “teoria dos princípios”. Mas, se conseguirmos chamar a atenção para o fato de que, muitas vezes, regras são “ponderadas” como se fossem princípios, e de que muitas vezes chamamos de princípios são, na verdade, valores (pessoais, ou "captados" dos anseios sociais…), já teremos dado um grande passo.

Até a próxima semana! 


[1] Estudei o assunto para a defesa de minha tese de doutorado, intitulada Sobre os princípios fundamentais da tutela jurisdicional executiva – Uma nova abordagem, que elaborei sob a orientação da Professora Teresa Arruda Alvim Wambier. A tese foi defendida em 2001 e, depois, o trabalho foi publicado pela Editora Revista dos Tribunais (Execução civil: teoria geral; princípios fundamentais, 2. ed., 2004).

[2] Para Josef Esser, os princípios são descobertos e comprovados a partir de uma problemática concreta, “de modo que é o problema, e não o ‘sistema’ em sentido racional, que constitui o centro do pensamento jurídico” (Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado, p. 9).

[3] Segundo o art. 187 do Código Civil, “comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. O direito brasileiro assemelha-se ao português, que lhe serviu de inspiração (cf. art. 334 do Código Civil português), adotando o critério objetivo, funcional ou finalístico para que se possa aferir a existência de exercício abusivo do direito.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!