Justiça Tributária

Carta aberta ao prefeito de São Paulo Fernando Haddad

Autor

  • Raul Haidar

    é jornalista e advogado tributarista ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

12 de agosto de 2013, 8h00

Spacca
Senhor prefeito: fui seu eleitor nos dois turnos da sua eleição e por isso sinto-me no dever de alertá-lo para alguns lamentáveis erros que seus subordinados insistem em cometer. 

Primeiro, é bom esclarecer que meus votos não foram ideológicos, até porque não acredito em ideologias ou partidos. Prefiro acreditar em pessoas. 

Foram sua excelente formação acadêmica e a crença nos valores morais que seus familiares lhe transmitiram que me fizeram entregar-lhe, na forma de dois votos singelos, os meus sonhos de termos uma cidade melhor para mim, minhas filhas e meus netos, todos nós paulistanos. 

Sendo advogado, não se pode imaginar que V. Exa. concorde com os abusos e os erros de interpretação grosseiros que servidores públicos, seus subordinados, ainda cometem no trato das questões tributárias. A única possibilidade é admitirmos que isso não é de seu conhecimento, o que agora tentaremos afastar publicamente, já que o fazemos através de um site especializado, reconhecido como um dos mais lidos do país. 

Examinemos, Senhor Prefeito, os fatos que podem ser revistos para que nossa cidade viva um ambiente de Justiça Tributária,  com o respeito aos direitos de todos e tornando possível que o cidadão entenda porque  paga impostos municipais e os veja como instrumentos do bem comum.

Relativo ao ISS
O Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza é um dos principais tributos do município e fonte de conflitos há muito tempo. Um desses conflitos tem origem na opção que muitos contribuintes fizeram, sediando suas empresas em outros municípios, onde as alíquotas do imposto são menores. Trata-se do que se convencionou denominar guerra fiscal. 

Qualquer contribuinte tem o dever de procurar um lugar com tributação menor para estabelecer-se. Essa é uma das regras fundamentais do capitalismo, que V. Exa. conhece muito bem, já que é doutor em economia. 

Claro está que a sede em outro município deve ser real, verdadeira e não um simulacro destinado apenas a fraudar o fisco paulistano. Não se pode admitir empresas sediadas em cemitérios ou terrenos vazios. Fraudes não podem ser toleradas nem presumidas.  

Todavia, em qualquer lugar do mundo é comum a existência de pequenas empresas de prestação de serviços, cujas atividades são exercidas fora do estabelecimento físico. Exemplos típicos são os que fazem reparo em equipamentos de informática, consertam eletrodomésticos na residência do proprietário, realizam serviços de jardinagem, fazem auditoria contábil e tantas outras atividades onde o serviço se realiza não no estabelecimento do prestador, mas no do tomador dos serviços. 

Embora os serviços sejam no local onde tem sede o tomador, é necessário que o prestador tenha uma sede, um endereço onde possa receber correspondências, reunir-se eventualmente com seus funcionários, atender fiscalizações, enfim, um endereço comercial ou profissional onde possa ser localizado, diferente de seu domicílio pessoal, de sua casa, local que deve ser preservado até mesmo face a questões de segurança. 

Além disso, os serviços podem ser e são prestados em diversos municípios diferentes. Advogados e contadores, por exemplo, atendem clientes em diversos locais, o mesmo ocorrendo com outros profissionais. Estes podem estar associados a outros, prestando serviços de consultoria técnica em todo o território nacional, mantendo um endereço numa cidade próxima da capital para os fins de direito. 

Como esses profissionais não precisam de grandes espaços, instalam-se em centros de prestação de serviços a que a Lei Complementar 116 denomina de escritórios virtuais, reconhecidos também pela lei municipal. 

A LC 116 de 31 de julho de 2003 inclui a atividade de escritórios virtuais dentre as de tributação regular pelo ISS, especificando-a no sub-item 3.03 do item 3 da sua tabela de incidência a saber:

“3.03 – Exploração de salões de festas, centro de convenções, escritórios virtuais, stands, quadras esportivas, estádios, ginásios, auditórios, casas de espetáculos, parques de diversões, canchas e congêneres, para realização de eventos ou negócios de qualquer natureza.”

Por outro lado, a Lei municipal 13.701 de 24/12/2003 também registra no seu artigo 1º, item 3.02 a mesma redação, ordenando que o ISS incida sobre os serviços de escritórios virtuais, reconhecendo assim sua óbvia legalidade. 

Apesar disso, servidores da Secretaria de Finanças da Prefeitura de São Paulo, ignorando tais leis, indeferem pedidos de inscrição no Cadastro Municipal de São Paulo, para empresas com sede em outros municípios, afirmando que escritórios virtuais não são aceitos para fins de cadastro e também sob a alegação de que não são aceitos contrato de prestação de serviços, IPTU, contas de telefone e energia em nome de terceiros. 

Tal negativa de inscrição é obviamente ilegal, eis que não prevista na lei. Veja-se, a respeito, o artigo 5º, II da CF. Ante o ato ilegal, o contribuinte se vê obrigado a contratar um advogado e na esmagadora maioria dos casos a ilegalidade é repelida, concedendo-se liminar em mandado de segurança e depois obtendo-se a proteção jurídica na sentença.

Ora, se a LC 116 e a própria lei municipal admitem o funcionamento dos escritórios virtuais, na há razão para que no balcão da repartição a lei seja rejeitada. Assim procedendo, causa-se prejuízo ao contribuinte e ao próprio município. O primeiro muitas vezes acaba pagando o ISS em duplicidade e repassa os custos para o preço final dos serviços. Estes  podem fazer parte dos diversos insumos que compõem uma obra municipal (e sabemos que há diversas nessas condições), fazendo com que o  município tenha seus custos acrescidos de impostos a maior que ele mesmo cobra. 

Fiscalização indevida
A Secretaria de Finanças, em passado recente, ordenou que seus agentes fizessem diligências em outros municípios a pretexto de verificar a existência de estabelecimentos e alguns desses agentes chegaram a intimar empresas lá sediadas para exibir livros e dar informações. Tal comportamento é totalmente ilegal. 

O Superior Tribunal de Justiça já decidiu que empresas sediadas fora da Capital não podem ser fiscalizadas pelo fisco paulistano. A decisão unânime está no Recurso Especial 73.086-SP, onde se afirma que: 

A fiscalização municipal deve restringir-se à sua área de competência e jurisdição. Ao permitir que o município de São Paulo exija a apresentação de livros fiscais e documentos de estabelecimentos situados em outros municípios, estar-se-ia concedendo poderes à municipalidade de fiscalizar fatos ocorridos no território de outros entes federados.

Por sua vez, o Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação Cível 171.797.5/8, em que foi Relator o desembargador Walter Swensson, decidiu que:

“Sonegação fiscal e prejuízo decorrente do recolhimento de tributo, com alíquota reduzida, a outro município diverso daquele em que se situa a sede da empresa contribuinte ou em que preste ela habitualmente serviço, não se presumem.”

Portanto, não pode o município fiscalizar empresas de outros municípios e nem pode presumir que o simples fato de que uma empresa tenha sede fora de São Paulo represente sonegação. 

Alíquota
Finalmente, já está na hora de se criar algum mecanismo de incentivos para que empresas de prestação de serviços tenham sede na Capital. Há muito esta cidade se tornou um centro de prestação de serviços, ficando a antiga vocação industrial num passado cada vez mais distante. 

Não parece razoável que mantenhamos em vigor as mesmas alíquotas do ISS vigentes quando imposto foi implantado, em 1967. Naquele tempo podia a empresa pagar 5% sem mais problemas, pois não havia incidência de Cofins e PIS, por exemplo. A carga tributária praticamente dobrou desde então. 

Note-se que houve uma enorme  centralização da arrecadação nas mãos da União e dos Estados, respectivamente com 65 e 20%, sobrando para os municípios cerca de 15%. Assim, eventual redução do ISS poderia ser compensada com revisão do IPTU, cujas bases de cálculo estão defasadas. 

Bloqueio de notas fiscais
Outro abuso de péssima inspiração foi impedir que contribuintes em débito emitam a nota fiscal eletrônica. Trata-se de mecanismo ditatorial, criado na época de Getúlio com o nome de “devedor remisso”. 

Tantas foram as decisões da Justiça declarando-o ilegal, que nada menos que 3 súmulas cuidam disso, a mais recente a 547: “Não é lícito à autoridade proibir que o contribuinte em débito adquira estampilhas, despache mercadorias nas alfândegas e exerça suas atividades profissionais”. 

Pois é, senhor prefeito, todas essas questões precisam ser revistas. Os cidadãos e especialmente os pequenos empresários não podem se colocar na posição de inimigos do prefeito, especialmente quando a eleição é feita de forma democrática, sem qualquer dúvida quanto à legitimidade dos eleitos. 

Embora a representação do povo seja feita no nível municipal através dos vereadores, parece-nos importante que sejam ampliados os mecanismos de comunicação com a sociedade, através das entidades de classe de todos os níveis. 

Finalmente, senhor prefeito, acreditamos que sua administração possa satisfazer plenamente os paulistanos não só no que se refere à correção dos problemas aqui mencionados, mas também no que tange à adequada aplicação das receitas que serão arrecadadas. 

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  • é jornalista e advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.

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