Direito & Mídia

Impressões de uma viagem à China – informática e direitos humanos

Autor

12 de setembro de 2012, 9h42

Spacca
Uma das questões que chocam os jovens alunos que iniciam o curso de jornalismo é a discussão sobre a imparcialidade ou a “verdade” nos relatos noticiosos. Toda notícia é uma tentativa de reproduzir algo que ocorreu. E essa narrativa vem eivada da percepção de quem viu (se teve a oportunidade de ver, o que raramente ocorre) o acontecido. E é óbvio que contar um fato não se confunde com o próprio. Por isso não entramos em contato com a “realidade” quando lemos um texto, assistimos a um noticiário de TV ou escutamos um programa de rádio. O que temos é o contato com uma determinada forma de narrar um fato. Como lembra o professor Luiz Costa Pereira Junior, ninguém gasta duas horas para contar a um amigo a história de um filme. Nessa atividade ele resume os acontecimentos, enfatiza um trecho importante, muda a cronologia, omite detalhes que considera de menor relevância.

É assim com o jornalismo: a narrativa do que aconteceu depende das escolhas de quem presenciou ou se informou sobre o fato, transmitindo o que considera o básico nas poucas linhas de um texto ou minutos de uma fala. Poucas notícias ocupam muito espaço (dois minutos é um tempo considerável na televisão, e as mensagens comerciais têm um padrão de 30 segundos). Entre as poucas exceções, costuma-se destacar os dez minutos que o Jornal Nacional dedicou ao nascimento de Sasha, a filha da Xuxa, em 28 de julho de 1998 – ou, fato mais recente, os 15 minutos dedicados à troca de cadeira: sai Fátima, entra Patrícia, continua Bonner, no mesmo jornal, em 5 de dezembro de 2011. Mas isso é entretenimento, não é jornalismo.

Trago tudo isso para responder a um destacado leitor que afirmou ter lido numa revista de divulgação científica a informação de que um motorista de Pequim foi multado por haver dado passagem a um pedestre.

A não ser que o repórter tenha bom conhecimento do mandarim, acompanhando a conversa entre polícia e motorista, é pouco provável que a cena tenha ocorrido como narrado na revista. Mesmo lembrando que boa parcela dos motoristas chineses dirige o primeiro carro de suas vidas (há duas décadas, contam, as bicicletas e os riquixás dominavam as ruas da cidade), o trânsito ali flui sem grandes problemas. Há horários de pico, como em qualquer metrópole, mas com menos alarde e poucas barbeiragens (a mais frequente é a conversão proibida). Detalhe: vi poucos carros de marcas chinesas circulando em Pequim, ou depois no Tibet. Poucos JAC e Cherry, mas a frota, bem nova, com as exceções de sempre, é composta de Toyota, Hyundai, Honda, Audi, Volkswagen (com destaque para nosso velho conhecido Santana 2000).

Todas essas marcas japonesas, coreanas ou alemãs são produzidas na China, em joint venture com fábricas locais. A pioneira a entrar no mercado chinês foi a Volks. Primeiro com a Shanghai Volkswagen Automotive Company, em 1984, depois com a FAW-Volkswagen, na cidade de Changchun, província de Jilin.

A FAW (First Automotive Works) foi a primeira fábrica de carros da China, fundada em 1956 com apoio e tecnologia soviética. Hoje ela tem parcerias com Toyota, GM, Mazda, além da Volks. Mas o Santana 2000, produzido na China desde 1995 com apoio da filial brasileira, é um pouco maior e um dos campeões de vendas da fábrica de Xangai.

Houve poucos dias de céu aberto em Pequim: mesmo depois de um período de grande chuva, o tempo continuou nublado, com a forte neblina da poluição. Por isso, num final de tarde em que o sol apareceu, fui até um viaduto próximo do Hotel Tibet, onde estava hospedado na segunda parte da viagem, para contemplar o movimento da Avenida Beisihuan Donglu, no Distrito de Chaoyang. São oito pistas, quatro em cada direção, com as pequenas saídas para as ruas laterais, que dão acesso aos hutongs (as ruelas e becos onde se desenvolve a vida normal). Não vi nessa ampla avenida exibição as limusines gigantescas como as que circulam em Moscou ou São Petersburgo, na Rússia. Como também não vi nenhum carrão com sirene no topo, em corrida desabalada, como acontece nas artérias centrais da capital russa.

Mas continuemos com as fábricas. Se no setor automotivo há ainda muito caminho a percorrer, não é assim na área da construção civil e da eletrônica (os insumos para a produção de eletrônicos ainda é o que mais pesa na balança de pagamentos da China, que os importa dos vizinhos asiáticos).

É da área da construção civil o dono da maior fortuna da China, Liang Wengen, com uma conta bancária que supera os US$ 11 bilhões. Wengen é o maior acionista e um dos fundadores da Sany, fabricante mundial de caminhões-guindastes, gruas, escavadeiras, perfuradoras, transportadores de contêineres. Começou como uma fabriqueta de material de soldagem em 1989 e hoje, além das cinco fábricas na China, tem bases de produção nos Estados Unidos, Alemanhã, Brasil, Índia e Indonésia – e está presente em 150 países, com 70 mil empregados.

No Brasil, além da fábrica em implantação em Jacareí, atua com seus equipamentos na construção dos estádios de Brasília, Fortaleza e Cuiabá, para a Copa de 2014. Tem forte presença nas construções civis de Angola. E o senhor Liang Wengen é o exemplo do baixo perfil dos milionários chineses: nunca dá entrevistas, usando o bordão: “Quero que a Sany seja conhecida em todo o mundo, não eu”. Um de seus segredos foi a escolha de um nome de fácil pronúncia, Sany.

Não foi esse o caso da Huawei. Se o nome não é de pronúncia tão fácil, tem uma história de sucesso ainda maior, com características marcadamente distintas. Empresa fundada um ano antes da Sany, com sede em Shenzhen, na provínca de Guangdong, no sul da China, a Huawei foi listada no ano passado como a 352ª no ranking das 500 maiores da revista Fortune, com um ingresso de US$ 32,4 bilhões naquele ano. Desde o início, adotou práticas heterodoxas, menos a de ir crescendo aos poucos.

Hoje a empresa tem 140 mil empregados (de 150 nacionalidades), sendo 62 mil deles dedicados à pesquisa e desenvolvimento de novos produtos e serviços de comunicação – no ano passado a Huawei investiu US$ 3,76 bilhões em pesquisa. O resultado é o elevado número de patentes registradas: quase 500.

A companhia, privada, é de propriedade dos empregados, que detêm 98% das ações e elegem os 51 delegados que escolhem a diretoria. A Huawei tem quatro presidentes, em regime de rotação: enquanto um toca o dia a dia, os outros pensam novas soluções e acompanham as pesquisas, até chegar o seu turno de presidir e tomar as decisões com o colegiado. Presente em 140 países, a companhia dispõe de 23 centros de desenvolvimento de novas soluções: atualmente a menina dos olhos é um sistema de “telepresença”, uma espécie mais avançada de videoconferência para uso, inclusive, familiar.

No Brasil, com 3.900 empregados (87% locais), fechou no ano passado contratos de fornecimento de tecnologia no valor US$ de 1,6 bilhão – um de seus grandes clientes é o governo (Ministério da Ciência e Tecnologia), mas praticamente todas as operadoras (Tim, Embratel, Vivo, Oi, Nextel) utilizam seus serviços e suporte de banda larga móvel, modems, celulares, sistema de armazenamento de dados. A empresa opera uma linha de montagem de smartphones em Sorocaba, com projetos de abrir ali uma fábrica de tablets. Na primeira semana de agosto, a semanal inglesa The Economist dedicou sua capa à Huawei (Quem tem medo dela?, era a chamada de capa). A companhia havia superado a sueca Ericsson como a maior provedora mundial de serviços de comunicação, atendendo 45 das 50 maiores operadoras do mundo.

Essas são empresas surgidas na década de 1980, quando a China adotou o capitalismo de Estado e passou a estabelecer planos e metas quinquenais de alto desenvolvimento. Como ensinava o ex-prefeito de Curitiba Jaime Lerner, quando se sabe o caminho a seguir e toda a população compra a ideia da mudança, fica mais fácil chegar lá. A China tem dado mostras disso. Há muito ainda a acertar, na área dos direitos humanos, da previdência, de políticas salariais.

Tudo isso está em andamento, até pela necessidade que o país tem de estimular o mercado interno, nesse tempo de crise global em que seus produtos não conseguem o escoamento de anos passados. Mas como disse, em italiano, numa entrevista que fiz em julho, o investidor venezuelano Daniel Aldana, residente na China há quase duas décadas: “Voleva una bicicletta? Ora deve pedalare”. É sobre isso que falaremos a seguir. Os caminhos que a China tem a pedalar, agora que se abriu para a economia de mercado.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!