Embargos Culturais

O desprezo à municipalidade em Victor Nunes Leal

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela Faculdade de Direito da USP doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP professor e pesquisador visitante na Universidade da California (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

9 de setembro de 2012, 6h45

O município no federalismo brasileiro e as súmulas jurisprudenciais são temas de Direito Público que exigem referência ao nome do grande jurista mineiro Victor Nunes Leal (1914-1985). O presente artigo tem por objetivo sumariar a ideia de município em Nunes Leal, a propósito da função municipal nos processos efetivos de administração. Centra-se em tese do estudioso mineiro, O município e o regime representativo no Brasil – contribuição aoeEstudo do coronelismo, tornada em livro seminal para compreensão da realidade brasileira, Coronelismo, Enxada e Voto. O livro foi recentemente republicado.

Victor Nunes Leal foi infatigável estudioso, de quem se dizia acordar às duas horas da madrugada, para preparar suas aulas de direito constitucional. Doutor em Ciências Sociais, Victor Nunes Leal desenvolveu multifacetária atividade como advogado, jornalista, ministro do Supremo Tribunal Federal, Consultor-Geral da República, chefe da Casa Civil (no governo de Juscelino Kubitschek), entre outras atividades de muita importância.

Antes de tudo, era um mestre, no sentido aristotélico-platônico da expressão. Afastado do STF pelo Ato Institucional em 1969, permaneceu na vida pública, advogando, orientando, ensinando, combatendo o autoritarismo e o centralismo.

No núcleo do pensamento de Nunes Leal, o estigma da centralização, que tem marcado nossa experiência política. O fracasso do modelo dos donatários (criado em 1532) determinou a criação do sistema do governador-geral (com sede em Salvador). Salvo pouquíssimas manifestações nativistas (Emboabas, Mascates) quase nada se cogitou, em termos de autonomia municipal.

A experiência joanina (1808-1821) deu muita importância para o Rio de Janeiro, em detrimento dos demais lugares do país. O texto constitucional de 1824 desconhecia a vida da vila, circunstância mantida pelo Ato Adicional de 1834, em que pese pregações descentralizadoras do Padre Diogo Antônio Feijó.

O texto republicano de 1891 (reformado em 1926) de sabor positivista, possibilitou o controle do município pelo poder central, de forma absoluta, tônica da política do café-com-leite e do coronelismo, ambiente político e eleitoral pesquisado e iluminado por Victor Nunes Leal, que estudou também a estrutura normativa da carta de 1946, quando ao município já se outorgavam poderes, competências, características, ainda diminuídos por mentalidade que tudo outorga ao federal, substantivo que tem foros de adjetivo.

Victor Nunes Leal radicou seu estudo na premissa de que a propriedade da terra é fator de liderança política local, de onde relação ontogênica entre poder e política, perspectiva realista que informa seu pensamento. É que tal propriedade é historicamente concentrada, determinando dicotomia na composição das classes na sociedade rural. O chefe constrói poder a partir do meio agrícola, exercendo-o no meio urbano, que controla à distância, seja da propriedade ou da capital, estadual ou federal.

É no município, no entanto, que se desenvolve a vida real. É no ambiente cotidiano que se aferem serviços públicos, pelo que elenco de competências identificadas em textos normativos apenas contemplam realidade fática. Emperrada pela política tradicional da República Velha, a vida municipal plasmou-se entre valores como moralização e eficiência, nos primeiros dias do golpe de 1930.

Mas o municipalismo fora sufocado com a carta de 1937, que consagrou as orientações de Francisco Campos, suprimindo o princípio da eletividade dos prefeitos. Essa eletividade entre nós sempre fora mais sólida (desde os tempos coloniais) em relação à Câmara Municipal do que no tocante aos edis. Ao não mencionar o município, o modelo republicano de 1891 suscitou silêncio enigmático, esfíngico, que possibilitou consolidação normativa, propiciadora do esvaziamento do poder local.

Victor Nunes Leal identificou pontos essenciais que informam a trajetória do municipalismo brasileiro. Constatou centralização arbitrária, que faz do município meio e não fim, tornando a vida local espaço de manobra para poder distante. Percebeu que injunções locais eram trianguladas por polos de poder (vinculado à posse da terra), de submissão econômica e de procedimento eleitoral falsificado, o que justificou título de seu livro, Coronelismo, Enxada e Voto.

Compreendeu que todas as funções da vida pragmática dão-se no município, que detém fins e por isso carece de deter meios também. Observou que a eletividade é princípio sonegado em nome de uma moralidade volátil, distante. Sublinhou que o silêncio normativo paralisa o município, tomado que fica por tradição histórica que respeita o macro, o grande, consubstanciado no poder central. Despreza-se o micro, o local, onde se vive cotidiano que tem massacrado os mais carentes, cujos gritos e soluços não provocam ouvidos moucos de sistema centralizado.

É que forças centralizadoras oxigenam-se no município, aos quais retribuem com o esquecimento e atitudes interesseiras, como constatado por Victor Nunes Leal. Coronelismo, Enxada e Voto é um livro clássico, que exige permanente atenção, leitura e releitura. Os tempos mudaram, porém muitas estruturas ainda nos marcam profundamente.

BIBLIOGRAFIA

LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, Enxada e Voto. São Paulo : Alfa Ômega, 1976.

ROSAS, Roberto. Victor Nunes Leal "in Memoriam", Revista de Direito Público n. 77, janeiro/março 1986. São Paulo : RT, 1986.

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