In dubio pro reo

Se há voto vencido, réu não pode ser condenado

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5 de setembro de 2012, 9h00

Nada é mais perverso num Estado democrático de Direito do que se ter um inocente submetido às agruras de uma pena criminal. O Estado somente é legitimamente democrático quando seu cidadão livre, acusado ou mesmo condenado, é tratado como ser humano, intocável em sua dignidade; e verdadeiramente de Direito quando seu poder, em especial o punitivo, é rigidamente controlado na intensidade e limitado na extensão.

Em todo ciclo de existência, vigência, validade e aplicação do ordenamento jurídico, os direitos e garantias penais e processuais previstas nos diversos diplomas normativos, dos tratados internacionais aos regimentos prisionais, são de observância obrigatória pela máquina punitiva estatal, especialmente contra as investidas policialescas da mass media, que têm sido, mais explicitamente nos últimos 20 anos, o epicentro do endurecimento do sistema penal.

Inicialmente, há que se ter em conta a diferença existente entre vícios do próprio ordenamento jurídico, caracterizados por normas inconstitucionais, ilegais ou injustas, de problemas advindos de sua equivocada aplicação, decorrentes da inegável falibilidade humana.

Muito pior do que erros advindos da aplicação de normas penais e processuais por operadores da famigerada Justiça Pública, casos em que são previstas medidas reparatórias, tais como recursos e ações impugnativas autônomas, ocorre quando a produção legislativa em si já evidencia, no plano abstrato, grave atentado a princípios e regras assecuratórios da liberdade humana, duramente conquistados mais explicita e fortemente a partir da ilustração.

Dentro da vasta gama de institutos penais e processuais previstos na legislação pátria de (in)duvidosa (in)constitucionalidade, destaca-se negativamente a regra de decisão adotada para os julgamentos colegiados não unânimes em desfavor do réu, o que pode ocorrer na ação penal originária, nas ações autônomas de impugnação e nos julgamentos de recursos pelos tribunais locais e superiores.

O Código de Processo Penal positiva a regra majoritária ou “matemática” de decisão colegiada ao menos em duas passagens, como se pode verificar pelo parágrafo único de seu artigo 609, que privilegia o voto majoritário, oportunizando em favor do réu, tão-somente, a interposição de embargos infringentes e de nulidade nos julgamentos de apelações, recursos em sentido estrito e agravos em execução para reapreciação da matéria não unânime em seu desfavor; e o parágrafo único do artigo 664, que tratando da regra de decisão no Habeas Corpus, dispõe que “a decisão será tomada por maioria de votos. Havendo empate, se o presidente não tiver tomado parte na votação, proferirá voto de desempate; no caso contrário, prevalecerá a decisão mais favorável ao paciente”.

Deve-se ter em conta que as regras acima citadas são de meados do século XX, tendo o Estado brasileiro, desde então, passado por diversos regimes constitucionais, autoritários e democráticos, devendo o intérprete, antes de sua cega aplicação, verificar se há fundamento de validade, por meio da filtragem, na Constituição da República de 1988.

O princípio do in dubio pro reo e da presunção de inocência, a excepcionalidade e ultima ratio da intervenção penal estatal e o trato humanizado de seus “clientes” são exigências constitucionais inafastáveis pelos poderes constituídos, especialmente na eleição da regra de decisão que deverá ser observada pelo Poder Judiciário.

A regra de decisão constitucionalmente válida não é a exposta pelo nosso “Código Rocco”, que, como visto acima, se funda pura e simplesmente na regra majoritária ou “matemática”, mas sim a prevalência da posição mais favorável ao réu em todas as situações em que houver efetiva dúvida (in dubio pro reo).

Por mais incrível que possa parecer, não há discussão doutrinaria ou jurisprudencial envolvendo a tacanha prevalência dos votos majoritários desfavoráveis ao réu nos julgamentos colegiados, privilegiando a regra “matemática”, de que dois vale mais do que um, em evidente e direta violação ao princípio da inocência e do in dubio pro reo.

Para os incautos, soa democrática a aplicação da regra da prevalência da maioria em tais casos, entretanto a aceitação de tal conclusão em desfavor do réu evidencia a ditadura da maioria ou a tirania do coletivo, o que a Constituição da República repudia de forma veemente ao petrificar os direitos e garantias individuais em seu artigo 60, parágrafo 4º, inciso IV.

A intangibilidade pela petrificação constitucional da presunção de inocência e do in dubio pro reo não se dirige apenas ao Poder Legislativo, impedindo que a maioria parlamentar apresente proposta tendente a aboli-los, mas também se espraia a alcançar as decisões do Poder Judiciário, em todas as suas instâncias, evitando que pela regra “matemática” sejam desconstituídas tão fundamentais garantias dos acusados.

Os direitos e garantias individuais dos acusados são em sua essência antimajoritários ou contramajoritários, isto é, protegem a todos individualmente contra ataques provenientes inclusive de maioria organizada, sob a corriqueira invocação apocalíptica da necessidade de defesa social e da ordem pública.

Nos julgamentos colegiados, em que o acórdão é formado pela manifestação complexa das vontades (sentidos) individuais dos magistrados, nos casos em que há divergência, estabelece-se, a vista de todos, dúvida proveniente dos fatos (dúvida fática) ou da aplicação do direito no caso concreto (dúvida jurídica), conforme o caso.

O voto vencido, portanto, é a forma mais evidente de caracterização da dúvida judicial. Se favorável ao réu, pela regra de decisão fundada nos preceitos constitucionais, em especial o in dubio pro reo, e nos valores humanitários, é o que deve prevalecer, devendo sucumbir a maioria e a odiosa regra “matemática”.

Digna de vergonha e de análise específica é a farsa aética e inconstitucional consistente na determinação legal de omissão do voto vencido prevista no parágrafo 6º do artigo 1º da novel Lei Federal 12.694, de 24 de julho de 2012, que “dispõe sobre o processo e o julgamento colegiado em primeiro grau de jurisdição de crimes praticados por organizações criminosas”.

Conclui-se, assim, que é inconstitucional a prevalência do voto majoritário prejudicial ao réu nos julgamentos criminais colegiados, devendo o(s) voto(s) minoritário(s) favorável(is) ao réu servir de limite punitivo para a condenação ou, se assim for seu conteúdo, ensejar a absolvição do acusado.

Por fim, deve-se ter em conta as sábias palavras de Ferrajoli quando trata da presunção de inocência no clássico Direito e Razão — Teoria do Garantismo Penal, 3ª edição traduzida, RT, p. 506: “Esse princípio de civilidade representa o fruto de uma opção garantista a favor da tutela da imunidade dos inocentes, ainda que ao custo da impunidade de algum culpado.”

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