Princípio da eficiência

Segurança pública requer cooperação institucional

Autor

  • Gustavo Schneideer

    é delegado da Polícia Federal em Santa Cruz do Sul (RS) especializado em Segurança Pública pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna de Lisboa Portugal.

14 de novembro de 2012, 13h00

Em tema de segurança pública, enfrenta-se no Brasil um paradoxo. A vigente Constituição Federal atribui à segurança o status de dever do Estado, direito e obrigação de todos (caput do art. 144). Porém, se a prestação persecutória apresenta-se, pelas polícias, como um dever estatal, de outro lado, sob o aspecto da necessária cooperação interinstitucional e da colaboração do meio social com a investigação criminal, não há um marco regulatório explícito. Tal situação gera enorme déficit na efetividade dos esforços apuratórios, acarretando grande descompasso da persecução em face da realidade social e sensação generalizada de impunidade.

As transformações sociais que o mundo atravessa afetam a seara securitária e tornam o tema ainda mais grave. O desenvolvimento dos meios de comunicação e a integração digital impulsionam o fenômeno da globalização, que por sua vez exacerba o individualismo e o consumismo e cria oportunidades para ações anônimas via internet. Exasperam-se as contradições entre o hiperconsumismo e a exclusão social. Mecanismos coletivos de controle e condicionamento comportamental outrora ativos (tais como a família, a escola e a igreja) passam a ver diminuída a sua esfera de prestígio, enquanto testemunhamos os fenômenos da massificação criminal (recurso à infração penal como alternativa econômica), da criminalidade organizada e do terrorismo.

Na presente quadra histórica, torna-se imperiosa a colaboração entre os diversos entes garantidores do direito subjetivo público à segurança, mas a adoção de tal postura vai sendo adiada em virtude de contradições sociais. Resumidamente, enquanto é cada vez maior a interdependência social, enquanto cresce cada vez mais a esfera de responsabilidade individual pelas deliberações pessoais (em face de sua maior repercussão coletiva), é precisamente neste momento que também perpassa um sentimento de abrandamento do dever cívico, que coloca em xeque a obediência às regras e à autoridade estatal.[1]

É nesse contexto que se perquire se o exercício de uma competência legal específica pode justificar a abstenção de um ato colaborativo que se demonstre concretamente relevante para a prevenção, para a realização ou manutenção da ordem pública, para a elucidação de uma infração penal e de sua respectiva autoria ou para a repressão de uma ilicitude? A fragmentação da atuação dos órgãos e serviços é admissível diante do primado da cooperação?

Concretamente falando, em dispondo um determinado ator da segurança pública de uma informação que permita contribuir para elucidar um determinado evento criminal, ou para evitar um distúrbio à ordem pública, será ainda possível admitir-se o não-compartilhamento de tal dado em homenagem à divisão legal de competências e atribuições? Em caso negativo, quais as repercussões dessa insuficiência na postura cooperativa ou da eventual omissão? E quais as repercussões diante da não-cooperação por parte dos entes particulares? São indagações complexas, mas cuja resposta passa por alguns condicionamentos principiológicos.

O conceito de segurança vem sendo alargado, superando o espaço político do Estado-Nacional. A amplificação do risco demanda que a segurança pública conte com respostas diferentes, coerentes com a cambiante realidade social. Essas modificações podem ser agrupadas em duas vertentes, a saber: I — alterações no marco legal da resposta penal (tanto no campo sancionatório como nos meios investigatórios especiais); e II — modificação da arquitetura das forças e serviços de segurança (cuja atuação até então desconectada, estanque, passa a ser mais conjugada, concatenada).

Porém, o conceito de segurança também vem sofrendo mudanças no seu conteúdo. Assim, nenhum Estado não pode ser reputado como “Democrático de Direito” acaso deixe de atribuir à segurança a qualidade de direito subjetivo público. Como tal, o direito à proteção deve integrar o rol das garantias individuais, como sói ocorrer em face de outros bens fundamentais, tais como vida, liberdade, saúde, educação, meio ambiente, proteção familiar, probidade administrativa e dignidade da pessoa humana. Impende destacar, contudo, que da preservação da segurança pública depende a efetivação de todos os demais direitos e garantias individuais. Restaria mesmo inócuo, aliás, que tais bens, anteriormente mencionados, fossem alçados a categoria de constitucionalmente tutelados, diante da ausência de reação estatal em face da concretização de infrações penais — o que colocaria por terra o próprio ordenamento jurídico e todas as suas instituições mais caras, fazendo ruir o edifício democrático.

Portanto, a natureza da segurança é a de um bem jurídico fundamental, estruturante do Estado e pilar de sustentação da Democracia. A posição jurídico-constitucional relevante da segurança como valor faz emanar dois campos distintos de prescrições endereçadas ao Estado e à Sociedade Política, que são as dimensões positiva e negativa da segurança, a saber: preservação das liberdades (respeito aos direitos humanos por parte do Estado) e realização concreta da segurança (atividade positiva do Estado e da Sociedade Política para obter a segurança).

Porém, a segurança, para ser obtida, depende de esforços conjugados. E, nessa conjuntura, a Emenda Constitucional 19, em 4 de junho de 1998, alçou à categoria de princípio geral, informador de toda a atividade pública, a eficiência — ao lado da legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade, que já integravam o rol de diretrizes do artigo 37, caput.

Ora, se a eficiência condiciona a atividade pública, e a persecução é uma das atividades estatais basilares para assegurar o edifício democrático, a ordem pública e todas as suas mais caras instituições, não há negar que também a persecução deve ser eficiente, em todas as suas modalidades (investigatória, acusatória, executória). Será mesmo imperioso adotar, para conformar a persecução penal aos ditames constitucionais, mecanismos eficazes e econômicos, que sejam aptos a realizar a defesa social sem vulnerar direitos e garantias individuais.

Ocorre que, dentro de uma visão sistêmica — e reputado o sistema jurídico-constitucional como um sistema aberto (é dizer: que permite uma constante releitura das suas regras e princípios segundo a cambiante realidade social a que dirige a sua carga normativa, em cada momento) — existem diretrizes que ordenam à Administração Pública que opere uma atividade tendente à realização da segurança (sob o enfoque positivo) à luz da eficiência, da cooperação e da boa gestão (governança). Em certo sentido, pode-se afirmar que o sacrifício da eficiência na realização de um valor jurídico pode representar a aniquilação do próprio bem jurídico almejado — e essa é uma realidade assaz presente em tema de segurança pública.

Sopesadas tais diretrizes, suponha-se, então, que um agente público, conhecendo ou tendo a possibilidade de obter o conhecimento sobre uma determinada circunstância a qual, compartilhada com a Polícia Judiciária, poderia elucidar um determinado fato investigado, ou acelerar a investigação em curso. Cogite-se, mais, que o mesmo servidor público, em tal situação, instado ou não a tanto, evite compartilhar tal dado sensível, sem justificado motivo. O bem público “segurança” não pode restar minimamente protegido a admitir-se a licitude administrativa diante de tal comportamento omissivo, sem adentrar nos eventuais consectários penais (a depender da motivação individual). Configura-se a improbidade administrativa por omissão.

Os argumentos ora explanados também podem ser estendidos para o âmbito da segurança privada. Sem embargo da imensa expansão dos serviços privados de segurança, em nenhum ponto da legislação brasileira incidente na espécie restam aclarados: (a) a subordinação da segurança privada à segurança pública; (b) como devem funcionar as interações entre tais estruturas (pública e privada) em termos de intercâmbio de informações, (c) retomada ou encampação de serviços por razões de ordem pública, (d) requisições de apoio em situações específicas (distúrbios, riscos de desastres e outras ameaças à coletividade).

Na pendência de uma adequada e minudente disciplina legal, insta gizar um ponto. Tem-se verificado a profusão da atividade de vídeo monitoramento para a prevenção de crimes contra o patrimônio em entidades privadas (especialmente em condomínios, agências bancárias, abastecedoras de combustíveis, shoppings centers e supermercados). Não há nenhuma regulamentação no âmbito de abrangência das imagens captadas e no trato das imagens.

Ora, a videovigilância não pode ser exercida de maneira abusiva, com invasão indevida da esfera privada de uma comunidade indistinta de pessoas. De outra parte, mesmo admitida dentro de um espaço limitado pela razoabilidade do sacrifício do direito individual à privacidade (em homenagem à segurança coletiva), o monitoramento privado está absolutamente vinculado à requisição administrativa pelos órgãos de segurança pública, especialmente para investigação. Tanto a destruição ou edição de imagens ou áudios, como a injustificada recusa ou retardo na entrega das fitas ou mídias óticas em que tais imagens e áudios estejam registrados, por parte do prestador privado de serviços de videomonitoramento, desde que venha a prejudicar a elucidação de um fato criminal.

E aqui, esboça-se a noção de dano ao bem jurídico segurança, que arbitrariamente denominaremos “dano securitário”. O raciocínio é um paralelismo com o “dano ambiental”. Em razão de a segurança pública consistir em um bem jurídico fundamental com sede constitucional, bem como em direito e dever de todos, pode-se traçar um paralelismo com o meio ambiente. O direito subjetivo público ao meio ambiente sadio, tem natureza transindividual, difusa. Não existe uma titularidade singular da higidez ambiental. Mas, indubitavelmente, quando se vulnera a pureza do ar ou a potabilidade da água do manancial hídrico, os responsáveis podem ser demandados na via cível (além das consequências penais e administrativas). Isto é assim por que o dano ambiental provoca um impacto negativo na vida de um número indeterminado de indivíduos.

Quando alguém deixa de contraprestar o seu dever de contribuir com a segurança pública, que é uma tarefa que a todos se impõe (como a todos se impõe observar a manutenção das matas ciliares, ou a integridade do patrimônio histórico), por que motivo o infrator não se sujeitaria a indenizar a coletividade indeterminada de pessoas colocadas em risco? No contexto das inúmeras periculosidades que permeiam o cotidiano dos indivíduos, o descumprimento de uma regra de procedimento que minimize riscos à coletividade não gera a pretensão de ressarcimento da comunidade em relação ao infrator? A diminuição das condições de vida segura em sociedade não pode ser quantificada pecuniariamente, como forma de coibir a conduta de um ente privado antissocial, insensível ao direito coletivo à segurança?

Cresce a força argumentativa, que sustenta a legalidade do ressarcimento em caso de dano securitário, no caso do raciocínio inverso. É dizer: há indenização da União ou dos estados-membros por danos patrimoniais ou morais causados pela pessoa jurídica de direito público em face da prestação deficiente de policiamento? A jurisprudência responde afirmativamente. A contrario sensu, portanto, a deficitária ou ausente colaboração individual com o Estado na consecução da segurança há de ser objeto de idêntica resposta.

Atualmente, a persecução investigatória depara-se com uma grave distorção, consistente na ausência de uma cultura de cooperação estatal e de colaboração social. Os exemplos abundam. As informações (mesmo de cunho meramente cadastral, não abrangidas por nenhum tipo de sigilosidade incluída na chamada “reserva de jurisdição”) não são repassadas às autoridades de Polícia Judiciária pelas prestadoras de serviços em telefonia, pelos concessionários de vias pedagiadas, pelas instituições financeiras e creditícias, pelas seguradoras. Por vezes, mesmo diante de uma concreção judicial do dever legal de colaborar (exemplificativamente, em uma determinação de quebra de sigilo bancário), as informações não são prestadas no prazo ou na forma estipulada no instrumento judicial, prejudicando imensamente ou inviabilizando o êxito de uma investigação.

Imagine-se, contudo, que uma prestadora de serviços em telefonia, concessionária de um serviço público, deixe de cumprir uma ordem judicial de interceptação no prazo estipulado pelo alvará judicial, ou a implementa com atraso, ou deixa de prestar uma informação meramente cadastral. Acaso se verifique, por esta ação ou omissão, um atraso ou um prejuízo mais específico (por exemplo, a postergação da deflagração de uma prisão, ou a perda de uma conversação que poderia ter abreviado a investigação, ou qualquer outro desdobramento plausível), quem é o titular desse prejuízo? A comunidade indeterminada de pessoas sujeitas à insegurança (causada pela ausência de colaboração do ente privado com a atividade estatal persecutória) titula a pretensão de ressarcimento? Ora, é natural que, quando uma atividade legítima de Polícia Judiciária é obstada por ato injustificado do ente particular (uma comissão ou uma omissão, jurídica e faticamente relevante na cadeia causal), ela gera para a comunidade tal pretensão indenizatória.

Dessarte, conclui-se que a análise do ordenamento jurídico brasileiro, tanto ao nível constitucional quanto da legislação ordinária, revela a presença de regras e princípios asseguradores da cooperação em matéria de segurança pública. O primado da cooperação deflui, ainda, do princípio constitucionalmente consagrado da eficiência, bem como da incorporação de novos valores ao ordenamento, sob o prisma sistêmico (de natureza aberta), e compele ao seu acatamento e observância o legislador infraconstitucional, o administrador (ao aplicar a lei) e o julgador (na âmbito do controle judicial dos atos administrativos, seja sob o prisma positivo, seja sob o enfoque negativo).


[1] Basta, para comprová-lo, lançar mão do exemplo da legislação de trânsito restritiva da direção sob efeito do álcool. A sociedade cobra, genericamente, dos órgãos policiais, uma fiscalização que reduza os índices de letalidade dos incidentes de trânsito. Mas, contraditoriamente, nega-se a mudar a postura cultural de beber e dirigir e de submeter-se voluntariamente ao teste no etilômetro (vulgarizado como bafômetro).

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  • é delegado da Polícia Federal em Santa Cruz do Sul (RS), especializado em Segurança Pública pelo Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna de Lisboa, Portugal.

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