Segunda leitura

Carnaval pode trazer reflexos à esfera jurídica

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  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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19 de fevereiro de 2012, 12h26

Cá estamos nós, uma vez mais, festejando (cada um à sua maneira) o Carnaval. O reinado do Rei Momo já não é igual ao de tempos passados. Mas, ainda que menos ingênuo e mais comercial, o fato é que ele continua mandando, mesmo que seu público-alvo tenha mudado de costumes. Por exemplo, dos bailes de salão para quatro dias na praia. Para continuar soberano, Momo chega até a fazer concessões à base aliada, antes inimagináveis, como admitir a realização, no mesmo período, de um festival de rockabilly (rocks dos anos cinquenta) em Curitiba.

Mas, à parte os aspectos sociológicos, vejamos os reflexos do tríduo momístico perante a ordem jurídica estabelecida. Pensemos no que antecede e no que acontece no período. Antes mesmo do Carnaval algumas medidas preventivas são tomadas, principalmente na área da Infância e Juventude. Por exemplo, em Queimados (PB), a juíza de Direito Flávia de S. Baptista Rocha proibiu o uso de máscaras. Assim, para não facilitar a prática de crimes, máscaras ficam fora da folia. A clássica “Máscara Negra”, de Zé Keti, hoje seria vista com reservas.

Em um momento seguinte vem-nos uma pergunta aparentemente tola: os dias de Carnaval são feriados? A Lei Federal 10.607/2002, não os incluem no rol dos dias de descanso. O feriado é reconhecido, muitas vezes, por leis municipais. Mas, para quem não conhece o Brasil, registre-se que não é raro que em cidades do interior de Santa Catarina se trabalhe na segunda-feira de Carnaval.

No Carnaval de hoje cantam-se, quase com exclusividade, sucessos do passado e, em alguns estados, músicas sertanejas. Ao ouvirmos o povo a cantar alguns daqueles antigos sucessos, poderemos ficar em dúvida se não está sendo infringida a legislação. Vejamos.

A música “A pipa do vovô”, de autoria de Manoel Ferreira e Ruth Amaral, divulgada nos programas do Sílvio Santos, repete continuamente que ela não sobe mais. Ao insinuar que o vovô não tem mais ereção, alguém poderia dizer que se estaria infringindo o artigo 96, parágrafo 1º, do Estatuto do Idoso, que pune com reclusão de 6 meses a 1 ano e multa aquele que desdenha dos velhos? E a indústria farmacêutica não poderia propor uma ação declaratória, buscando reconhecimento judicial de que, com um comprimido de Viagra, o refrão não corresponderia à verdade?

“Olha a cabeleira do Zezé”, de João Roberto Kelly, 1964, ao perguntar “Será que ele é, será que ele é?”, insinua tratar-se de um homoafetivo. Não estará aí havendo uma discriminação sexual passível de uma ação civil pública a ser proposta pelo Ministério Público, com base na vedação constitucional de discriminação sexual? Como seria cumprida eventual liminar? O presidente do Clube seria notificado a suspender o toque da música, sob pena de multa diária?

Na antiga e tradicional “Jardineira”, de Benedito Lacerda e Humberto Porto, 1938, poder-se-ia cogitar de um crime ambiental, punido no artigo 49 da Lei 9.605/1998? Afinal, nela se diz que a “camélia caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu”. Tudo indica que seria difícil a prova da autoria, levando a crer que a camélia caiu por si mesma. Portanto, não havendo crime, os foliões, certamente septuagenários, podem cantá-la sem receio.

Passando a outra área do Direito, analisemos o Direito de Família. O Carnaval sempre foi o momento de liberação das amarras sociais. Pessoas sisudas permitiam-se sair em blocos, fantasiadas, divertindo-se. Agora é assim também. Só que a liberação é levada mais a sério, vai aos extremos do “liberou total”. Os resultados, por vezes, só surgem nove meses depois.

O que a vida prepara para os nascidos em tais condições? Saberão quem foi o pai? Não tendo pai, psicologicamente, serão estáveis? Ou terão tendência a serem desajustados sociais, consumidores de crack e outras drogas, consumindo a própria vida e a de terceiros. A distribuição de camisinhas tem atingido o objetivo? Há estatísticas do número de registros de nascimentos no mês de novembro de cada ano? Supera a média de outros meses do mesmo ano? Estes nascimentos indesejados afetam a Previdência Social, por incluírem inesperados dependentes? Avós estão preparados para exercer o papel de pais de novo?

E o Poder Judiciário, está adaptado ao Carnaval de agora? Adaptado significa estar preparado para o movimento de milhares de pessoas, em alguns lugares enorme número de estrangeiros, tudo a modificar a rotina local e, consequentemente, judiciária. É dizer, não pode a cidade contar com a sua estrutura normal quando nela chegam 500 mil pessoas, boa parte delas disposta a fazer tudo o que for permitido e o que não for, também.

Centros turísticos devem ter Juizados Especiais e plantões em pontos diversos da cidade, com juiz e servidores para que tudo se decida no ato. Se possível, junto com a Polícia. Acidentes de trânsito podem terminar em transação homologada pouco tempo depois. Ruídos excessivos podem ser decididos de imediato. Autorização de viagem para menor, análise do alvará para um espetáculo na praia, conflito entre o hóspede e o hotel em que se hospedou, tudo isto pode ter solução imediata. Se a cidade for daquelas que recebem turistas estrangeiros, juízes e servidores que dominem outros idiomas são indispensáveis.

Isto é utopia? Não, absolutamente não. Óbvio que dá trabalho. Exige contatos, visitas, tratativas, mudança de hábitos, pagamento de diárias, compensação de dias trabalhados, veículos para montar Juizados itinerantes, várias medidas enfim. Mas é para isto que existe o Judiciário. Ou alguém ainda pode supor admissível dizer a um estrangeiro, envolvido em um acidente de trânsito, que depois do Carnaval procure um advogado e proponha uma ação, cuja decisão final pode demorar dez anos.

Por fim, o impacto econômico. Direito e economia andam cada vez mais juntos. Ricardo Maurício Freire Soares, analisando as mudanças do Carnaval em Salvador, propõe medidas de preservação da festa na sua origem popular. Por exemplo, controlando os espaços públicos tomados por camarotes populares ou através de apoio público ou privado aos blocos carnavalescos tradicionais, que não possuem apelo comercial (O público e o privado no carnaval de Salvador: em busca de uma ponderação dos direitos fundamentais, www.datajus.com.br, 2.2.2010).

Assim ficam expostas algumas situações jurídico-carnavalescas. Ora no humor, hora no sério. “Se piange, se ridi”, como dizia o cantor italiano Boby Solo. E que na quarta-feira de cinzas retornemos à nossa rotina, sem que o Carnaval tenha nos brindado com uma intrincada questão jurídica.

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